Daytripper: quadrinhos como vontade e representação
/Quem, quando e onde será você? |
Arquiteto de papel
/Usado sem critério, o termo graphic novel está sendo banalizado no Brasil. Hoje, qualquer publicação com uma história completa está ganhando a chancela de graphic novel, sem necessariamente o ser. O fato de a trama se resolver até a última página — em contraposição, por exemplo, às revistas em quadrinhos mensais, com histórias continuando na edição seguinte sem previsão para chegar ao fim — não é o suficiente para classificar uma história em quadrinhos como graphic novel.
Isso acontece pelo fato de o termo não ter critérios tão estritamente definidos. Em resumo, uma graphic novel é um romance (o gênero literário) narrado com o auxílio de ilustrações em sequência (a linguagem visual dos quadrinhos). O que ajuda a separar o joio do trigo é a intenção do autor. As graphic novels se popularizaram com títulos que buscavam temas pouco (ou nunca) explorados na mídia quadrinhos e novas maneiras de contar as histórias, com narrativas gráficas mais rebuscadas. São obras geralmente indicadas para leitores maduros. Surge daí o selo de qualidade geralmente associado às graphic novels — espertamente usado por editoras para atrair leitores e, em muitos casos, vender gato por lebre.
Nesse contexto, Asterios Polyp chega em um momento interessante às livrarias brasileiras. A HQ de David Mazzucchelli foi lançada em 2009 e laureada no ano seguinte como melhor graphic novel nos prêmios Eisner e Harvey (os dois mais conceituados dos quadrinhos nos Estados Unidos).
Uma folheada em Asterios Polyp é o bastante para encher os olhos. O visual do álbum é impressionante. E não teria como ser diferente, já que o autor é David Mazzucchelli, veterano dos quadrinhos que há muito tempo abandonou as séries regulares de super-heróis (ele desenhou sagas antológicas dos personagens Batman e Demolidor) para se dedicar a projetos pessoais, constantemente se reinventando como artista — como é o caso em Asterios, em que Mazzucchelli apresenta um traço tão diferente dos que mostrou anteriormente que seria quase impossível saber que é ele o ilustrador da HQ sem ver seu nome na capa.
Nada na arte de Asterios é à toa. A paleta de cores, os formatos dos balões de fala dos personagens, o design do personagens, a diagramação das páginas, a construção das cenas… enfim, tudo serve a uma função na condução da história (e para causar algum efeito no leitor) e é usado de maneira criativa e inovadora. Uma autêntica exploração das possibilidades da linguagem das histórias em quadrinhos. Como narrador visual, Mazzucchelli é um mestre. Algumas pontas soltas deixadas pelo caminho da trama, no entanto, revelam um roteirista em desenvolvimento — detalhe compensado pelas incríveis ilustrações.
Arquiteto de papel
Mazzucchelli preenche a narrativa de citações filosóficas e ensinamentos herdados dos gregos antigos. Eles surgem tanto na fala dos personagens quanto nas imagens. A aproximação com a filosofia incomodou muitos leitores, que observaram a superficialidade com que o autor as utiliza. O problema, neste caso, seria mais com o próprio protagonista do que com Mazzucchelli. Até porque Asterios Polyp não tem pretensões filosóficas. Acontece que o herói da HQ é, em muitos momentos, tão irritantemente cheio de si, prepotente, que fica difícil não nutrir alguma antipatia por ele.
Isso, na verdade, é um trunfo da HQ. Asterios é um personagem vívido, crível. Assim como são todos do elenco. Os simbolismos que pipocam pela trama ajudam a tocar a história. Mas é a trajetória do personagem e seus dramas que a conduz. Na dúvida do que é uma graphic novel exemplar? Em forma e conteúdo, Asterios Polyp é uma ótima opção.
David Mazzucchelli
O desenhista americano começou a ser conhecido pelos leitores de quadrinhos a partir de seus trabalhos com os personagens Batman e Demolidor. Do primeiro, ilustrou a mini-série Batman — Ano um, com roteiro de Frank Miller, uma das mais consagradas do Cavaleiro das Trevas. Do Demolidor, desenhou a saga A queda de Murdock, outra parceria com Miller e momento clássico do herói cego. Com o roteirista Paul Karasik, Mazzucchelli adaptou Cidade de vidro, do escritor Paul Auster.
Publicado originalmente no Correio Braziliense
Os fabulosos X-Pué Inchados: apologia de Chico Mozart
/por
Ciro I. Marcondes
Chico Mozart
A história em quadrinhos que ilustra este texto se chama
Os fabulosos X-Pué Inchados
(número 1) e foi realizada em 1994 por dois promissores caras que – pasmem! – não se tornaram quadrinistas. O primeiro deles é este que vos escreve. Desenhei mais de 200 revistas completas entre, sei lá, 1988 e 1997, e devo ter acumulado uns... talvez quatro leitores nesta época. Meu irmão mais novo lia os gibis coagido por puro constrangimento. Creio que nem meu pai e nem minha mãe jamais leram nenhuma dessas histórias. Tudo parte de um grande conceito chamado “universo Bilak”, que talvez algum dia mereça um texto à parte. Acho que eu ainda não sei bem processar o autismo que era escrever e desenhar várias revistas completas por mês, de maneira obsessiva, e receber virtualmente
nenhum
feedback. Mesmo assim, nos idos de 1994, nesta incrível idade que são os 12 anos (nesta época, tricolor paulista bicampeão mundial seguido. Puta era de ouro), chamei um grande amigo meu, que fora colega da Escola Classe na 308 Sul desde a 4ª série, para uma empreitada de parceria.
Se você é de Brasília e tem o mínimo de vida social, deve conhecer a figura que é Chico Mozart. Naqueles idos de 1994 (
, e tal), era apenas Chiquinho. Hoje, Chico é formado
em Artes Plásticas
pela UnB e trabalha no meio, mas o lance que realmente define sua inserção nas personas interessantes da cultura brasiliense hoje em dia é ao mesmo tempo sua onipresença e sua volatilidade: Chico está em toda parte, mas, ao mesmo tempo, está flutuando em seu denso mundo interno, em lugar nenhum, bem diferente da imagem boêmia, sem-noção e beberrona (ele é tudo isso também) que todos cultivam dele.
Conheço-o há muito, e posso dizer que o verdadeiro
self
de Chico é quase o avesso de sua imagem folclórica nos bares e cantos culturais da capital. Chico não é artista, não é bêbado, não é celebridade local, não é um cara com arquétipo
clown
. Sua natureza é uma coisa esquiva e indefinida, e é isso que o torna um sujeito bem mais raro e complexo, entre as hordas de hipsters da cidade.
Por exemplo: na quarta ou na quinta série, nós fizemos uma matéria de desenho animado na Escola Parque da 308 sul (vale lembrar coisas fantásticas que o ensino público nos trouxe nessa época: estudei música, teatro, história em quadrinhos...). Enquanto eu tentava achar um tipo de traço mais definido, mas sempre com dificuldade em proporções, sombreamento, cenários (essas coisas que definem um desenhista de verdade), eu percebia que Chico não apenas desenhava com muito mais personalidade, mas também muito mais naturalmente. Eu era, digamos, um pouco mais intelectualizado e aficcionado por cultura em geral, e existia uma coisa não-declarada: ele se sentia inseguro porque eu compensava minha falta de talento pra desenhar com palavras bonitas (depois das HQs, passei à Literatura em prosa; da Literatura em prosa, à poesia; da poesia... entrei na faculdade... e virei crítico, e aí me fodi mesmo), enquanto eu visivelmente, impacientemente, incredulamente, o invejava simplesmente porque ele tinha uma habilidade e senso estético naturais. Chico tem um traço espesso e cômico, altamente personalizado, com altas doses de cinismo e ironia presentes diretamente no estilo de ilustração. O seu desenho é sua tradução.
Em certo momento, participamos de um concurso para crianças, acho que da Folha de SP, para desenhar uma paródia do filme
Aladin
. Nós dois nos inscrevemos. O desenho do Chico era “Alodum”: um Aladin gordo, baiano, tosco, melequento, com pau de fora (acho que os idiotas da Folha não perceberam isso) – um primor rabelaisiano saído de uma mente infantil. O meu era absurdo, ridículo, e apenas lembrar daquilo baixa meus níveis de serotonina. A imagem daquele desenho sequer se forma completa na minha memória, tão rápida é a atuação do meu superego
em vetá-la. Não
duvido que me atormente em pesadelos esquecidos. Mesmo assim, arrogantemente eu achava aquele desenho do Chico uma coisa sem-noção demais para ter chance, e aquela excrescência que eu havia desenhado era, para mim, um franco favorito. No final das contas, Chico venceu o concurso, teve o desenho publicado, ganhou uma caixa de brinquedos maneiros, uma passagem para São Paulo (roubada pelo professor, que fugiu com o namorado). Eu fiquei na minha, tentando perguntar pro bom e velho deus por que o mundo tinha uma lógica tão estranha.
Um clássico duelo
Em 1994 convidei o Chico pra ser co-autor de uma nova série mensal que minha prolífica “Editora Nuvensinha” publicaria. Dentre vários títulos ridículos de 20 páginas que eu desenhava por mês, eu curtia a “clássica” série “Biss & Halk”, sobre dois irmãos que atingem o paroxismo da imbecilidade (teve mais de 50 edições!). Com Chico, resolvemos fazer uma nova série de humor, parodiando os X-Men. A premissa era até boa! O maléfico “Ratonético” arrasa o grupo de mutantes, que sofre alterações radicais: Charles Xavier sofre um terrível acidente e se transforma em um ser nojento, azul e flácido, completamente retardado, que consegue dar apenas uma ordem: “vai lá e bate nele”! A revista foi escrita e desenhada tanto por mim quanto pelo Chico. Dentre os novos X-Men recrutados havia criações promissoras como, por exemplo, a X-Pôr, uma atriz pornô que usa só uma tanguinha e sai com os peitos de fora. Ou o assustador X-Dunga, um ser irracional e assassino, que distribui caneladas nos inimigos (ironicamente, levantaria a Copa do Mundo naquele ano e viraria mentor e técnico da Seleção brasileiro em 2010); ou o grotesco X-monstricuspsicopaticusassassinicuscabeçudicusbebênicusdeoutricosmundicos, inspirado em um amigo que hoje é antropólogo da Presidência da República. Criações de Chico.
Infelizmente,
X-Pué Inchados
(o nome vem da nossa mania de chamar de “pé inchado” tudo que é ridículo, tosco, mal-acabado, etc) durou só essa edição, cuja simplória história se resumia a Ratonético indo atrás de Charles Xavier, mas não reconhecendo-o em sua nova forma obesa, enquanto o pau comia entre bandidos e mocinhos. Mas há uma página em especial em que o jovem Chico, o Chiquinho (11 anos), criou um padrão de ação narrativa digna de um
Krazy Kat
: Ratonético dá uma porrada em X-Zoiúdo, que atravessa a sarjeta do requadro e bate na lombada da página. Ao mesmo tempo X-Boi (uma criatura zoomórfica) dá uma barrigada em Ratonético, que rebate na lombada e rola até o último quadro da página, metendo a cara na lombada de baixo e atravessando-a até a página seguinte. Comparado com a regularidade boçal e insossa das minhas narrativas, aquilo era uma verdadeira obra de arte.
Chico Mozart é um sujeito com uma quantidade tão grande de histórias inacreditáveis que eu tinha o projeto de roteirizá-las para HQ, ficcionalizando um pouco, e pedir pro próprio Chico ilustrá-las, porque ele meio que está fora desse ramo de atividades há algum tempo. Ainda não chegamos a começar esse projeto, mas de qualquer forma deixo esse texto como incentivo e homenagem a essa figura cativante e indecifrável. Sei que o texto vai fazer mais sentido para quem habita a Capital Federal, mas, se você também é fã do Chico, escreva sua própria homenagem na caixa de comentários. Vida longa àquele que forjou seu próprio enterro!
Capa dupla e colorida!
Mundo de desgraçados: duas ou três coisas sobre um primeiro Mutarelli
/Sexo em Mutarelli: "não se trata de vulgaridade" |
"Excelência dos grandes artistas" |
Louco de estimação |
The horror, the horror |
Serviço de utilidade pública: lançamento Pindura 2012
/O primeiro, de 2009, é um calendário com 12 ilustrações sobre o tema bar. Aliás, veio daí o nome "pindura" (de "pendura a minha conta aí, chefia!"). O de 2010, já contando com muito mais participantes, tem uma ilustração por semana, todas fazendo referência às paradas de ônibus de Brasília. O Pindura de 2011 chegou ousado, com ilustrações para todos os dias do ano. O tema é elevador e o formato, dessa vez, é o de calendário de folhinhas, daqueles que você arranca dia após dia.
O Pindura 2012 é um poster de 64cm x 94cm. Colaboraram 181 desenhistas, com uma ou duas ilustrações de objetos que eles gostariam de deixar enterrados para serem encontrados pelas futuras gerações -- ou por quem quer que venha a viver na terra quando todos virarmos pó, afinal de contas, 2012 vem ai.
O Pindura é uma criação de Gomez, Stevz e Biu e é publicado pela editora redundantemente intitulada (ou genialmente intitulada, se você preferir) Pegasus Alado.
Depois de passar pela Rio Comicon, o Pindura 2012 será lançado neste domingo, em Brasília. Na ocasião, também serão lançadas as HQs Aparecida Blues, Garoto Mickey, Peixe fora d'água e Golden Shower 2. O chapas da revista Samba estarão presentes com novidades, entre elas, a edição 2 da Kowalski. A carioca Rachel Gontijo, da A Bolha Editora estará lá com seus incríveis lançamentos (sério, dá uma olhada).Outras informações estão no cartaz. Clique em cima para ampliar. Tá lindão. (PB)