A guerra em quadrinhos - três tempos, três autores, três visões: preview


Por Ciro Inácio Marcondes

Este é o resumo expandido do meu trabalho aprovado para as primeiras Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, que ocorre na USP em agosto. Compartilho-o com vocês. O artigo fica pronto até o fim do mês, mas só poderei mostrá-lo depois das jornadas. (CIM).

A guerra em quadrinhos: três tempos, três autores, três visões (resumo expandido)

Nascidos, em seu formato de massas, junto com o próprio século XX, os quadrinhos estiveram no centro de importantes debates sobre as guerras, e esta é uma história desconhecida. Este estudo procura demonstrar que, mesmo durante a era clássica das HQs, existia uma preocupação reflexiva e humana, associada a projetos estéticos e linguagens personalizadas, sobre os efeitos socioculturais das guerras. Três diferentes guerras, autores e momentos históricos compõem este painel, relacionando-os intrinsecamente. Além da própria leitura analítica dos quadrinhos mencionados, será necessário nos apoiarmos na trajetória histórica do quadrinho americano clássico e da EC Comics (HADJU; WRIGHT); em uma fundamentação da estética narrativa dos quadrinhos (GROENSTEEN); e em uma historiografia dos quadrinhos argentinos (RAMOS) para, por fim, nos aprofundarmos em Joe Sacco com o estudo Alternative comics, an emerging literature (HATFIELD). 

A segunda guerra foi palco para a série argentina Ernie Pike, escrita pelo célebre Héctor Oesterheld e desenhada por um jovem Hugo Pratt. Publicada entre 1957 e 58, ela utilizava como personagem o histórico jornalista de guerra americano para transmitir um humanismo declarado e trágico sobre pequenas histórias individuais escondidas nos números da grande guerra. Ernie Pike é aventuresco, idealista e consideravelmente literário, revelando amarga e tradicional visão sobre a guerra.

O segundo modelo é um pouco anterior à publicação argentina, mas esteticamente mais arrojado, cru e niilista. O quadrinista Harvey Kurtzman foi um dos responsáveis pelo sucesso e teor adulto da EC Comics nos Estados Unidos nos anos 40 e 50. Kurtzman situava suas histórias em uma guerra contemporânea à época, a da Coréia. Seu traço vigoroso e narrativas fluidas, que invertiam relações morais na guerra, são ambíguas e céticas, com visão madura e anti-romântica, sendo comum serem contadas do ponto de vista do inimigo.  

Depois do clássico e do moderno, chegamos à configuração contemporânea do quadrinista Joe Sacco a partir da análise dos dois volumes de Palestina, publicados originalmente em nos anos 90. Distante do idealismo ou do ceticismo dos outros, Sacco desenvolveu, numa graphic novel composta de dezenas de relatos que coletou em sua visita à faixa de Gaza, uma forma autobiográfica, epistolar e documental de vislumbrar a violência da guerra em quadrinhos. São patentes as influências do cinéma verité e do new journalism para compor esta visão pós-moderna e ativista dos quadrinhos, altamente consciente do potencial do meio enquanto instrumento político.

Bibliografia:

GROENSTEEN, Thierry. The system of comics. University press of Mississipi, 2009.


HATFIELD, Charles. Alternative comics: an emerging literature. University Press of Mississipi, 2005.

KURTZMAN, Harvey. Clásicos bélicos, two-fisted tales. Barcelona: Planeta DeAgostini, 2006.

OESTERHELD, Héctor; PRATT, Hugo. Sargento Kirk/Ernie Pike. Buenos Aires: Arte Gráfico Editorial, 2006.

RAMOS, Paulo. Bienvenido. Um passeio pelos quadrinhos argentinos. Campinas: Zarabatana, 2010.

SACCO, Joe. Palestina, uma nação ocupada. São Paulo: Conrad, 2000.

WRIGHT, Bradford W. Comic book nation. The transformation of youth culture in America. John Hopkin University Press, 2003.

A cultura de quadrinhos argentina: entrevista com Paulo Ramos

Por Pedro Brandt

Sempre tive uma grande curiosidade para conhecer melhor os quadrinhos argentinos. Um dos meus planos para quando fosse visitar o país era justamente comprar algumas obras interessantes produzidas pelos autores de lá. Eu sabia que tinha muita coisa boa, toda uma tradição e tal. Mas, sem tantas referências, eu teria que comprar meio no escuro, por instinto.

Por sorte, alguns meses antes de ir passar umas férias em Buenos Aires (em novembro de 2010) foi publicado o livro Bienvenido – Um passeio pelos quadrinhos argentinos, do jornalista Paulo Ramos, do Blog dos Quadrinhos.

Um livro rico em informação e com um apanhado de imagens que apresenta um panorama do melhor do quadrinho argentino. Uma produção vasta, riquíssima (com várias obras primas) e pouco conhecida pelos leitores brasileiros.

Recomendo o livro não só pelas dicas, mas pela pesquisa bem feita e embasada e pelo ótimo acabamento editorial da sempre competente Zarabatana Books. Além da história das HQs na Argentina, Bienvenido apresenta entrevista com Elsa Oesterheld, viúva de Héctor Germán Oesterheld, roteirista, um dos mestres do quadrinhos argentinos e desaparecido político da ditadura do país.

Entrevistei o Paulo por e-mail no ano passado. Abaixo seguem as respostas.

* comprei várias das indicaçãos de Bienvenido (e algumas outras). Em breve comento sobre elas.

Quais os principais desafios na feitura do livro?
Creio que o principal desafio foi ter acesso às obras argentinas. O caminho que encontrei foi mesmo investigar tais produções in loco. Viajei seis vezes ao país entre 2007 e o fim de 2009 e comprei por lá tudo o que pude, de livros novos a títulos já antigos, fora de catálogo, alguns bastante raros.

Arrisca algum palpite de porquê tão poucos quadrinhos argentinos foram publicados no Brasil?
Como você bem diz, trata-se de um palpite. Creio que a resposta passa pela tendência de importarmos quase cegamente muito da cultura de massa dos Estados Unidos. No caso dos quadrinhos, priorizamos tais produções ao longo de todo o século 20, das tiras às aventuras dos super-heróis. Quase não abrimos espaço para histórias vindas de outros países desenvolvidos. O que diria, então, de um país sul-americano, vizinho.

A bibliografia do livro é enorme! Como você chegou a todas essas fontes de pesquisa? O que diria que o seu livro tem de diferente dos livros argentinos sobre as HQs de lá?
A bibliografia é enorme, sim. Só tive ideia do quanto havia lido quando comecei a elencar todas as obras e pesquisas utilizadas. Como comentei na primeira resposta, cheguei à maior parte das obras comprando uma a uma ao longo das viagens à Argentina. Algumas outras, poucas, foram publicadas no Brasil, caso de Mafalda e de outras coletâneas de Quino, o criador da personagem. Creio que o que se destaca na produção argentina, em comparação com a brasileira, seja a tradição de criar enredos mais longos, publicados em capítulos, como se fossem folhetins. Isso permitia, a longo prazo, a construção do que hoje temos chamado de novela gráfica. Os temas variavam, de mistério a ficção científica, de faroeste a aventura. Muitas dessas histórias se destinavam a leitores adultos já na década de 1950, bem antes da Europa, por exemplo. Não tivemos aqui tal tradição no tocante aos quadrinhos, mesmo no terror, gênero em que fomos tão fortes - tais histórias tendiam a serem curtas.

Muitos amigos meus que visitaram a Argentina recentemente tiveram dificuldades de encontrar quadrinhos por lá — mas não sei se eles não procuraram direito. O que eu quero saber é o quanto é fácil ou difícil encontrar quadrinhos argentinos por lá (atualmente, recomendo para todos os amigos passarem nas lojas de quadrinhos de Buenos Aires que você listou no livro).
Tive a mesma dificuldade em minha primeira viagem a Buenos Aires, em 2007. Fui de início aos caminhos mais óbvios, os kioscos – nome das bancas de jornal de lá – e as livrarias. No primeiro caso, encontra-se muito pouco. Nas livrarias, a situação é um pouco melhor. O que mais há nas prateleiras são coletâneas de tiras já publicadas nos jornais – caso de Macanudo, de Liniers, para ficar em um exemplo. Mas é questão de saber procurar. O melhor lugar para encontrar os quadrinhos argentinos são as comiquerias, as lojas especializadas em quadrinhos. Há várias em Buenos Aires, muitas na região do microcentro, principal área turística da cidade. Lojas dos jornais também vendem edições das coleções de quadrinhos já publicadas. É outro caminho para se encontrar bons títulos a um preço mais em conta.


Tem alguma HQ argentina rara, que você gostaria de ter e ainda não conseguiu?
Tem, sim. Duas me ocorrem no momento. Uma delas é uma edição de Las Puertitas del Señor Lopez, um dos melhores quadrinhos produzidos no país, no meu entender. Consegui uma coletânea publicada pelo jornal Clarin, volume que me ajudou muito a entender a obra. Mas há outra edição, esgotada, que não consegui encontrar. Outra é um álbum chamado Legion, de Salvador Sanz, um jovem desenhista da nova geração de quadrinistas, muito talentoso. Nem mesmo o autor tinha um exemplar para me passar. É um trabalho esgotado no país, sem previsão imediata de ser reeditado.

É possível apontar uma(s) característica(s) inerente(s) ao quadrinhos argentino?
Acredito que seja a tradição das aventuras mais longas, construídas em capítulos, como nos folhetins, como comentado na terceira resposta.

Como você descreveria o trabalho de Oesterheld para quem nunca leu uma história do autor?
É um roteirista bem acima da média, temática e qualitativamente. Diria que é um autor de dois momentos bastante distintos. O primeiro, na década de 1950 e parte de 1960, é mais marcado por roteiros de diferentes gêneros, em que se destaca a ficção científica. É dessa época El Eternauta, sua obra mais conhecida. Um segundo momento, iniciado no fim dos anos 1960, é mais voltado a produções mais engajadas politicamente, reflexos da opção política adotada por ele. A biografia de Che Guevara, um dos poucos trabalhos dele lançados no Brasil, é desses anos.

Foi fácil chegar até a viúva de Oesterheld? Como ela encara falar sobre o desaparecimento do marido e das filhas?
Cheguei até ela com a ajuda de dois contatos, um daqui do Brasil e outro da Argentina. Foi uma das entrevistas mais fortes que fiz em meus mais de 15 anos de jornalismo. Elsa Oesterheld perdeu, no prazo de dois anos, o marido, as quatro filhas – duas delas grávidas – e os dois genros, todos vítimas da ditadura instaurada no país em 1977. A tragédia pessoal já está muito amadurecida por ela. Perguntei como ela encarou isso. Fecho o livro com a resposta dela.


Qual autor argentino contemporâneo você diria que merece ser publicado no Brasil?
Há vários. Não seria uma lista de apenas poucos nomes. Se fosse relacionar todos, seguramente iria me esquecer de alguém.

Você tem alguma HQ argentina favorita? Ou personagem? Por quê?
Gosto muito das tiras, assim como aprecio também as nossas, que não perdem em qualidade para as de lá. Fora do universo humorístico, há três obras que considero muito interessantes, tanto na qualidade gráfica como no roteiro: El Eternauta, de Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano Lopez; Cosecha Verde, de Carlos Trillo e Domingo Mandrafina; Las Puertitas del Señor Lopez, de Carlos Trillo e Horacio Altuna. Como disse, são trabalhos que se distinguem pela qualidade. Infelizmente, como a maior parte dos quadrinhos de lá, permanecem inéditas aqui no Brasil.

O livro tem sido lançado em várias cidades. Como tem sido a resposta a ele?
Tenho tido um bom retorno nos lançamentos. Os leitores têm se mostrado muito interessados, talvez pelo ineditismo do assunto. Das pessoas que já o leram, também tenho recebido comentários bastante positivos. Hoje mesmo, recebi de um editor um retorno, por e-mail, muito elogioso.

Gostaria que você fizesse uma lista de cinco quadrinhos argentinos fundamentais, daqueles que os leitores brasileiros deveriam tentar comprar quando passarem pela Argentina.

Vamos lá:
- Mafalda, de Quino
- Macanudo, de Liniers
- El Eternauta, de Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano Lopez (a primeira parte, publicada na década de 1950)
- Cosecha Verde, de Carlos Trillo e Domingo Mandrafina
- Las Puertitas del Señor Lopez, de Carlos Trillo e Horacio Altuna

Uma palhinha de Paulo Ramos em vídeo, falando ao Jornal de Debates sobre o futuro das HQs brasileiras:

HQ em uma página: a colonização segundo Mortadelo e Salaminho






















Trajetória do colonialismo (Francisco Ibáñez, 1992): A HQ Mortadelo e Salaminho (Mortadelo y Filemón) data ainda dos anos 50 e consta entre as mais tradicionais espanholas. Seu modelo estilístico tem algo a ver com as BDs franco-belgas, mas consegue ser ainda mais histriônica e exagerada, com seus dois agentes secretos estúpidos, grosseiros e escandalosos. Nesta edição de 1992 que trata do racismo, o autor Francisco Ibáñez faz um hilário preâmbulo contando, de maneira mordaz e sarcástica, as trajetórias dos colonialismos e racismos no mundo. No último quadro da página anterior, Ibáñez colocava o colonizador europeu como apenas "meio" racista: com uma metade (os índios homens), era cruel e assassino. Com a outra metade (as índias mulheres), como podemos ver o primeiro quadro da página a seguir, já não era bem assim. Seguem então requadros com: a colonização americana, parodiando Hollywood; a Ku Klux Klan e o começo do Séc. XX nos EUA; as guerras do Coreia e do Vitenã (ressaltando a presença dos soldados negros); e por fim Hitler e os judeus. Tudo com humor aloprado, bizarramente beirando o politicamente incorreto. Adorável. (CIM)


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O Poderoso Thor

por Ciro I. Marcondes

Lendo a recente republicação das primeiras histórias de “O Poderoso Thor”, com roteiros de Stan Lee e arte de um ainda imaturo Jack Kirby, creio ser correto pensar na incômoda ambiguidade da cultura de super-heróis tanto para as HQs em geral quanto para a cultura de nossa era, assim como na ausência de perspectiva crítica sobre a adorada figura de Stan Lee da maneira como se faz, por exemplo, com Walt Disney. Digo isso pensando na avalanche de filmes desprezíveis consumindo salas de cinema e monopolizando a atenção de Hollywood na direção de um entretenimento bombado em efeitos especiais, mas infantilizado e vazio. Muitas vezes baseados nos simpáticos personagens de Lee, alguns destes filmes estão aquém da cultura de HQs, alimentando o estigma de descartabilidade. 

É claro que a força das criações de Stan Lee - com admirável moderação dos exageros dos heróis da era de ouro, popularizando em um contexto pós-midiático arquétipos humanos interessantes e aproximando o herói dos seus leitores -  tem méritos. O sentido aqui não é colocar na berlinda o Homem-Aranha, o Hulk, os X-Men ou sequer o poderoso Thor (cuja adaptação pro cinema saiu justo agora). As criações de Lee (ou remodelações, já que quase tudo em Lee é francamente baseado em algo de outros quadrinhos ou culturas), importantes para nosso imaginário atual, permanecem com suas essências ao mesmo tempo simples e adequadas. Elas estão muito além do alcance de seu criador. Parece um problema, porém, que estas essências, fetichizadas, disseminadas em bonecos, produtos, metáforas cotidianas, fantasias sexuais, moda, etc, estejam se tornando um denominador comum da sociedade de consumo. Esta atenção entusiasmada e cultista de um imaginário antes muito consciente de suas limitações está tornando o que hoje entendemos como uma identidade geek em uma cultura autoindulgente, cínica, explicitamente perversa, confessadamente idiotizante. Como fã de quadrinhos e até como leitor de Stan Lee, confesso acompanhar com horror a massificação do imaginário de super-heróis.

Vejamos estes quadrinhos do Poderoso Thor, datados de 1962, roteirizados no estilo marvel way por seu criador Stan Lee, com diálogos detalhados por Larry Lieber e arte de Jack Kirby. Meu primeiro interesse por Thor foi justamente buscar de que maneira esta figura extraída das mitologias vikings havia sido revertida em objeto de exploração (acho que, no caso de Thor, é lícito dizer “exploitation”) pela indústria das HQs. Sempre pareceu-me que, a partir de abordagens inteligentes como a de Alan Zelenetz e Charles Vess (“A Bandeira do Corvo”) ou a de Robert Rodi e Esad Ribic (“Loki”), o universo de Thor tivesse grande potencial. Daí recorrer à arqueologia. Lendo as mais de 10 histórias magnificamente republicadas pela Panini na versão nacional da “Biblioteca histórica marvel”, logo nos chama à atenção a pobreza conceitual e artística, mesmo para os padrões da Marvel nos anos 60, do universo de Thor.

Não é novidade que HQs da era de prata, fora algumas coisas do Homem-Aranha, Surfista Prateado e X-Men, despertam interesse mais pelo lápis vigoroso de um Kirby, Ditko ou Buscema do que pelas aventuras ingênuas de Stan Lee. No caso de Thor, entretanto, o caráter derivativo é franco e patente. Lee, já ocupado com o sucesso do Hulk, do Quarteto Fantástico e do Homem-Aranha, produziu roteiros sintéticos com os plots básicos e passou o detalhamento para Larry Lieber, processo que se tornaria tradicional em alguns setores da Marvel. Assim, os personagens de Thor são pálidos, óbvios, diretos. O frágil alterego Don Blake, médico cuja deficiência física contrasta com sua contraparte divina e ariana, logo é abandonado em sua assepsia maniqueísta. O mesmo ocorre com o interesse romântico, a puritana Jane, apaixonada por Thor, mas desdenhosa de Blake (bla bla bla... mesma velha história). Assim, o que emerge dessas tediosas tramas da Thor é justamente o aspecto não-ingênuo que delas se depreende, o que nos permite um comentário mais severo a respeito da isenção de Stan Lee.

Caça às bruxas



Consideremos, em primeiro lugar, que o mais interessante em Thor, e o que o definirá na sequência de sua trajetória enquanto mito e personagem de HQ, quando ele já não estiver mais sob o controle de Stan Lee, é sua origem na cultura nórdica, na mitologia viking, na inesgotável fonte de inspiração para o imaginário ocidental, do épico mudo de Fritz Lang “Os Nibelungos” às recentes e oscarizadas adaptações de “O Senhor dos Anéis”. Logo, mesmo nas histórias de Lee, são as intrigas mágicas e palacianas dos deuses tortos de Argard que vão instilar algum diferencial no universo do personagem, especialmente na figura do nêmesis Loki, um tipo picaresco, subversivo e invejoso, contraponto importante.  Porém, submetido a um ritmo industrial de produção, aos rigores do comics code authority (incomodamente estampado em todas as capas da republicação) e à franca paranoia da guerra fria em seu auge, imagino que Lee não tenha tido muito interesse em aprofundar o personagem em suas origens resididas na cultura popular. Thor é um herói qualquer, exilado na Terra, e combate vilões eventuais e ordinários como o “Copiador”, “Sandu” ou “Mister Hyde”, apaixonado por uma moça reprimida que o ridiculariza em sua essência humana. Nada que um Super-Homem, protótipo de todo super-herói, já não fosse.

Porém, além de vilões insossos perdidos no tempo, Thor também trabalha junto com o exército americano. Logo na primeira história (“Os homens de pedra de sarturno”), uma ilusão provocada pelos tais “homens de pedra” chama atenção pelo seu caráter subliminar: um dragão vermelho que aterroriza o povo norteamericano. Nas histórias subsequentes, vemos que as alusões ao mundo comunista deixam de ser subliminares. Em “O poderoso Thor x o executor”, Thor deve lançar-se contra uma ameaça militar controlada por um tirano ensandecido por aspiração de domínio global chamado “executor”. Ele e seus comparsas possuem traços alatinados, com cicatrizes de guerra deformativas, usam boinas e seus caças ostentam a foice e o martelo. São rudes, pavorosos, e suas ações sugerem tortura e estupro. Lee não avança no conteudo político deste conjunto de signos. Nada sobre o mundo do socialismo é revelado. O executor é um vilão genérico e cruel como um Esqueleto de He-Man ou um Munn-ha de Thundercats. É o mal pelo mal, sem arestas ideológicas. Mas usa boina como guerrilheiros cubanos, chama-se “executor” e, em quadro emblemático, manda para o paredão de fuzilamento um soldado que falhou em uma missão.


Esta associação à cultura militar e a uma demonização dos inimigos dos Estados Unidos nos anos 60 se encontra, ainda neste mesmo volume, em várias outras histórias. Em “Prisioneiro dos vermelhos”, Thor precisa ir à União Soviética à procura de cientistas americanos, supostos desertores. Lá ele os encontra capturados pelos grotescos soviéticos, que os obrigam a desenvolver tecnologia sob regime de escravidão. Esta história, escrita no auge da guerra fria, distorce tema controverso do passado norteamericano: o dos cientistas americanos que efetivamente fugiram por se filiarem ao partido comunista. A história de Thor descarta essa possibilidade e os coloca como vítimas de uma tola conspiração. Os exemplos se repetem e seria perda de tempo recapitulá-los em detalhes. Em “Aprisionado pelo copiador”, Thor se depara com grupo de alienígenas cruéis e com sede de conquista cujo líder tem o rosto de Stalin (além de serem da cor vermelha). Em “O misterioso homem radioativo”, Thor vai à Índia salvar a população da ameaça da China comunista, genérica como todos os outros.

O ponto em que eu queria chegar é evidente: pouco se fala sobre um Stan Lee colaboracionista e ideologista, usando tramas pueris e românticas em inocentes histórias de ação (orgulhosamente aprovadas pelo comics code authority) para associar símbolos mundiais (estrelas, cores, foices) a figuras grotescas e rasas, que sequer têm o poder de crítica aos estados socialistas para além de uma transfiguração direta e barata, porque nenhum conteúdo propriamente político é abordado nestas histórias. E isso é fácil de se entender, afinal, as histórias são direcionadas às crianças, que são bem menos capazes do ato da problematização. Neste sentido, Lee não difere dos primórdios da Marvel Comics, ainda Timely Comics, que criou nos anos 40 inúmeros personagens embandeirados como motivação para a segunda guerra mundial. Logo na primeira edição do Capitão América, vemos o herói que veste e personifica o american way desferir um golpe de boxe nas fuças de Adolph Hitler. Com certeza é preciso entender o contexto sociopolítico da guerra fria e relativizar a participação da cultura pop em um mundo bipartido, mas também é preciso lembrar a vulnerabilidade de um pequeno leitor de HQs nessa mesma época.

As criações de Stan Lee fazem parte de nosso patrimônio cultural mundial e comum. Seu poder de trazer a cultura de quadrinhos para um patamar humano desencadeou muitas mudanças importantes na maneira como lidamos com nossas aspirações e heroísmos pessoais, sendo até hoje fonte de entretenimento legítimo e servindo como um aperitivo daquilo que a totalidade do prazer e da educação que o pensamento mitológico inspirou em culturas antigas ou selvagens. Porém, como toda mitologia, seus heróis se desvinculam de seus criadores no decorrer da História, e seguem vivos pela força coletiva de autores e leitores que procuram cada vez mais adequá-los à passagem do tempo. Confundir, de maneira fetichista, a mente criativa, porém artística e politicamente limitada de Stan Lee, com o efeito mitológico de suas criações, parece consequência do ato de querer-se apenas cultuar o universo dos quadrinhos sem problematizá-lo. Isso é curioso porque fornece munição justamente para aqueles que querem impedir o crescimento cultural desta forma de expressão, os mesmos que proibiram a colossal e alternativa cultura de HQs dos anos 40, permitindo a ascensão de heróis em seu formato light, cujo principal expoente é justamente o velho Stan Lee que aparece, tal qual um Hitchcock acidental, em cada uma das megaproduções cinematográficas da Marvel que são lançadas nos verões americanos.

Ciro Inácio Marcondes não odeia os heróis Marvel

Vida de estagiário: em breve na tevê





















por Pedro Brandt

Não vejo a hora da série Vida de estagiário estrear na tevê. Em novembro do ano passado, passei uns dias de férias em São Paulo, na casa do Vitão, meu primo e diretor da adaptação televisiva da hilária tirinha criada por Allan Sieber. Tive o privilégio de ver três episódios e posso garantir: ficou incrível.

Não vou comentar muito para não estragar a surpresa, mas posso adiantar que a série tem uma pegada de humor que eu não vejo na tevê brasileira. Fico muito satisfeito com isso, não só pelo Vitor, mas também porque estou cansado desse humor sem ideias e enervantemente sem-graça que, com raríssimas exceções, impera na televisão — tanto na aberta, quanto na paga — aqui no Brasil.

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Esta semana, o Sieber postou no blog dele o teaser de Vida de estagiário. Baseado apenas em 1,5 min de vídeo, alguns leitores já vieram jogar pedra. Eles não fazem ideia do que estar por vir. Pelo vídeo, realmente, não dá para ter muita noção do que será a série. Por um lado, se eu tivesse visto apenas esse trailerzinho, talvez também ficasse com o pé atrás. Por outro, se eu tivesse achado palha o que vi em São Paulo no ano passado, nem perdia meu tempo divulgando a parada.

Vida de estagiário será exibido pela TV Cultura e, por enquanto, não tem data de estreia.

Crédito da foto: Manoela de Ombreiras

HQ em um quadro: exército japonês por Hugo Pratt


Exército japonês na segunda guerra mundial (Hugo Pratt/Héctor Oesterheld, 1959): Mais de 10 anos antes de se celebrizar pela genial série Corto Maltese, o grande ilustrador e roteirista italiano Hugo Pratt esteve na Argentina e trabalhou anos com Oesterheld, o maior roteirista platino. Esta imagem é da série Earnie Pike, que está dentre os mais qualificados quadrinhos de guerra do mundo. Oesterheld tinha a fina qualidade de situar a segunda guerra em localidades tão díspares quanto o norte da África, o sul da Itália ou ilhas no Japão, elaborando a diversidade do conflito. Pratt, como se vê, em 1959 já desenvolvera seu traço angulado de belo riscado em preto-e-branco, num requadro panorâmico que deixa, sem que apareçam ideologismos, os japoneses tão assustadores quanto o papel que desempenham na história.

Liniers: um cara macanudo





















por Pedro Brandt

Macanudo, em espanhol, quer dizer supimpa, bacana. Ricardo Liniers, o cartunista argentino dono da tirinha de mesmo nome, é um cara pra lá de macanudo. Tive a oportunidade de perceber isso ao vivo, no mês passado, quando conheci o roteirista e desenhista em Brasília. Ele esteve na cidade para falar sobre seu trabalho em duas noites de palestra (29 e 30 de março) no Instituto Cervantes (que promoveu o evento).

Liniers, 37 anos, conquistou os espectadores com carisma e muito bom humor. No final do primeiro dia de palestra, me aproximei para pedir uns autógrafos. O ilustrador Fernando Lopes, meu colega de Correio Braziliense, perguntou se Liniers não teria interesse de fazer um passeio por Brasília na manhã seguinte, para conhecer alguns monumentos da cidade e visitar algumas exposições. Liniers aceitou no ato. Como eu não trabalharia na quarta de manhã, combinei de fazer o rolê com eles.




Passamos pelo Museu da República, Catedral, Esplanada dos Ministérios e Memorial JK. O argentino se impressionou com a arquitetura retro-futurista da capital brasileira. “O visual da cidade me lembra Sleeper”, ele comentou, em alusão ao filme de Woody Allen lançado em 1973 (O dorminhoco). Liniers é gente boníssima, daqueles caras com quem a conversa pode durar horas. Falamos especialmente sobre quadrinhos: autores brasileiros e argentinos, o mercado das HQs nos dois países, etc.

Depois do almoço, levei Liniers para a Cultura do Casa Park, onde cerca de 30 fãs já esperavam para conseguir desenhos, autógrafos e fazer fotos. Ele é o tipo de artista atencioso. Nas fotos, era só sorrisos. Mais do que simplesmente assinar os livros, fazia um desenho em cada um, um diferente do outro, sempre coloridos, caprichados.

Quem também estava na livraria na ocasião era o editor da Zarabatana, Cláudio Martini. Ele tem feito um trabalho elogiável, lançando títulos de qualidade autoral e com ótimo acabamento editorial. Além de Macanudo, a Zarabatana lançou recentemente outros dois materiais argentinos, a revista semestral Fierro Brasil (coletânea de histórias curtas de autores brasileiros e argentinos) e a Noturno, de Salvador Sanz, que está saindo pela Coleção Fierro.

Dois amigos que também estiveram nas palestra de Liniers comentaram a passagem dele por Brasília em seus blogs: o desenhista Caio Gomez e o desenhista/ roteirista/ roqueiro/ camelô Evandro “Esfolando” Viera. Depois da segunda noite de palestra (que eu não pude comparecer), os dois, mais alguns amigos, continuaram ciceroneando o cartunista argentino e o levaram para tomar umas cervas. Caio escreveu um breve relato do encontro. O Evandro foi mais longe, fez umas fotos e ainda uma HQ sobre o assunto. Liniers, cara macanudo que é, quando voltou para casa, agradeceu a recepção brasiliense com uma tirinha muito simpática sobre Brasília.