Superbully Americano
/por Ciro I. Marcondes
Por uma questão de coincidência, a DC Comics acaba de zerar novamente (“reboot”) seu universo, no legítimo sentido mercadológico de adaptar seus personagens às novas condições culturais, justamente no momento em que eu preparava este texto a respeito das primeiras histórias do Superman, datadas de 1938, republicadas pela Panini sob o título de “Crônicas – Volume 1” , em 2007. No reboot em questão, a mitologia do personagem será repensada a partir de uma ideia muito conveniente de Grant Morrison: a de trazê-lo de volta às suas raízes mais profundas. O novo “velho” Superman não vai voar (apenas dar uns saltos muito grandes) e seus poderes divinais serão consideravelmente reduzidos. Da mesma forma, ao invés de supervilões intergalácticos e de outras dimensões, este novo Superman estará a serviço do cidadão comum, combatendo gangsters, falsários, políticos corruptos, etc. De fato, estas alterações (radicais a ponto do “azulão” vestir calça jeans) possuem uma convergência com o Superman de Jerry Siegel e Joe Shuster. Mas que Superman era este?
O que é mais interessante ao se ler “Superman Crônicas”, porém, são as mutações que este arquétipo sofre no decorrer do desenvolvimento do personagem, e que revelam como nos apropriamos e hiperdimensionamos os conceitos de “super”, “homem” e “herói” de maneira que o original não previa. O Superman de Siegel e Shuster é um produto dos anos 30, ao mesmo tempo herdeiro das reformas de Roosevelt e do avanço da cultura americana como modelo para o mundo. No caso do cinema, é o momento em que os conglomerados de distribuição mundial ganham força, e políticas de boa vizinhança são instauradas. Os gêneros clássicos do cinema falado ganham corpo e presença, e passam a formatar os códigos comuns de várias linguagens culturais. O western se torna o gênero mais popular da época, e seria justamente o responsável pela criação de uma mitologia americana, contando e formatando as origens daquele povo. Os super-heróis surgem dentro deste imaginário, e refundam esta mitologia sob o prisma das então modernas indústrias culturais.
Fanfarrão |
Biscate |
Justiça social e fanfarronismo
Porém, esse jeito pouco ortodoxo ou “caubói” (vejam bem que o caubói é um fora-da-lei de bom coração, que realiza a justiça que a lei não alcança) de ser tinha implicação profunda nas aspirações dos Estados Unidos enquanto difusor (agressivo) de uma cultura global padrão, e especialmente enquanto força de guerra, já que estamos falando de um período à beira da Segunda Guerra Mundial. O alistamento dos soldados e a colaboração da população em terra natal (especialmente mulheres e crianças) eram atitudes que não podiam deixar ambigüidades. O cinema, os quadrinhos e toda indústria cultural serviram como força motriz para este processo. Basta lembrar que vários aviões da força aérea americana tinham o “azulão” ou o Capitão América pintados em suas superfícies.
Métodos "pouco ortodoxos" |
A diferença é que, para resolver os problemas, Superman adota uma espécie de código “olho-por-olho, dente-por-dente” bastante associado ao esforço do puritanismo protestante tão presente na era clássica da cultura industrial americana: para “punir” o industrial que dá péssimas condições aos seus mineiros, Superman cria um esquema para prendê-lo, junto com outros grã-finos, dentro de uma mina, deixando-os se virarem sozinhos para sair. Da mesma forma, para “punir” o magnata da indústria bélica, Superman o obriga a alistar-se no front, para que possa vivenciar os horrores da guerra e se arrepender. Na história mais absurda de todas, Clark Kent compra dos falsários todas as ações falidas de um poço de petróleo inativo, para depois, com seus poderes de Superman, escavar a terra e ativar o poço, revendendo as ações para eles, para logo depois destruir os poços e trazer mais algum tipo “lição” torta, quase inexplicável. Esta “doutrina de correção punitiva” parece uma mistura de judaísmo primitivo, do velho testamento, com a força moral do puritanismo. Certamente muito convicente no empenho de reconstrução de um país ou de um esforço de guerra.
As histórias originais do Superman, e despeito dessas ambiguidades, possuem grande valor cultural, e entusiasticamente traziam o conceito de heroísmo para uma causa do povo (mesmo que fosse só o povo americano). Como o arquétipo “super” acabou sendo usado como propaganda de guerra, é natural que estes valores tenham se deturpado no decorrer dos anos 40, até que a cultura do gênero morresse para dar chance a um “realismo” mais brutal e sanguinário: quadrinhos de crime, horror e guerra da EC Comics. O arquétipo “super” só ressurgiria após o macartismo e censura às HQs nos anos 50, quando sua vitoriosa forma “light” seria concebida pela Marvel nos anos 60. Vale comentar, porém, que a forma “light” se enclausuraria num universo próprio e fechado, cada vez mais fazendo referência apenas a seu “mundo paralelo”, virando entretenimento puro.
Crazy bastard |