RELATO DE VIAGEM FIQ 2018 + ENTREVISTA COM DAVE MCKEAN!

por Marcos Maciel de Almeida

O FIQ 2018 foi bão demais, sô! Pelo menos foi o que deu para sentir após conversar com os participantes do evento. Organizadores, convidados, e expositores – principalmente eles – estavam com um sorriso estampado no rosto. Eu também não vou discordar. Foram cinco dias intensos, mas que valeram a pena. O clima de congraçamento estava disseminado e não se restringiu às paredes da Serraria Souza Pinto. Foram mais que comuns as esticadas ao Maletta – edifício tradicional no Centro de Belo Horizonte que congrega inúmeros botecos, sebos e restaurantes. Sempre equipados com suas indefectíveis mochilas recheadas de gibis, os participantes do FIQ embarcaram em altos papos noite adentro, sustentados por quantidades indecentes de cerveja e torresmo.

E a Raio Laser não ficou fora dessa, claro. Escalados por nosso chefe Ciro Inácio Marcondes, eu e meu melhor inimigo Márcio Jr mergulhamos em mais uma louca aventura. Tínhamos como compromisso cobrir o evento, tarefa na qual teríamos nos saído melhor se não fosse o cansaço e a ressaca. Se bem que o Márcio tem uma justificativa melhor que a minha. Ele era expositor na mesa 164, local em que, dentre outras maravilhas, vendia o quadrinho que escreveu: Cidade de Sangue, desenhado pelo mestre Julio Shimamoto e colorido pelo talentoso Tiago Holsi. O gibi é coisa fina. Capa dura, formato grande e precinho camarada. Mas bem, isso é papo para outra resenha. (Falando nisso, cadê minha cópia, Márcião?)

Mesa 164: Raiúkas + Tiago Holsi

Não vou entrar em detalhes sobre a programação do FIQ, disponível no site , mas não posso deixar de mencionar que foi muito bem sacada. Meus momentos favoritos? Palestra do Dave McKean, em que o capista de Sandman contou um pouco sobre sua trajetória, mostrando – para desespero dos céticos – que é um artista de mão cheia e não apenas nas HQs. McKean narrou sua experiência em outras mídias, como o cinema e a música. Irriquieto, o artista britânico confidenciou que não consegue parar de transitar por outras áreas, sempre com uma entrega descomunal e imersiva. Foi emocionante estar perto dessa estrela generosa e humilde que brilha com luz tão intensa. Melhor parte? Quando ele perguntou: “quem aqui faz quadrinhos?”. Metade do auditório levantou a mão. “Legal, mas eu acho que todo mundo aqui deveria estar fazendo quadrinhos...”. Silêncio.

Dave McKean fazendo o sonho dos fãs voar mais alto.

Outra palestra bacana foi a “Editando quadrinhos no Brasil”, com os responsáveis pelas editoras Veneta, Balão, Mino e Lote 42. Foi um baita aprendizado ver como esse povo aposta com criatividade e ousadia numa forma de arte que – como a maioria delas – é tão desprestigiada no Brasil. Parabéns, rapaziada.

Fina flor da editoração quadrinística brasileira

Oportunidade bacana no festival foi poder assistir animações – escolhidas pela curadoria do FIQ – no MIS Cine Santa Tereza. Pensa num cineminha acolhedor e confortável, com programação cultural impecável. E o melhor: de graça! Só no FIQ? Não, meu caro, o ano inteiro! Parece milagre, mas é verdade. Eis o Brasil que dá orgulho. Uma salva de palmas para os envolvidos. Qual filme assisti? “Só” deu para pegar o Tekkon Kinkreet, baseado no mangá Preto e Branco, do Taiyo Matsumoto. O “só” foi entre aspas, porque quem já viu essa belezura sabe do que estou falando. Se não viu, veja. Se já viu, espalhe a palavra.

MIS Cine Santa Tereza

Mas qual foi o momento mais hiper-mega-blaster-topzera do evento? Todos. O FIQ desse ano foi o verdadeiro lugar de gente feliz. Acho que devia ser algo na água do local. (Aliás, podiam disponibilizar mais bebedouros, hein?). O clima de alegria e cumplicidade era contagiante. Sabe aquele esquema de reencontrar a galera do Segundo Grau? Esqueça! O FIQ não tem nada a ver com isso. Aqui o pessoal está olhando para frente. A vibe é mais no estilo “juntos novamente pela primeira vez” ou “nunca te vi, sempre te amei”. E não falo isso apenas pelo aspecto artístico em si ou pela camaradagem artista/artista e artista/público. Todos os quadrinistas expositores com quem conversei estavam bastante satisfeitos com o resultado das vendas. Acho que o fato de não termos tido FIQ no ano passado e o medo de que o evento não rolasse esse ano por causa da greve dos caminhoneiros contribuíram para esse espírito do “vamos celebrar, porque o FIQ tá rolando mesmo galera!”. E o grande charme do evento é que ele se apoia exclusivamente nos quadrinhos. Claro que tem outros produtos correlatos, mas o carro chefe são mesmo os quadrinhos. Grandes, pequenos, caros, baratos, PB ou coloridos. Eles comandam a festa, e por isso não há necessidade de trazer algum ator norte-americano bombado ou que esteja bombando.

Mas bem, para que nosso chefe na Raio Laser não pense que foi prejuízo investir em nossos suntuosos hotéis e em nossas caríssimas diárias para cobrir o evento, fizemos esse relato vagabundo e algumas entrevistas. Cinco no total. Vou manter suspense sobre os próximos entrevistados, mas decidimos começar com pé na porta e soco na cara. Ninguém menos que Dave McKean numa entrevista chuchu beleza exclusiva para a Raio Laser

Entrevista DAVE MCKEAN – por Marcos Maciel de Almeida e Márcio Jr.

Nascido em 1963 em Maidenhead, Inglaterra, o desenhista/pintor/ilustrador/músico/cineasta/escritor Dave McKean tornou-se mundialmente famoso ao ilustrar as capas da maxissérie Sandman, escrita por Neil Gaiman, durante o final da década de 80 e meados dos anos 90. O trabalho do autor é rico em colagens, efeitos com objetos e fotografias. Seu estilo arrojado e de grande densidade artística faz a cabeça dos fãs e também dos não leitores de quadrinhos. O trabalho de McKean e Gaiman se cruzou diversas vezes, em obras como Violent Cases (1987), Sinal e Ruído (1992) e Mr. Punch (1994), todas lançadas no Brasil. Entre 1990 e 1996, Dave escreveu e desenhou o calhamaço Cages, que venceu o prêmio Harvey de Melhor Lançamento e Melhor Graphic Novel. Em 2016, McKean publica Black Dog, recentemente lançado no Brasil pela Editora Darkside.

Black Dog

Neste último trabalho, na qual interpreta – com bastante liberdade – a trajetória do soldado/artista plástico britânico John Nash, McKean mostra-se um artista no auge: cada um dos capítulos do livro é contado com um estilo artístico diferenciado, que parece reverenciar as várias fases da carreira do quadrinista.

Black Dog evidencia a maturidade de sua arte, pronta para continuar nos deixando de queixo caído pelas próximas décadas. Confira, abaixo, trechos de uma rápida – e concorrida – entrevista que ele gentilmente concedeu à Raio Laser (MMA):

Raio Laser: Onde você acha que estaria hoje caso a revista do Sandman nunca tivesse existido?

Dave McKean: Em algum outro lugar...(risos). Sim, eu acredito que Sandman tenha sido um momento de sorte. Havia um espaço, nos anos 80, na DC e na Marvel, em que nós podíamos tentar coisas e em que Neil podia escrever as histórias que ele queria. E eu podia brincar com as capas e fazer o que quer que me desse na telha. E ninguém questionava isso.

Durou apenas alguns anos, mas tivemos muito material interessante feito naquela época.

Mas eu ainda estaria fazendo o que estou fazendo agora. Estou escrevendo e desenhando não porque eu desenhei as capas do Sandman. Eu ainda estaria fazendo exatamente as mesmas coisas ainda que o Sandman não tivesse existido.

Raio Laser: Você trabalha com diversas mídias e tem uma ligação muito estreita com quadrinhos e música. Como essa ligação ocorre em seu trabalho? Você é quadrinista, músico, dono de gravadora... Em que medida pensa em seus quadrinhos como musicais e em sua música como imagética?

Black Dog

Dave McKean: Música e arte eram minhas duas paixões quando criança. E essa foi minha escolha. Eu tinha, profissionalmente, que optar pelo caminho da arte ou da música. Eu sentia isso. Então fui para a escola de artes, porque isso parecia a coisa certa para fazer, mas eu sempre senti falta da música. Então, tem sido fantástico poder fazer essas duas coisas se encontrarem em projetos como Black Dog. Meu quadrinhos favoritos soam como música. Eles não são preenchidos com muito texto. Eles são, preferencialmente, sem texto. O importante é que a narrativa e as imagens fluam como música. Elas têm essa liberdade.

E a música que eu escrevo tende a possuir um elemento narrativo. Eu não sou muito bom em escrever melodias que não tenham uma razão. Ela tem que – de alguma forma – estar contando uma história. Então, música e narrativa são muito importantes para mim. Por algum motivo, a narrativa é algo muito fora de moda no mundo das artes hoje em dia. Enquanto que, para mim, ela é um elemento crucial para nossa cultura. É como transmitimos para as novas gerações a maneira pela qual nos percebemos como seres humanos.

Raio Laser: Seu trabalho sempre teve um aspecto de bricolagem, de colagem de vários elementos. Em determinado instante, a presença da manipulação digital surge em sua obra. Como vê isso hoje? Haveria uma sensação de que alguma coisa ficou datada ou o trabalho anterior funciona como uma espécie de marca daquele tempo? Como enxerga o trabalho anterior em retrospecto?

Dave McKean: Bem, eu comecei tentando fazer imagens que fossem translúcidas e com aspecto onírico, mas utilizando meios físicos, como fotografia, múltiplas chapas fotográficas, colagem física de objetos. Eu consigo obter cerca de 20% daquilo que estava imaginando na prancha (de desenho). Mas então eu comprei um computador e li o manual do Photoshop. E foi como se alguém o tivesse escrito para mim! Era exatamente o que eu queria fazer. E eles conseguiram alcançar esse resultado da mesma maneira que eu teria feito. Então eu senti que o Photoshop tinha sido feito para mim. Um mês depois de começar a usar ferramentas digitais, eu comecei a obter de 50 a 70% – do que eu estava imaginando – no produto final. Eu adorei o controle e a manipulação que ele me deu sobre as imagens. Além disso, tinha o fato de que você podia testar coisas muito rapidamente, salvar as versões preferidas... Era como se estivesse brincado. Eu achei a experiência muito divertida. Mas o que acontece é que comecei a ver muitas outras pessoas utilizando ferramentas digitais. E eu também fiz muitos trabalhos usando Photoshop por muitos anos. Bem, eu tive prazer em brincar com essas ferramentas, mas eu sinto muita falta da humanidade presente numa imagem desenhada ou pintada em meio físico. Eu ainda uso Photoshop o tempo todo, mas é apenas para controlar a imagem no final do trabalho. E a imagem e a pintura são feitas por meio físico. E se, eventualmente, uma página ou parte específica da história requer uma experiência digital estranha ou algo do tipo, então eu uso (o Photoshop), mas é apenas uma ferramenta com muitos truques. Não é a coisa mais importante. Não é ele quem dá as cartas.

Raio Laser: Seu trabalho envolve diferentes formas de arte. Nos quadrinhos, como você enxerga seu trabalho? Quais seriam seus pares? Se fôssemos fazer um recorte da cena quadrinística mundial, em que lugar poderíamos encaixá-lo? Em outras palavras, qual seria sua turma?

Dave McKean: É difícil dizer, porque eu não sinto que faça parte de um grupo específico, embora haja muitas pessoas pelo mundo pelas quais eu sinta grande empatia. Mas por uma razão ou outra, eu não sinto como se fizesse parte daquele grupo. Por exemplo, meus artistas favoritos nos quadrinhos são italianos como Lorenzo Mattotti. Ele fazia parte de um grupo chamado Valvoline. Todos tinham mais ou menos a mesma idade, cresceram juntos e encorajavam uns aos outros. Eu não tenho um grupo como esse, mas eu sinto um grande carinho e empatia pelo Lorenzo Mattotti, pelo José Muñoz, Cyril Pedrosa... bem, você sabe. Muita gente. Mas eles estão em todos os cantos. E eu não posso dizer que nós realmente façamos parte de uma turma, porque somos muito diferentes. Mas essas são as pessoas com as quais eu sinto uma forte conexão.

Raio Laser: Seu trabalho é poderoso e está fortemente disseminado em várias mídias, como quadrinhos, cinema e música. Como gostaria de ser lembrado?

Dave McKean: (Gargalhadas...) Meu Deus! Na verdade, ficaria feliz em ser esquecido... (risos). Na verdade eu gostaria que alguns dos livros que estou fazendo agora fossem lembrados, porque eu sinto que eles são realmente sobre alguma coisa. São sobre temas interessantes e eu espero que durem um pouco de tempo. Estou feliz que alguns dos trabalhos que fiz 20 ou 30 anos atrás tenham lugar na História das HQs. Eu acho isso muito bacana. Mas não é necessariamente – eu espero – o tipo de material que as pessoas estarão olhando daqui a 100 anos. Eu espero que eu ainda não tenha produzido meus melhores trabalhos. Espero que o melhor ainda esteja por vir.

Notas sobre os quadrinhos documentais

Bom saber que a velha Raio ainda atrai bons articulistas. Por exemplo, apresentamos agora este Lucas Reis, crítico de cinema e quadrinhos em plena ebulição, que nos trouxe este ótimo artigo de introdução aos quadrinhos documentais. (CIM)

Lucas Reis é graduando em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e, desde o início de sua trajetória acadêmica, pensa inter-relações entre cinema e quadrinhos, especialmente na área de educação. Atualmente produz críticas cinematográficas para as revistas Janela e Ganga Bruta.

Por Lucas Reis

Durante a década de 1960, houve a ascensão dos quadrinhos underground nos Estados Unidos. Em uma época de florescimento da contracultura, a política e a arte do país sofreram abalos, e produções que antes eram relegadas a um pequeno público passaram a ter mais visibilidade. O movimento hippie - que questionava ações militares dos Estados Unidos e defendia um modo de vida mais próximo da natureza e distante do padrão burguês - crescia, especialmente entre os jovens. Um festival como Woodstock conduzia uma multidão para shows de rock e um consumo desenfreado de drogas e filmes, como Bonnie e Clyde - Uma Rajada de Balas (Arthur Penn, 1967), que narra o romance de um casal de criminosos durante a Grande Depressão, e Sem Destino (Dennis Hopper, 1969), sobre dois traficantes que cortavam as estradas do país em suas motocicletas, faziam um enorme sucesso de público que se identificavam mais com aqueles personagens do que em filmes já datados, como A Noviça Rebelde (Robert Wise, 1965) ou Alfie (Lewis Gilbert, 1966), mas que ainda concorriam nas grandes premiações do cinema como o Oscar e o Globo de Ouro.

Sem Destino: dispensa apresentações

As mudanças agudas no consumo dos produtos culturais nos Estados Unidos também impactou as histórias em quadrinhos. Em uma década que os valores dominantes foram intensamente questionados, autores como Robert Crumb, Gilbert Shelton e Harvey Pekar foram importantes para disseminar narrativas distantes do mundo de fantasia dos super-heróis que tomavam conta dos quadrinhos mainstream. Muitos leitores se interessavam menos por quadrinhos fantasiosos de vigilantes mascarados e mais por histórias marcadas pela rebeldia e por subverter a lógica das narrativas tradicionais e dos aparelhos estatais, especialmente o american way of life, que passava a ser questionado por grupos que não se encantavam por um padrão de vida ditado pelo governo. Até então se vendia a ideia de que, com trabalho árduo e determinação, qualquer pessoa, independente do seu passado, teria condições de uma vida confortável no futuro. 

Shelton: no caminho entre a contracultura e a autobiografia em quadrinhos

Sacco: pioneiro no jornalismo em quadrinhos

Uma característica comum dos quadrinhos underground

era a autorreferencialidade, ou seja, os autores como próprios personagens de suas obras assumindo um tom autorreflexivo ou biográfico. Aqui no Brasil, por exemplo, Angeli assumiu essas influências e costumeiramente se colocava como personagem de suas próprias histórias. Inclusive, em um arco famoso, o autor “adentrou” sua narrativa para matar a personagem Rê Bordosa, que fazia muito sucesso na época. Nos Estados Unidos, Joe Sacco utilizou da influência dos autores underground para produzir seus trabalhos. O livro O Derrotista, publicado no Brasil, que compila alguns de seus trabalhos entre 1988 a 1992 para a revista Yahoo, carrega esses traços e a metanarrativa permeia todas as histórias. Ainda não são os trabalhos que deixaram o autor mais conhecido, ao fazer grandes panoramas sobre regiões em guerra e se utilizando da linguagem dos quadrinhos, como no clássico Notas Sobre Gaza. Em O Derrotista, estamos diante de um estudante de jornalismo e suas desventuras para comer um bom bife e que comenta cheio de deboche sua categoria de “maior autor de história em quadrinhos do mundo”, mesmo que ninguém saiba disso. Em 1993, contudo, Sacco lança o primeiro volume de um trabalho que muda o seu patamar como autor de histórias em quadrinhos: Palestina - uma nação ocupada, em que trabalhou de 1993 a 1995 e foi compilada em livro em 1996. Nessa história, o autor faz uma investigação profunda dos habitantes da Palestina através de entrevistas com diversas pessoas de diferentes classes sociais e posições de poder que estavam naquele território em conflito.

Há uma veia jornalística no trabalho de Joe Sacco que vai além da sua formação acadêmica. O autor se fixa nos territórios que são retratados em suas narrativas, faz diversas entrevistas que são documentadas e - várias vezes - inseridas nas histórias, faz observações detalhadas e busca sempre analisar dois lados das situações em que encontra. E não há imparcialidade nos quadrinhos de Joe Sacco, ele assume uma visão do contexto que está inserido. Mesmo que, para o autor, seja importante a documentação e a exposição dos fatos, não há nem mesmo o desejo de ser imparcial, pois a própria condição de se colocar nas histórias é assumir um ponto de vista pessoal para os acontecimentos. Há de se entender, entretanto, que o autor não faz parte do mundo que retrata. A sua condição de forasteiro, especialmente com um passaporte dos Estados Unidos - maior potência bélica do mundo - lhe permite transitar livremente entre as nações retratadas em suas histórias, sem maiores riscos.

Em entrevista para o jornal Estado de São Paulo, em 2010, Joe Sacco declarou que a sua formação em jornalismo foi importante para o seu trabalho nas histórias em quadrinhos e que pensa na sua obra como jornalismo em quadrinhos:

"Quando estava no colégio, eu associava palestinos com terrorismo porque toda a vez que ouvia falar neles tinha a ver com bombas ou ameaças. Então, fui estudar jornalismo e, quando comecei a entender o que acontecia no Oriente Médio, me dei conta: os americanos sempre se colocaram como os grandes expoentes do jornalismo, mas nunca me contaram direito o que está acontecendo. Eu me senti traído pela minha própria profissão. Então, nos anos 1980, quis tirar essa história a limpo… Não estava pensando em criar uma nova… forma de arte ou seja o que for. Não foi uma decisão consciente, foi meio orgânico. Pensei: vou viver essas experiências, falar com pessoas, anotar e colocar isso junto. É claro, eu tinha o background jornalístico e isso teve impacto no formato que a coisa tomou, mas só depois comecei a pensar mais claramente no que estava fazendo. Foi na história da Bósnia (Gorazde) que comecei a pensar conscientemente em jornalismo em quadrinhos". (SACCO, 2010)

Sacco: "os americanos sempre se colocaram como os grandes expoentes do jornalismo, mas nunca me contaram direito o que está acontecendo"

Além de Joe Sacco, há outros autores que chamaram a atenção por trabalhos dedicados a experiências pessoais traduzidas para a linguagem dos quadrinhos, entre o final do século 20 e início do século 21. A iraniana Marjane Satrapi ficou bastante famosa com Persepolis,publicada entre 2000 e 2003 na França e adaptada para o cinema em 2007 pela própria autora. Satrapi concebeu seu trabalho para narrar aos seus amigos franceses sua história pessoal. Diferente dos trabalhos de Joe Sacco, aqui não há uma investigação, entrevistas, busca por fontes ou algo parecido. Por sua vez, há uma mergulho pela memória da própria autora para expor desde seus primeiros anos de vida até a vida adulta e seus caminhos entre Oriente Médio e Europa. Familiares, amigos, ex-namorados e outras pessoas que atravessaram o caminho da autora tornam-se personagens. De certa forma, este quadrinho também reflete o contexto de um espaço geográfico em conflito. Satrapi vivenciou a revolução islâmica no Irã e esteve inserida em conflitos militares na região, mas a forma de lidar com o contexto de guerra difere do adotado por Sacco. 

Existem semelhanças e diferenças entre os trabalhos dos autores citados aqui. Entretanto, há uma proposta teórica que abarca todas essas histórias como jornalismo em quadrinhos. Contudo, por mais que essa definição possa se aplicar ao trabalho de Joe Sacco, distancia-se da proposta de Marjane Satrapi. Devido a isso, atualmente há uma discussão pautada na ideia de esses quadrinhos serem considerados documentais, por ser mais certeira ao englobar uma maior produção dessa forma narrativa. Em artigo publicado na revista Nona Arte, “O Quadrinho Documental e a Tradução da Cidade”, o pesquisador Felipe Muanis faz um panorama de quadrinhos com características documentais: "Todas essas histórias fogem da linguagem habitual do quadrinho fantástico e se aproximam de um caráter mais realista e documental. A maioria é em preto e branco, tem enquadramentos muitas vezes simples, pouco espetaculares e centram suas narrativas na relação de contato entre a cidade e o seu autor, que sempre aparece retratado tomando parte da ação e vivenciando o relato". (MUANIS, 2013)

Se tais características existem nos trabalhos de Sacco e Satrapi, também há inegáveis diferenças. Tomando emprestado as ideias de Walter Benjamin no ensaio "O Narrador - Considerações a obra de Nikolai Leskov", é possível pensar na distinção de Joe Sacco e Marjane Satrapi: "A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem muito o que contar” diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário e o outro pelo marinheiro viajante". (BENJAMIN, 1994)  

Satrapi e sua visão pessoal da documentação em quadrinhos Sacco, como o marinheiro viajante, e Satrapi, como a camponesa sedentária, são analogias que se explicitam na obra dos autores e traduzem suas aproximações com os documentários, pois usam de suas próprias figuras como autores/personagens para construir a narrativa. Se nenhum deles alcança o real, uma vez que são obras ficcionais, eles traduzem suas experiências pessoais por meio de estratégias adquiridas do cinema, do jornalismo, da literatura e das próprias histórias em quadrinhos. Há, contudo, autores em que essas classificações ficam um pouco mais embaçadas. Maus, por exemplo, de Art Spielgeman, publicado entre 1980 e 1991, é a história do pai do autor: um judeu que foi preso em um campo de concentração nazista durante a segunda guerra mundial, narrada pelo próprio Art Spielgeman. Assim, como Satrapi, o autor faz um intenso mergulho em suas memórias. Ao mesmo tempo, está lidando com seu pai, um sujeito distante em última instância, no sentido em que o autor não narra sobre a própria vida. O respeitado prêmio Pulitzer, outorgado a trabalhos de excelência em jornalismo e literatura, concedeu a Maus um prêmio especial por não definir se era uma ficção ou jornalismo. Mesmo assim, é comum enquadrar Maus como jornalismo em quadrinhos. De qualquer forma, a escolha do Pulitzer por uma premiação especial, ao invés de uma definição sobre em qual gênero Maus se encaixaria, expõe a dificuldade de definição para as histórias em quadrinhos compostas pelos autores inseridos nas narrativas.

Maus: inclassificável

A divisão por gêneros fundamenta-se, sobretudo, para estabelecer uma relação de maior proximidade com o consumidor. Tanto um livro policial como um filme musical, por exemplo, se constituem por certas características estruturais que estabelecem um pacto com o apreciador da obra. Ao saber o gênero, o leitor/espectador pressupõe aspectos marcantes do que irá consumir. Nas histórias em quadrinhos é o mesmo, com a exceção de que a subvalorização das narrativas gráficas como produção relevante para se estabelecer nas livrarias faz com que pouco exista de reflexões acerca da constituição genérica das obras. Em outras palavras, há, apenas, uma prateleira para histórias em quadrinhos em cada livraria e autores e gêneros diferentes entre si dividem o espaço sem qualquer diferenciação. Dessa forma, é possível ver as edições de histórias de Robert Crumb, por exemplo, ao lado de Héctor Germán Oesterheld, autor argentino de ficção científica, pois tudo faria parte de um grande gênero: histórias em quadrinhos.

A intenção de questionar a ideia de jornalismo em quadrinhos e pensar em quadrinhos documentais como uma definição mais precisa da produção atual das narrativas gráficas, sendo o jornalismo em quadrinhos uma subdivisão do gênero, está contextualizada com o crescimento das HQs no mercado editorial brasileiro. Recentemente, foram publicados dois livros que remetem a essa questão, pois têm, como protagonistas, os próprios autores: Meu Amigo Dahmer e Não Era Você Que Eu Esperava. A primeira trata da adolescência de Jeff Dahmer, que viria a se tornar um dos maiores assassinos em série dos Estados Unidos, e sua amizade com Derf Backderf, o autor da história. Já na segunda acompanha-se o autor, Fabien Toulmé, e a necessidade de lidar com a sua filha recém-nascida que foi diagnosticada com síndrome de down. A semelhança entre as duas está na forma como os autores/personagens remexem em seu passado para compor a narrativa. Há diferenças entretanto: enquanto Toulmé fica absorto em suas memórias para resgatar todo o início de relação com sua filha recém-nascida, Backderf construiu um panorama da vida de Jeff Dahmer, a partir de diversas entrevistas, para compor o retrato mais fiel possível da adolescência do serial killer. Talvez por Dahmer ser um personagem conhecido do grande público, o autor tenha sentido a necessidade de entrevistar diversas pessoas para a constituição do personagem. De qualquer forma, Meu Amigo Dahmer não se funda no registro do “entrevistismo”. Pelo contrário, regressa ao passado de Backderf, que muitas vezes utiliza a primeira pessoa e conversa diretamente com o leitor. Já Toulmé não sofre com esse problema e não destaca qualquer auxílio para compor sua história.

Não era você que eu esperava funciona como se o autor resgatasse o seu diário e dividisse com o público. 

Autores como Spielgeman, Sacco e Satrapi não são mais sucessos esporádicos. Diversos quadrinistas novos que inscrevem suas narrativas na chave dos quadrinhos documentais têm suas obras lançadas no mercado editorial brasileiro. E, paralelo a isso, cada vez mais editoras e lojas especializadas em histórias em quadrinhos surgem no Brasil, graças à demanda de consumo do público leitor ávido por essas histórias. Sendo assim, é natural, importante inclusive, que novos questionamentos sobre as obras sejam produzidos. Mesmo que ainda seja difícil definir o que são quadrinhos documentais, pois ideias e conceitos sobre essa classificação de gênero ainda estão surgindo, a intenção aqui é dar visibilidade para um debate que deve se amplificar à medida que os quadrinhos se permearem como produtos de destaque nos espaços destinados à venda de livros no Brasil. E, gradativamente, gerar mais reflexões sobre as histórias em quadrinhos no Brasil e suas características estéticas, políticas, econômicas e sociais. 

Especial Editora Draco: quatro resenhas + entrevista

Diversidade de temas e de autores. Esta é a grande aposta da Draco para sacudir o já dinâmico mercado do quadrinho nacional. E é em publicações da editora em gêneros como terror, humor e ficção científica, dentre outros, que a nova geração de quadrinistas brasileiros tem recebido a chance de dar vazão às suas criações. Neste novo post da Raio, resenhamos quatro obras recém lançadas pela editora, todas pertencentes – por coincidência –ao gênero terror. É clichê dizer que publicações que contêm muitos autores – como foi o caso dos gibis analisados – costumam pecar pela irregularidade. Será que também foi o caso dessa vez? Antes disso, confira uma rápida entrevista que fizemos com o editor/escritor/proprietário/faz tudo da Draco, o irrequieto Raphael Fernandes. (MMA)

por Marcos Maciel de Almeida, Lima Neto e Ciro I. Marcondes

Entrevista com Raphael Fernandes (vulgo editor/escritor/proprietário/faz tudo da Draco):

Raio Laser: Defina - para os que ainda não estão familiarizados com o trabalho da Draco - quais seriam os principais objetivos da editora dentro do mercado editorial brasileiro de livros e quadrinhos.

A Editora Draco é especializada em quadrinhos e literatura de gênero, ou seja, nossas publicações são focadas em terror, fantasia, ficção científica, policial, humor, etc. Recentemente, passamos a publicar também obras de referência de não-ficção e quadrinhos jornalísticos. Nosso principal objetivo é trabalhar apenas com obras originais, portanto, não temos interesse em publicar projetos de outros países que não tenham surgido na nossa redação. Aqui você vai encontrar obras feitas especialmente para você e sempre buscando fazer títulos que agradem aos leitores que gostem de cultura pop.

Raio Laser: Grande parte do acervo da Draco é formada por coletâneas. Qual seria o objetivo da opção por este formato? Permitir a participação de número maior de autores? Qual o método utilizado para seleção dos novos talentos? Qual tem sido a receptividade do público para este material? (Foi mal. A pergunta ficou longa pra cacete).

As coletâneas são a forma que encontramos para ter publicações, durante todo o ano, dos principais autores da casa e, ao mesmo tempo, encontrar e revelar novos talentos. Nós conseguimos manter todo nosso time produzindo e melhorando cada vez mais, ao mesmo tempo que o leitor tem sempre novidades para ler. Seria a nossa versão dos comics mensais e das publicações semanais japonesas. Queremos que o público acompanhe nossos talentos e nossas ideias durante o ano todo.

Após desenvolver o tema e a estrutura geral de uma coletânea, abrimos para que novos colaboradores possam enviar seus roteiros, portfólios e projetos para fazer parte da publicação. Nós avaliamos todas as inscrições e selecionamos todos que tiverem potencial, depois juntamos com os autores da casa e buscamos criar times cada vez melhores. Também existem os critérios internos da própria coletânea, que pode exigir alguns tipos de traço específicos e de estilos de escrita. Histórias de um espectro semelhante podem acabar sendo rejeitadas muito mais por baterem com temas já selecionados. Se você tem vontade de ser parte do time de dragões da Draco, as coletâneas são a melhor porta de entrada. Se já foi rejeitado, pode melhorar e mandar novas inscrições.

O público gosta bastante das coletâneas, pois sempre haverá uma ou mais histórias que agradem ao seu gosto. Buscamos sempre compor as coletâneas com um grande leque de estilos e formas de contar histórias. Sempre tivemos uma boa receptividade do público e isso incentiva a produzirmos cada vez mais.

Raio Laser: É quase consenso que o momento atual do quadrinho brasileiro é ímpar. Como você vê o futuro desta cena e qual o papel que a Draco desempenhará nele? Acredita que o modelo atual, com inúmeras editoras pequenas trabalhando em parceria com gigantes do mercado do varejo virtual, seja sustentável?

Foram vários os fatores que nos colocaram no momento atual, sempre cito alguns: Quarto Mundo, Bá e Moon ganhando Eisner, sucesso das CCXPs, a confraternização do FIQ, a profissionalização de editores e roteiristas e, acima de tudo, a popularização dos meios de produção (gráficas com tiragens pequenas, financiamento coletivo, publicações pela internet e divulgação através das redes sociais). Tudo isso somado ao fato de que nós fomos mão-de-obra para quadrinhos do mundo inteiro e chegou o momento de colocarmos nossa vontade de contar histórias pra fora e publicar aqui.

A Draco tem como objetivo principal ser uma editora referência na publicação de histórias originais com autores locais. Cada vez mais estamos desenvolvendo um jeito Draco de contar histórias em quadrinhos e acredito que a resposta de público e crítica seja resultado dessa persistência, dedicação e carinho. Nós realmente acreditamos que podemos fazer um trabalho que vai agradar cada vez mais o público leitor que gosta de séries de TV, cinema, literatura fantástica, música e tal.

Sendo bem sincero, as editores pequenas não têm muita opção quando se trata de distribuir seu material. Afinal, para entrar em uma grande livraria é preciso ter toda uma estrutura. Porém, nós temos trabalhado em quase todas as frentes: estamos nas principais redes de livrarias do país, nas comic shops, fazemos feiras de quadrinhos e literatura por todo Brasil, venda direta em nosso site e, claro, também estamos em todos os grandes varejistas online (sim, até nas Casas Bahia e no Wallmart). E, para não dizer que não estamos nas bancas, nós estamos nas principais bancas de São Paulo através da distribuição feita pelo Worney.

Temos que estar onde o público frequenta e buscar cada vez mais profissionalizar a estrutura como um todo. É uma tarefa árdua, exige muita paciência e muito investimento, mas que aos poucos tem mostrado resultados gritantes. Nós começamos bem modestos e hoje já temos um legado que podemos nos orgulhar de ter realizado.

Resenhas padrão Raio 

Demônios da Goetia

– Raphael Fernandes (Org.) (Draco, 2017): A marca da influência do poder demoníaco nos desejos, tentações e fraquezas humanas pode ser lida como uma metáfora para sentimentos profanos e indesejáveis ou como manifestação real de forças que desconhecemos. Como diz o magista Vinicius Pereira na introdução deste surpreendente

Demônios da Goetia: “Eles existem, mesmo que só na sua cabeça. A mente se prepara, desde as preliminares, para lidar com o demônio. Se ele não tinha consciência objetiva, passa a ter no momento em que você começa a acreditar”.

Essa luxuosa publicação, em papel couché, alta gramatura e cores vermelhas salpicando perturbador preto e branco, tem como proposta se inserir nessa sutil ambiguidade: literalmente ou figurativamente, a sedução propiciada pelo mal existe e afeta diretamente as ações humanas degeneradas. A coletânea, editada por Raphael Fernandes, traz oito histórias altamente perturbadoras carregadas de gore em situações perversas, moralmente repulsivas. São contos a respeito de pactos com os chamados 72 demônios da Goetia, baseados em um grimório com instruções para praticar a arte do Rei Salomão (um tipo de demonologia).

Esta edição é uma das apostas mais sofisticadas da editora, e a tradição brazuca de horror metafísico com presenças de criaturas sobrenaturais repugnantes (de Shima e Colin a Mozart Couto) está devidamente representada neste bem curado compêndio profano. Os rituais de invocação são tão minuciosamente detalhados que rola até um frio na espinha ao tentar imaginar como os autores chegaram a essas informações.

Dentre as coisas sortidas que encontramos por aqui há, por exemplo, a história de abertura, onde um jovem é condenado a olhar para a própria morte em loop, reiteradamente, pela eternidade. O texto bruto e perturbador é de Raphael Fernandes, e a arte de Daniel Canedo, pintada no que parece ser um guache macabro, lembra o grande Jon J. Muth. Os artistas da edição, aliás, expressivos, em geral conseguem obedecer à ordem de equilibrar preto e branco, grafismos perturbadores e o uso pontual da cor vermelha. Uma das melhores histórias é “O Mestre da Arte” (de Caio H. Amaro), ilustrada de maneira prosaica (lembra Fábio Moon) pela brasiliense Flávia Lima. Aqui, um conjurador experiente elabora tramoias arriscadas com demônios cada vez mais poderosos para conseguir salvar a vida do namorado. É surpreendente e desolador.

Outros notáveis destaques estão no conto – esotérico, umbral, hipnótico – de Juscelino Neco, que se destaca especialmente pelo traço vigoroso, mas limpo, de sua arte. Também achei complexa e estupefante a história YHVH, que, mesmo com a arte um tanto amadora de Lucas Chewie, tem um roteiro muito original, capaz de problematizar profundamente a ordem de anjos (extremamente alienígenas) e demônios na esfera humana. Por fim, a barroca O Jogo, com roteiro de Antonio Tadeu e a arte obscura de Ioannis Fiore, estabelece uma espécie de Noite na Taverna com os filhos do cramunhão tentando determinar qual deles executou façanha mais maligna no coração da humanidade através dos séculos. Como é de praxe nesta edição e no próprio gênero (vide os twist ends da EC), temos um final desconfortável e até filosófico.

Demônios da Goetia é um lançamento significativo nas HQs nacionais, ainda que habite as margens, no quadrinho de gênero. A natureza do mal é examinada com propriedade e diversidade de abordagens. Os artistas variam, mas em geral estão em coesão com o conteúdo das histórias. E as histórias, estas inspiram pesadelos. E isso é o maior mérito que uma obra de horror pode almejar. (CIM)

Devorados – Erick S. Cardoso, Cirilo S. Lemos e Márcio R. Gotland (Draco, 2017): Quais são os ingredientes típicos presentes nos gibis da editora Bonelli, como Dylan Dog, Tex, Mágico Vento e etc, que vem fazendo a cabeça da juventude há tanto tempo? Em primeiro lugar, embora pertençam a um universo próprio e amplo, as histórias saem em edições fechadas, então não tem aquele esquema de ter que estar sempre atrás da continuação. Por esse motivo, cada história tem começo, meio e fim, o que desencoraja roteiros com muita embromação, já que, de uma forma ou de outra, terá de haver algum tipo de desfecho. Outra característica comum é a utilização de desenhistas mais completos, capazes de retratar cenários diversos e grandiosos, cenas de ação e grande variedade de personagens. Artistas com poucos recursos (não que isso seja um mal em si) tendem, portanto, a ser rechaçados na indústria italiana. E o que isso tem a ver com Devorados? Tudo. O gibi brazuca seguiu – conscientemente ou não – essa cartilha e se deu bem.

Devorados narra a história de Duran Draconian, membro de uma família outrora respeitada, mas agora decadente. Buscando reviver os longínquos dias de glória do clã, ele aceita participar do mortífero desafio de montagem das Viperas, répteis alados altamente perigosos. A provação envolve a domesticação do animal, que só será conseguida em caso de empatia instantânea entre cavaleiro e montaria, no melhor estilo Avatar. Caso o dragão não vá com a sua cara, o preço a ser pago será a própria vida. Sem dar spoilers, gostaria de alertar para o final da história, que de forma inesperada e chocante, explica o título desta interessante HQ.

É promissor perceber que Devorados é uma aventura num universo já pré-estabelecido, com dinâmicas e personagens próprios. Fiquei curioso para ler novas histórias de Duran Draconian. Espero que esse lançamento seja apenas a ponta de lança de uma série de novos títulos passados naquela realidade. Fica a expectativa de que esta estreia tenha sido apenas um tira-gosto antes da chegada de um prato de macarronada preparado pela trindade Cardoso, Lemos e Gotland. (MMA)

A Teia Escarlate (Série Tempos de Sangue) – Eduardo Kasse, Raphael Fernandes, Clayton InLoco e Daniel Canedo: Quando era mais jovem, absolutamente amava os romances das crônicas vampirescas de Anne Rice e o RPG Vampiro: a Máscara. Este material tinha uma visão sobre os mitos dos vampiros que demonstrava absoluta devoção à tradição literária do gênero e ao mesmo tempo os trazia com elegância para a (então) contemporaneidade. Os vampiros podem estar fora de moda (hoje, tudo é zumbi), mas no meu coração ainda reside aquele apelo fatal e romântico, que une beleza e morte, dos mitos que aprendemos a amar.

A Teia Escarlate, formado por trechos em quadrinhos escritos por Raphael Fernandes e por pequenos contos complementares do escritor Eduardo Kasse, faz parte de um conjunto de romances (uma pentalogia) que efetiva um universo expandido em que vampiros à moda de Anne Rice atravessam os séculos em fases diferentes da humanidade, cometendo atrocidades, manipulando a ordem mundial e se refestelando com seus prazeres hedonistas.

Em princípio seria uma ótima pedida para mim, fã do gênero, mas lendo estes contos e quadrinhos percebi que esta abordagem de fato não envelheceu tão bem. A nobreza aristocrática deste tipo de vampiros, somada ao apelo brutal da morte e do sangue, acabaram se tornando um tanto quanto cafonas. A Teia Escarlate conta justamente a trajetória de uma imortal romana, filha de uma deusa, que vai consignando seus desejos malévolos em épocas distintas, acompanhada por coadjuvantes que interferem em sua vontade primordial. Confesso que Fernandes está menos inspirado aqui do que em Demônios da Goetia. As artes de InLoco e Canedo (também melhor em Demônios...) não chegam a incomodar, mas para mim não se tornaram exatamente ativos para o gibi. E os contos de Kasse, com o perdão da crítica, me pareceram um tanto grosseiros, com imagens literárias que misturam kitsch e gore, além de serem narrados numa prosa simplista demais. O apelo nostálgico é legal, mas Anne Rice só tem uma mesmo. (CIM)

Despacho – Fernando Barone e Samuel Sajo (Org.) (Draco, 2017): Em algum momento entre os anos de 1988 e 1992, recordo de ter me familiarizado com o termo “despacho”. Eu e mais alguns amigos de escola criamos o costume de desbravar o cerrado fechado que circundava nossa escola. Hoje em dia tudo virou cidade, mas há 30 anos era só aventura áspera e espinhosa. Algumas centenas de metros mato adentro havia uma encruzilhada de trilhas e foi lá que vi meu primeiro ritual de “macumba”: uma farofa, velas, uma garrafa de 51, charutos e um resto de comida que deve ter servido de almoço para os saruês do local. Havia um misto de medo e excitação. Como alunos de uma escola católica, aquilo não era só profano, era quase diabólico. Outras visitas ao local diluíram o medo inicial e a intimidade até permitiu que o medo desaguasse em desrespeitosas goladas de vinho anônimo e baforadas de charutos fedorentos. O medo e o posterior desrespeito são frutos de uma ignorância de duas cabeças: a falta de conhecimento típica da juventude e o pertencimento do grupo de alunos a um círculo social que excluía e demonizava elementos culturais de matrizes africanas. Tudo muito anos 80, lógico.

Quando me caiu nas mãos o volume de Despacho, da editora Draco, imaginei que eu reencontraria algo do medo e da profanação que marcou esse meu primeiro contato com o ritual. Sabia que o que estava sendo apresentado era mais variado que isso, que buscava resgatar um terror brasileiro marcado por causos e maldições e que teve nos anos 70 seu momento mais criativo. O título até me pareceu ofensivo, já que não estávamos mais em 1988 e a cultura afro-brasileira não sofre mais do mesmo obscurantismo de 30 anos atrás (embora continue padecendo de outras formas de exclusão), mas imaginei que esse anacronismo pudesse ser uma abordagem irônica que se abrisse a uma atualização desse discurso.

Apesar da bela arte de capa, o que encontrei no miolo da revista foi decepcionante. Um amontoado de “sacadas” mal aproveitadas narradas com uma arte confusa e embrulhadas em um senso comum preguiçoso que se esconde sob rótulo de trash. O medo e a profanação estão lá, mas devido a problemas editoriais, esse medo não se sustenta e o terror resultante emerge da percepção do potencial desperdiçado. Já a profanação que aparece nas páginas esbarra num discurso obscurantista digno da doutrina de minha antiga escola.

Por estes problemas de edição, fica difícil se entreter com a interessante premissa de O Diabo Que Te Carregue, uma das duas profanações do Sítio do Pica Pau Amarelo que fazem parte da antologia. O trabalho de Victor Freundt, que escreve e desenha a história, esbarra em uma confusão visual que atola toda a leitura, que é deixada ainda mais lamacenta graças ao texto carregado de um sotaque “caipira” de difícil leitura. A experiência lembra uma viagem de 5 quilômetros em uma estrada de terra para a fazenda que leva 5 horas de duração. A outra referência aos personagens de Monteiro Lobato busca uma roupagem moderna, mas também padece de uma arte confusa assinada pelo organizador do volume, Samuel Sajo, e roteiro de Airton Marinho. Em Brutalizados no Sítio, um grupo de “aberrações” sequestra e estupra um “pai de família” numa história que causa náuseas mais pela utilização infeliz de clichês sobre a transsexualidade do que por sua ousadia estética. Da mesma forma, em Segredos, com roteiro de Sajo e arte de Rafael “Abel” Vasconcelos, encontramos um confuso sincretismo entre igreja católica e cultos africanos que termina por atrelar uma imagem de desequilíbrio e psicopatia às religiões afro-brasileiras. De forma mais clara essa balança vai pender para o lado judaico-cristão em Dízimo de Sangue, história do personagem O Pastor de Raphael Fernandes e Juliano Kaapora, um Constantine cristão que combate as forças demoníacas... não preciso descrever mais que isso.

O restante da HQ esbarra em narrativas mal contadas, didatismos ofensivos, descaracterizações, cortes abruptos e diagramações confusas. No geral, este despacho não vinga e o que resta é um sentimento de frustração. A HQ desperdiça bons ingredientes: com destaque para a arte bela e carregada de Victor Freundt, mas que carece de um editor para desatar o nó da diagramação; o estilo fumetti promissor mas ainda burocrático de Abel; e a inegável potência da arte de Sajo que mostra um grande potencial expressivo, mas é completamente perdido na impressão tosca e diagramação confusa.

No mais, Despacho é apenas mais um olhar confuso e imaturo sobre um assunto tão rico quanto a cultura nacional e suas vertentes afro-descendentes e perpetua uma perspectiva tendenciosa de uma classe de pessoas que enxerga rituais de outras religiões como uma brincadeira diletante, não muito distante dos meninos que “chutavam macumba” no intervalo da aula. (LN)

Rapidinhas Raio Laser #10

por Ciro I. Marcondes, Marcos Maciel de Almeida e Pedro Brandt

"Um traidor entre nós!" Será que ele está na Raio Laser? Será a Raio Laser um antro de traidores mancomunados para defenestrar o quadrinho nacional, escrevendo resenhas de mau gosto e esculachando o herói diário que é nosso cartunista independente, que finaliza suas histórias com o nanquim do próprio sangue? Haverá uma resolução para acabar com estes traidores e encerrar a Raio Laser? Será o traidor o dissimulado, de humor com gosto duvidoso, Marcos Maciel de Almeida? Será o irremediavelmente sardônico Pedro Brandt? Será o gangsterzão Lima Neto? Será o onipresente Márcio Jr. com seu "touch of evil"? Ou será o amargo e desiludido Ciro Inácio Marcondes? Bem, a crítica é sempre uma institucionalização dos traidores (como já previa a revista NME), uma corporação de patifes, escroques e pessoas de caráter questionável. O bom crítico deve afundar a faca nas costas e trair com a mais assertiva convicção. Estamos aí, estamos vivenciando nossa diária sexta-feira da maldade. Sem recalque, sem camaradismo youtubeiro. 

Seguem mais facadas em coisas interessantes de editoras como Veneta, Mino e Avec. Além de trabalhos independentes feitos do esgotamento quase total do quadrinista brasileiro. (CIM)

PS: essas resenhas tão totalmente de boa, na verdade!

Todas as Rapidinhas Raio Laser

Rapidinhas Catarse

Wasteland Scumfucks – Terra do Demônio

- Yuri Moraes (Veneta, 2017): Em 2012 escrevi uma resenha bem sacolejada do gibi Garoto Mickey, romance gráfico de Yuri Moraes publicado pela dobro. Considerei que o cara tinha talento, mas o quadrinho era muito autoindulgente e até um tanto paranoico com sua possível recepção crítica. Pois bem, anos depois, Yuri volta com algo conceitualmente muito mais impactante e manda um dos quadrinhos brasileiros mais originais dos últimos tempos. É importante frisar que precisamos esperar e dar chance para os autores amadurecerem. Vamos lembrar que Chaplin fez uns 50 curtas antes de dirigir seu primeiro longa-metragem (que é O Garoto, de 1921. Not that anyone cares). 

Produzir um romance gráfico é um sacrifício que muitos autores corajosos se arvoram ainda no começo da carreira. Muitas vezes os resultados são desastrosos, mas acho que a rodagem que esse esforço produz não é em vão. Tem gente que defende que se deve esperar o momento certo (ou seja: mais amadurecido) para se arriscar neste gênero, mas eu apoio estes kamikazes. Nada enternece a experiência melhor do que a própria experiência. Yuri Morais sofisticou suas ideias. As dores de crescimento são visíveis, mas estão cicatrizadas. 

Digo tudo isso para comentar a porraloquice bem-vinda que é Wasteland Scumfucks – Terra do Demônio. Yuri é um cara que visivelmente manja de um bando de coisas – de mangá shonen ao proto-punk americano dos anos 70 –, e essas influências aparecem muito bem mapeadas neste quadrinho grindcore que seria uma espécie de mundo em que Hora de Aventura tivesse sido criado pelo Lovecraft. 

O plot é escroto e delirante: GG (inspirado no doentio ícone da iconoclastia G.G. Allin), escravo numa prisão-ditadura, com ajuda de um cientista arrogante e um robô com aspirações de liberdade, consegue escapar e se juntar a outros personagens tão pitorescos quanto para entrar na chamada “Terra do Demônio”. Este lugar, meio Mordor, meio Terra de Ooo, meio (dãrhl) Oz, é um celeiro de atrocidades: canibalismo, parricídio, etc. Lembra um pouco aquele episódio de Rick and Morty em que eles vão parar num reino “fofo” onde o rei era um estuprador de banheiro. Yuri apela no non-sense, nos diálogos agressivos num nível de humor negro que eu geralmente aprecio e na pesada (porém divertida) escatologia.

A arte está mais simples e estilizada do que em Garoto Mickey, com um funcional colorido chapado em preto e vermelho, dando a entender o esquematismo do gibi. Terra do Demônio tinha tudo para virar uma HQ cultuada. Tem todos os elementos: referências maneiras sem clichês, diálogos cortantes e memoráveis, humor de primeiro nível e uma dose cavalar de politicamente incorreto. Uma pena que todo o lobby dos quadrinhos hoje seja para coisas edulcorantes e que se pretendem profundas e edificantes dentro dos padrões morais atuais, mas que são visivelmente superficiais. Assim, como Diego Sanchez, Yuri Moraes é mais um que sai da nossa “treta de 2012” fortalecido. (CIM)

Contos do Cão Negro – Volumes I e II – Cesar Alcázar e Fred Rubim (Editora Avec, 2016/7): Quando recebi meus exemplares de A Canção do Cão Negro, tive quase certeza de que se tratava de material gringo. Afinal, não é tão comum nestas bandas encontrar, num mesmo pacote, publicações bem impressas, edição caprichada, paleta de cores de extremo bom gosto e identidade visual bem definida. Mas sim, Contos do Cão Negro está entre nós e é nacional. Para quem não leu, a grande referência aqui é o nada doce bárbaro de Robert E. Howard, que certamente foi leitura de cabeceira dos autores. Não que Cão Negro se resuma a isso, mas é uma influência inegável. 

O roteiro de Cesar Alcázar é competente para mostrar as aventuras do protagonista Anrath, em que pese os bizarros nomes escolhidos para batizar as cidades e personagens da HQ, tais como Grainne, Limerick e Clontarf (!). Entretanto, o gibi se sobressai mesmo é pela qualidade do desenhista/arte-finalista/colorista Fred Rubim. Dono de um belo traço, altamente estiloso e rústico – bastante apropriado para o tom sombrio do gibi –, Fred tem como principais virtudes o talento para desenhar locações e cenas de impacto. As sequências de ação, no entanto, carecem de maior sofisticação, já que, por vezes, percebe-se que o artista não deu muita bola para elas. 

Embora às vezes conte com diálogos com pouca fluidez, Cão Negro tem uma história de fundo envolvente, que desperta no leitor a curiosidade de chegar ao desfecho. E as expectativas são recompensadas, especialmente pelo fato de os autores engrossarem o caldo com a participação de entidade/divindade inspirada nos mitos de Cthulhu, sempre muito bem vindos. 

Infelizmente há uma queda sensível na qualidade da arte entre o primeiro e o segundo volume. Tem-se a forte impressão de que este último foi feito de forma mais apressada e com menor planejamento, já que há grande quantidade de imagens que estão mais para rascunho que para arte-final. Mas tudo bem, nada que o lançamento de um terceiro volume não possa redimir. (MMA)

Market Garden - Bruno Seelig (Editora Mino, 2017): Bruno Seelig é um nome para se prestar atenção. E caso você ainda não faça isso, visite agora mesmo o site do quadrinista gaúcho e entenda o porquê. As ilustrações de Seelig são daquele tipo carregadas de informação, com referências e citações diversas – cinema, quadrinhos, TV, rock, design gráfico - enfim, um apanhado geral de cultura pop fácil de descrever, mas que alcança um resultado além da simples junção das partes que formam essa mistureba, sendo tudo muito bem sacado e retrabalhado no traço do autor, dono de uma personalidade imediatamente reconhecível. Se Seelig fosse apenas ilustrador seria o suficiente para ser fã do cara e ficar babando com seus desenhos. Mas o filho-da-mãe ainda é um baita de um narrador, daqueles que dá gosto de ler as HQs.

Ele domina, como poucos jovens autores nessas plagas, a arte de contar visualmente uma história. O timing de sua narrativa é absurdamente bem-executado, ou seja, o tempo dos acontecimentos, os momentos de fala e os de silêncio (para causar diferentes sensações) e como eles são apresentados ao leitor (com closes, planos, contraplanos e angulações de câmera diversos) é eficiente e adequando, nada parece apressado ou devagar demais. Como num bom filme. Bruno Seelig tem o olhar apurado de um montador e a sensibilidade conceitual de um diretor.

Seu traquejo como roteirista e criador de diálogos acompanha seu talento com as outras categorias.

Market Garden, propositalmente ou não, mira na tão em voga nostalgia dos anos 80, ainda que a história se passe na década de 90. A HQ tem como protagonistas cinco amigos entrando na adolescência e vivendo os dilemas típicos da idade: aceitação, escola, garotas, amizade, morar com os pais, futuro profissional, etc. e tal. Poderia ser mais um quadrinho (ou filme ou série ou animação) com essa premissa. Mas entre a linha tênue entre o clichê a uma representação credível e divertida, a obra está mais pro lado de cá (onde estão também Stranger Things e Apenas Um Show).

Na seara dos quadrinhos, séries como Locas, do californiano Jaime Hernandez, ou Xampu, do paulistano Roger Cruz, habitam universos semelhantes, mas com um diferencial: trazem consigo uma inegável marca autoral e um relato bastante fidedigno de uma época. E, nelas, a visão particular desses autores, suas dores e alegrias, somam como um ingrediente que faz toda a diferença no resultado. Em comparação – injusta, talvez – a HQ de Seelig pode soar menos espontânea. Seus rapazes são hipsters que não existiam naquela época. Do grupo de cinco, apenas três – pelo menos até aqui – têm personalidades marcantes, mais trabalhadas. E suas sensibilidades não parecem brasileiras, mas importadas, como personagens que conhecemos em filmes na TV (aberta, pré-cabo), não durante o ensino médio ou numa vizinhança de uma metrópole brasileira. A HQ, aliás, poderia se passar nos EUA. São detalhes perceptíveis, mas que não chegam a tirar o brilho do conjunto. Seria Market Garden apenas um cartão de visitas do autor para chegar aos comics – ou ir além dos quadrinhos, para depois abandoná-los, como fez seu conterrâneo Rafael Grampá? Tomara que não. Com um pouco mais de pretensão e ousadia, Bruno Seelig tem tudo para se tornar um dos grandes autores de sua geração. (PB

Salto – Rapha Pinheiro (Editora Avec, 2017): Aqui mais um exemplo de romance gráfico lançado ainda no início da carreira do autor. Rapha Pinheiro estudou em Angoulême em 2016 e este Salto é o resultado de sua residência. Trata-se de uma exótica fábula com pretensos elementos steampunk situando-nos numa sociedade de povos do fogo (digo: literalmente feitos de fogo) que se acotovelam dentro de uma cidade movida a vapor, dentro de uma grande caverna. Eles se refugiaram lá por conta de uma colossal chuva no lado de fora que os traumatizou para sempre. A fábula em si, com intenção filosófica remetendo diretamente à alegoria de Platão, é bem sacada e vale o esforço de leitura graças a essa ambientação criativa. Há um planejamento no design (social, tecnológico e arquitetônico) deste mundo que abre bem as portas para boas histórias. O problema é que Rapha Pinheiro se rende a convencionalismos um tanto quanto irritantes para o seu conto moral. 

O layout das páginas e as sequências narrativas são decepcionantes, autoevidentes. Tudo ocorre de acordo com o que se espera. Os personagens, situados num conflito de classes (marcado criativamente pela cor das chamas), se reduzem a tipos e a um maniqueísmo insuficiente para debater questões atuais. Arquétipos desgastados não são mais que estereótipos. Por fim, a arte definitivamente não atrai. É esquemática, pouco detalhada e com acabamento (arte final) ruim. O colorido digital, então, coroa o gosto duvidoso das escolhas estéticas deste gibi. Acho que o autor tem imaginação o suficiente para superar estes entraves num próximo trabalho. Desta vez, não deu. (CIM)

Necromorfus – Osso do Rei

(RQT Comics/Korja dos Quadrinhos, 2017): O Marcos Maciel de Almeida já bajulou bastante o trabalho do Magenta King por aqui, mas eu acho que nunca é demais ressaltar a qualidade e as escolhas de um bom artista. Desta vez este personalíssimo ilustrador trabalha um roteiro (muito massa e original) de Gabriel Arrais para liberar sua arte (aquela coisa vistosa com influências diversas, de Geof Darrow a Tim Sale e gekigá) na forma de nanquim, aquarela e retículas. É isso que compõe o primeiro volume da série Necromorfus, que pretende reunir elementos de terror, violência tarantinesca, aventuras “adultas” à la Hugo Pratt, Vampiro: a Máscara, fumetti, etc. É um bom “gumbo” para gibis que querem alcançar o nível de excelência “Vertigo” para horror metafísico em quadrinhos.

É uma história curta, que basicamente apresenta o conceito do personagem: Douglas, um imortal que adquiriu este dom com 16 anos e desde então foi progressivamente perdendo a humanidade. Ele é capaz de tocar em matéria morta e assumir a forma e as memórias da pessoa ou animal em que encostou. E detalhe: Douglas revive também a hora da morte destas pessoas, tornando o personagem oco e sombrio. Outros elementos surgem no nó investigativo que decorre das ações de perseguidores e perseguidos pelo necromorfo: uma femme fatale que chama a sua atenção, um “psiquiatra de clientes muitos especiais”, a impressionante descrição do reencarnar na matéria bruta que é a psiquê de um urso. Há uma atraente aura de Dylan Dog neste gibi.

Necromorfus estreia bem, com decente capacidade de refletir sobre o que nos faz humanos e onde perdemos nossa humanidade. Além disso, tem acabamento de produto pop e boas leituras de suas referências. Pra um primeiro volume curtinho basta. Não dá pra ir mais longe que isso. Vamos ver se sustenta maior fôlego em outras edições. O volume 2, conforme está anunciado, terá arte de Abel. (CIM)

Reparos – Brão Barbosa (Independente, 2017): Eis uma HQ incensada pela crítica especializada, mas que não me pegou. A história de Eunice, a garota fascinada pelo ofício de consertar coisas, é bem intencionada, mas não deixa muitas saudades. De início, Reparos sinaliza que mostrará a evolução da paixão de Eunice pelo amigo Júnior, mas, aos poucos, a história passa a girar em torno da aproximação – quase filial – da protagonista com Ravid, senhor idoso, mestre na arte de reparar aparelhos quebrados. O crescimento da confiança e do afeto entre a garota sonhadora e o velho - aparentemente carrancudo, mas na verdade generoso - é bonito de se ver, mas não chega a emocionar. 

A arte de Brão, excessivamente cartunesca, também não ajuda muito. As sequências sem balões, por exemplo, são muito confusas e revelam que o autor ainda tem um longo a caminho a percorrer para conseguir dominar as sutilezas da arte sequencial, já que suas habilidades de storyteller, por enquanto, deixam a desejar.  O gibi anterior de Brão, Feliz Aniversário, Minha Amada, também fez uso do recurso – muito bem-vindo por sinal – de alterar a direção da narrativa para um caminho inesperado, mas em Reparos a escolha resultou num final menos redondo. (MMA)

Esquadrão Vitória – Giorgio Galli, Clóvis Brasil e Marcello Renoir (Gico HQ, 2017): O imortal Jack Kirby teria completado 100 anos em 2017. Muitas homenagens foram feitas confirmando o que já vínhamos percebendo nos últimos anos: a “Kirby renaissence”. Considerado ultrapassado nos anos 90 (ficou um certo tempo sem ser publicado aqui), o rei dos quadrinhos tornou-se referência de como ser responsa, perene, invocado e inquebrantável no mundo dos comics americanos. Sua persistência em adquirir garantias para a profissão, seu jeito austero de trabalhar, sua produção em escala cosmológica, tudo isso tornou Kirby “cool” como ele nunca havia sido antes. Pessoas que não gostam de super-heróis dão o braço a torcer. Todo tipo de ilustrador se ajoelha para a sua delirante e imaginativa obra. Kirby se tornou ícone, “ideia”, o Muhammed Ali dos quadrinhos. Kirby tornou-se como um dos titãs que ajudou a criar. Talvez não fosse necessário um culto de personalidade tão sectário. Mas, bem, como se sabe, Kirby é Kirby...

Daí a simpatia imediata por esta paródia/homenagem Esquadrão Vitória, que emula o estilo de Kirby/Lee (apesar de a edição ser dedicada apenas a Kirby) com uma equipe de “vingadores” inspirada em símbolos nacionais (e nacionalistas). O gibi é bem feliz em procurar mimetizar cada aspecto de um produto Marvel dos anos 60/70, com sessão de cartas “excelsior”, Kirby crackles e diversos outros easter eggs. Capa, cores, empaginação, diálogos, detalhes editoriais, tudo foi marejado no apelo nostálgico que os super-heróis da era de prata da Marvel inspiram nos adultos de hoje. 

O que achei mais bem sacado foi a transferência do contexto político-militar dos comics dos anos 60 para um da mesma época, só que brasileiro: nossos heróis servem ao governo (uns são militares), e atendem a deveres patrióticos. Ahá (xeroque rolmes), há uma interessante leitura social do Brasil por trás da aparente amenidade da história envolvendo o vilão “Suga-Mentes”. De quebra, ainda vemos o líder Coronel Alado (aka paródia do Capitão América inspirada no Capitão Aza) libertar seus sentimentos mais arraigados e hipócritas ao assumir a fantasia de onipotência com seus colegas Sucuri, Mãe-De-Santo, etc. Em algum lugar em Valhalla, no planeta de Beyonder ou até nas infinitas terras da DC, Kirby deve ter curtido essa revistinha. (CIM)

Porco Pirata

- João Azeitona (Editora Mino, 2017): Se eu acompanharia uma série de Porco Pirata? Com certeza! O que o roteirista e ilustrador João Azeitona, autor do álbum lançado pela Mino, mostra nessa primeira edição é um personagem carismático conduzindo uma trama de aventura com direito a algumas surpresas e reviravoltas. Tipinho canalha, como um típico pirata, o obstinado personagem-título irá até as últimas consequências – batalhas, traições, armadilhas – para desfazer o feitiço que o transformou em um suíno. Nada muito original, mas divertido e promissor. Acompanharia a série também para testemunhar, com o passar das edições, o amadurecimento do trabalho de Azeitona. Fácil perceber que o cara é talentoso (com um preto e branco expressivo) e está em pleno desenvolvimento. Por ora, sua narrativa é um pouco dura e ele explora bem menos do que poderia as possibilidades de construção de página, resultando em várias redundâncias e desperdícios visuais. Outra coisa que joga contra é o fato dos balões de fala serem quadrados ou retangulares com letreiramento feito no computador. Balões desenhados (e, se possível – por favor! – letras feitas à mão) dariam muito mais vivacidade às cenas e contribuiriam sobremaneira ao ritmo de leitura. Vale ressaltar que a HQ em questão está mais para a série cinematográfica Piratas do Caribe, com situações um tanto quanto previsíveis e o foco na ação (neste primeiro número, principalmente em terra firme) do que para antigos filmes ou romances de pirataria. Quem procura quadrinhos com essa pegada mais “clássica” não deve deixar de ler as sensacionais BDs Os Passageiros do Vento, de François Bourgeon, e Barba Ruiva, de Jean-Michel Charlier e Victor Hubinon. (PB)

Balas Contadas – Hiram Miller (Independente, 2017): Hiram Miller é um quadrinista em formação. Em Balas Contadas, ficam evidentes as boas intenções em contar uma boa história de faroeste. Infelizmente, dadas suas limitações como argumentista e desenhista, o gibi não empolga e fica a sensação de que, mesmo após o autor apertar o gatilho, as balas seguem presas no cano do revólver.  A HQ narra um conto do “Bando Ébrio”, grupo de bandoleiros que parte em busca de um tesouro escondido. Entretanto, o que poderia ser uma aventura interessante, às voltas com seres sobrenaturais e grandes bebedeiras, revela-se um passeio tão desagradável quanto uma ida ao trem fantasma daquele parque de diversões à beira da falência: por mais que você queira achar graça, fica torcendo mesmo é para que tudo acabe o quanto antes.  Dentre os vários problemas encontrados, o que se sobressai é a falta de carisma dos personagens. É muito difícil para o leitor estabelecer empatia com qualquer um deles. O misterioso maquinista do trem que nunca para, Txotxo (!), por exemplo, não passa de um brutamontes retardado. Outro desafio é conseguir ignorar a – baixa – qualidade dos desenhos. As ilustrações são tão sofríveis que cheguei a sentir saudades de Rob Liefeld.  Mas não deixe minhas palavras te desanimarem, Hiram. Siga tentando. Um dia seus disparos acertarão o alvo. (MMA)

Pile Up – Bruno Soares (Independente, 2017): Morte, vida, ressurreição, alumbramento, o milagre da existência. Parece muita profundidade temática pra um gibi (mudo) de estreia sobre dois botânicos espaciais, não é? Pois é exatamente o que esse jovem Bruno Soares realizou como trabalho de conclusão de curso na graphic Pile Up. De tirar o fôlego, inspirada em Arzach de Moebius mas sem parecer nada derivativo (o traço lembra mesmo é o do espanhol Julio Ribera), este quadrinho extrai toda a potência das narrativas de qualidade universal que as HQs sem palavras podem fornecer.  As imagens são desenhadas em quadros grandes com beleza profética (lembra Druillet em alguns momentos; LEO em outros), fazendo associações simbólicas entre os temas giratórios e simétricos sem que uma boa história deixe de ser contada. Eu realmente adoro quando a ficção científica assume sua condição metafísica (herança de 2001), que outros planetas sejam índice para a origem da vida e seu local na existência. Soares consegue atingir este subconsciente que reúne ancestralidade e futuro distante num livro elegante, sofisticado como narrativa, imperativo como inconsciente óptico. Significa dizer que é preciso ficar de olho neste autor? Bem, não preciso explicar o óbvio ululante. (CIM)

O fogo de Promethea

Chackal pode ser estreante na Raio Laser, mas não é nenhum estranho no mundo das HQs. Artista plástico formado pela Universidade de Brasília, acompanha, há várias décadas, o universo dos quadrinhos com olhar arguto. Figurinha fácil em diversos fóruns especializados na internet, este marvete inveterado circula com diversos pseudônimos na rede, para preservar sua charmosa aura de mistério. É bem possível que você já tenha lido – e se divertido – com alguns de seus comentários por aí. Esta é sua primeira colaboração em nosso site. Seja bem-vindo.  Que venham muitas outras. (MMA)

por Chackal

Toda boa narrativa deve ser capaz de impressionar, para garantir que a estória a ser contada desencadeie empatia e cative o leitor. Muitas obras entraram para a História da Literatura universal por meio desse artifício e tornaram-se influentes através das eras. Em Promethea, a competência de Alan Moore não foi só empregada para provocar o mesmo efeito, desenvolvendo uma narrativa pujante, mas seu gênio criativo também atingiu a rara proeza de torná-la transformadora. Promethea é uma personagem ligada à intuição, ao inconsciente e às artes mágicas, elementos oriundos da imaginação humana. Ela é análoga a Prometheus, o titã mitológico que roubou o fogo dos deuses e o deu aos homens, habilitando-os a usar o intelecto para moldar o universo. 

Como tudo na obra de Moore, a coincidência de nomes não é acidental, uma vez que o mito de Prometheus encerra a essência da transformação, da evolução e da superação. Ao criar uma heroína que provém da imaginação de artistas e poetas, cujos poderes a propiciam transitar em mundos com diferentes teores de realidade e de subjetividade, Moore não pretendeu escrever apenas sobre super-heróis, muito embora sua narrativa ainda esteja voltada para as histórias em quadrinhos. Ele quis, na verdade, ir mais além e tratar do legado de Prometheus, interpretando o fogo dado generosamente à humanidade como uma alegoria, uma revelação para o caminho do autoconhecimento, da iluminação divina do ser humano.

À esquerda, Prometheus; à direita, Promethea: hermenêutica.

A inspiração pela Jornada do Herói

Na antiguidade clássica, o desenvolvimento das estórias que se pretendiam dramáticas requeria artifícios eficazes para unir artista e plateia indelevelmente. Um personagem era alçado ao status de herói se suas aventuras contivessem a mistura ideal entre inspiração, provação, superação e catarse junto ao público. Assim, narrativas épicas eram elaboradas sob o padrão da Jornada do Herói, ou Monomito – trama progressiva que demonstra tanto a evolução do protagonista quanto o vislumbrar de sua saga, estimulando as emoções do espectador e lançando-as para o palco, para a arte e para interação imersiva. Nele, o herói está atado ao destino, cuja propensão à catástrofe o impele a enfrentar desafios, a aprender com seus erros e a transcender suas limitações.

Essa jornada fundamenta-se na dialética humana, pela qual as vicissitudes do indivíduo são testadas e suas potencialidades concretizadas à custa de muito esforço e sofrimento. O herói, que conta com aliados durante suas atribulações, treina e domina o que aprende com seus mestres para lidar com os obstáculos que deve superar. Ao garantir sua vitória, seja física ou psicológica, seja mental ou espiritual, sua saga chega ao clímax, quando ele toma as rédeas de seu destino, em desafio aos desígnios dos deuses, e encerra sua jornada de modo apoteótico. Alan Moore prefere iniciar Promethea no ocultismo não pelo sacrifício, mas rendendo-a aos prazeres tântricos – no enfrentamento de velhos tabus, a heroína obtém controle de seus poderes e se emancipa.

A iniciação de Promethea: domínio pelo autoconhecimento.

Para Moore, é na harmonia dos contrários que a jornada de Promethea se afirma: a personagem ressurge no mundo ao fim de um século XX mais vinculada à razão que à intuição, sendo pelo contraste entre alguém com poderes puramente mágicos e uma realidade fundamentada na Ciência que se dá o ímpeto necessário para destravar as portas da percepção. Seu propósito, porém, não advém somente do domínio recém-conquistado sobre os arcanos do Tarô ou pelo misticismo oriental, configurado no poder dos chacras e da numerologia, mas também da partilha desse treinamento com o leitor, seu público. A evolução de sua saga se dá pela cumplicidade de quem a acompanha pelo trajeto em que essa heroína se comprometeu a trilhar.

A dialética de Promethea

A provação pela Cabala

O diagrama da Árvore da Vida.

Segundo o livro do Gênesis, quando Adão e Eva comeram o fruto da Árvore do Conhecimento, Deus os expulsou do Paraíso e escondeu deles a Árvore da Vida. Desde então, sacerdotes, rabinos e estudiosos buscam restabelecer contato com o divino. A Cabala é um sistema de crenças, que, por um lado, busca explicar a origem do universo, ou Cosmogonia, e, por outro, prega a evolução humana, ou Ascese, como meio de reaver a aliança de Deus com a humanidade. A prática cabalística sintetizou todo o saber científico e as convicções mais fervorosas então disponíveis em um diagrama conhecido por “Árvore da Vida”. Foi através dele que o universo, emanado a partir de Deus, filtrou-se por dez gradações de existência e manifestou como realidade tangível.

Na época do primeiro Templo de Salomão, seu Sumo Sacerdote usava a Arca da Aliança como meio para a obtenção de aconselhamento divino, o que significou que as práticas cabalistas serviam-lhe como itinerário para a enlevação, ao partir da realidade que conhecemos e ascender em direção a Deus. Há dez estágios de consciência pelos quais se deve passar, a fim de que o indivíduo comungue com as forças primordiais do universo e, além delas, com seu criador. Nesses estágios ou esferas, todas as impurezas mundanas de quem percorre os vários caminhos da Árvore da Vida são decantadas. Trata-se, portanto, de uma senda especial de autoaperfeiçoamento, que requer abnegação e sacrifício de quem pretender segui-la. 

A ambição do praticante da Cabala é ultrapassar os limites do mundo real.

Um dos pontos altos na narrativa de Alan Moore, a interpretação dos mundos que sua heroína pode acessar, por ser ela a personificação da imaginação, reforça a cumplicidade entre leitor e personagem na transmissão do conhecimento. Herdado de Toth-Hermes, deidade mercurial que o promove, o aprendizado é o desafio que enreda a personagem a sua saga, tanto no espaço quanto no tempo. Neste, aguçando-lhe a curiosidade sobre seu recém-descoberto destino; naquele, provocando a vontade de compreender sua função no mundo em que habita. Ambas as premências levaram-na a buscar, nos ensinamentos cabalísticos, o sentido de sua jornada heroica, tornando o percurso pela Árvore da Vida trajeto natural para uma criatura como Promethea.

A ‘Divina Comédia’ como exemplo de superação

Segundo Dante Alighieri, para chegar ao Paraíso, é preciso primeiro atravessar o Inferno. Ao descrever sua trajetória por mundos fantásticos, este autor colocou a si próprio como protagonista desse sacrifício titânico. Aliando a seus conhecimentos clássicos sua percepção de vida e renovando sua fé por meio da razão, ele enfrentou os tormentos infernais, as provações no Purgatório até alcançar o êxtase celestial. Contando com a orientação de Virgílio, poeta da antiguidade romana, que havia sido o último a escrever sobre a descida ao submundo, ou Katabasis, Dante utilizou seu périplo oportunamente para um exame profundo de consciência, sem o qual não lhe seria possível compreender o que presenciou na travessia desses três mundos.

Dante, Virgílio e o barqueiro Flégias singram as águas do rio Estige – Eugène Delacroix (1822).

Inferno é onde Deus está ausente, por isso não há luz nem calor, que não o da punição severa. Os espíritos, chamados por Dante de sombras, sofrem o pesar de uma densidade excessiva, que não lhes permite movimentar – jazem amarrados nas chamas, enraizados ao chão, atolados em lodo, afixados às rochas, submersos em fontes sulfúricas ou presos no gelo. A prisão impede-lhes qualquer esperança de jornada e, por conseguinte, de redenção. Purgatório, por sua vez, é uma montanha insular, na qual as trajetórias são circulares, determinadas como método de purificação. Os movimentos ali estão restritos à eterna rotina, que só se conclui obtendo-se purgação. Por isso, parecem carecer de qualquer evolução. A expiação só ocorre quando a consciência se purifica.

À esquerda, o Inferno - Bartolomeo di Fruosino (1430-5); ao centro, o Purgatório - Ugo Foscolo (1822); à direita, o Paraíso – William Blake (1825).

É a partir do Purgatório que a jornada de Dante se assemelha à heroica, embora a dantesca seja uma subversão, pois sua comédia se opõe à tragédia por diferir tanto na escolha do protagonista quanto na finalidade dramática. Tragédia é desempenhada por heróis ou semideuses, como Prometheus, que desafiam as convenções divinas numa aposta contra o destino. Comédia é a senda do homem comum, a provocar debates a respeito de suas escolhas feitas durante a vida. Se, no Inferno, as sombras em danação perderam todo o arbítrio; no Purgatório, elas labutam para reavê-lo. Essa é a razão dantesca, fundamentada no pensamento clássico que Virgílio simboliza e fio condutor a transcender os inúmeros obstáculos mitológicos e bíblicos que se perfilam na narrativa.

À esquerda, os mundos dantescos; à direita, a Árvore da Vida (expandida).

No topo da montanha do Purgatório, localiza-se o Éden, onde, segundo escrituras da Torá, reside a Árvore da Vida. Ali, encontra-se Beatriz – aquela que o autor sempre idealizou como símbolo da graça e perfeição. Beatriz é a Promethea de Dante. Foi ela quem intercedeu em favor de Dante, rogando a Virgílio seu auxílio para a jornada até ali. Ela, a partir de então, com o refinamento espiritual de Dante, que, purificado por suas atribulações, eliminou de sua consciência as dúvidas acerca da fé na humanidade, na justiça e no amor divinos, o alça ao Paraíso. Essa ascensão, ou Anabasis, embora não seja claramente inspirada na Cabala, converge com ela em diversos pontos, sendo os mais notáveis a trajetória da enlevação em si e a descrição dantesca das esferas celestes.

À esquerda, Beatriz aparece a Virgílio, em busca de ajuda para Dante – Gustave Doré (1857); ao centro, Beatriz recebe Dante no Éden – Amos Nattini (1936); à direita, Beatriz e Dante acessam a 8ª esfera celestial – William Blake (1825).

O Paraíso, segundo Dante, é um mundo de leveza, virtude e êxtase. É onde as almas detêm, segundo lhes permite a consciência, liberdade de ir e vir ao longo de 10 esferas com realidade, significado, musicalidade e tempo próprios. Percorrer os céus do Paraíso é transfigurar espírito e mente, tornando noções mundanas de tempo e espaço ou vida e morte desimportantes. Em Promethea, sua enlevação preenche lacunas, dissolve dúvidas sobre sua origem, ao recuperar memórias passadas, e reafirma suas intenções futuras. Superadas as provações, a aprendizagem encerra-se e, iluminada, a personagem compreende sua verdadeira função no mundo. Se, para Dante, a comunhão com Deus é o ápice de sua jornada; a união divina destrava, em Promethea, o começo do fim.

A iluminação de Promethea: transcendência.

O fim do mundo como catarse

A narrativa de Alan Moore empresta ao leitor parcela da responsabilidade que a heroína carrega em sua saga. A evolução místico-heroica de Promethea, em tese, ocorre em paralelo com sua instrução sobre novos modos de interpretar a realidade das coisas. Sua ascensão, transfiguração e posterior iluminação insinua a verdadeira jornada para quem deseja desvendar os mistérios presentes no universo. Quando Promethea fundiu-se a Deus, sua percepção tornou-se onisciente, dando-lhe convicção de que o papel do herói é contribuir para o bem-estar do homem comum. Isso não significa entregar a poucos escolhidos essa função. Embora o caminho para isso seja longo e tortuoso, ele é tão pessoal quanto a contribuição havida entre personagem e leitor.

Encontro com Deus: tempo, espaço, vida e morte, elementos intercambiáveis de um eterno retorno.

Ao retornar ao mundo real, Promethea hesita em dar a ele outro rumo, pois essa ideia seria apocalíptica nas mentes das pessoas. Sua realidade natal não é a imaginação – esta lhes foi tolhida, domesticada e modulada pela Ciência na Terra, tornado-as dependentes e negligentes. Apenas alguns eleitos detinham a responsabilidade heroica de zelar pelo mundo, embora eles o mantivessem sempre incólume, incapaz de mudar. A decisão de Promethea vem, então, sobrepujar todas essas coisas e alterar o status quo, mas isso estava longe de ser o fim dos tempos. O apocalipse é definido pela Bíblia como o momento em que o mundo passaria por mudanças profundas, com o triunfo do bem, ou iluminação, sobre o mal, ou ignorância, numa catarse universal e definitiva.

Esse evento, porém, não foi brusco ou traumático. Moore descreve o apocalipse de Promethea como uma conversa materna. Ao transmitir a seu leitor os conhecimentos herméticos e ocultos, seu entendimento o libertou, tanto pelo conforto quanto pelo incentivo. Conforto, na certeza de que a trilha para o conhecimento mais sublime está aberta a todos; incentivo, porque, ao seguir essa trilha, qualquer um pode ser o herói na busca pela felicidade.

Promethea, tal qual seu homônimo mitológico, democratizou o fogo antes reservado a privilegiados, trazendo à humanidade, enfim, ciência de suas responsabilidades. Nesse sentido, a narrativa de Moore passou a desempenhar a função de manual prático para a sabedoria, da qual o céu é literalmente o limite.

Cumprimentos a Alan Moore por essa jornada transformadora.

Ayako: Osamu Tezuka para maiores

por Marcos Maciel de Almeida

Países com grandes tiragens de quadrinhos nativos costumam ter grandes patriarcas das HQs. Sergio Bonelli é a referência na Itália. Walt Disney e Will Eisner são os caras nos EUA. Brasil e Japão não são diferentes nesse quesito. Mauricio de Sousa e Osamu Tezuka são referências incontornáveis. Elevados – por muitos – à categoria de semi-deuses do gibi, ambos conseguiram deixar marcas indeléveis na história da nona arte em seus países. Criadores de verdadeiros impérios do entretenimento, Sousa e Tezuka parecem ter nascido com o toque de Midas. Ambos têm obra vasta e diversa. Mauricio conseguiu se aventurar além do entretenimento infanto-juvenil, criando histórias que passam por gêneros como o romance adolescente (Rollo e Pipa), filosofia (Horácio) e escapismo (Astronauta). Tezuka também não ficou para trás nesse aspecto, muito pelo contrário. Atacou em várias frentes, com temáticas do tipo aventura/fantasia (Astro Boy), contos de fadas (A Princesa e o Cavaleiro), semibiografia (Adolf) e suspense sobrenatural (Dororo), entre outras. Apesar disso, existem diferenças importantes entre os publishers brasileiro e japonês.  Por mais que a obra de Maurício de Sousa seja diversificada, ela é facilmente fagocitada pela extensão, profundidade e riqueza daquela produzida por seu homólogo nipônico. Como sói acontecer com os super-heróis americanos, as crias de Maurício vagam eternamente pelo universo da ficção, envelhecendo nada ou muito pouco, numa verdadeira história sem fim. No Japão, o papo é diferente e as trajetórias dos personagens costumam ter final, ainda que estejam no auge. E aí não tem choro nem vela. Acabou, está acabado, ainda que milhares de fãs insistam por ressureições e continuações. 

Tezuka também é partidário dessa filosofia e, por isso, investiu numa infinidade de temas e narrativas, que lhe consagraram um legado de fôlego. Além disso, conseguiu se manter como alvo de interesse por públicos de muitas faixas etárias, não apenas de crianças e adultos saudosos. Tezuka mostrou que, apesar do traço aparentemente delicado e infantil, a temática das histórias não precisava ser sempre pueril. Nem mesmo o linguajar e as situações mostrados deveriam ser sempre pasteurizados, afinal a vida não é feita apenas de momentos cor-de-rosa. Há ocasiões em que a barra fica pesada e somos forçados a reconhecer que tem muita gente escrota nesse mundo. O que nos leva ao calhamaço de 700 páginas (!)

Ayako, publicado no Brasil em fevereiro de 2018 pela Editora Veneta. 

Não é à toa que, para muitos, este trabalho seja considerado a obra prima do mestre mangaká. A epopeia da família Tenge no pós II Guerra Mundial toca em vários pontos sensíveis não apenas para o povo japonês, mas para toda a humanidade. O mais importante deles são as implicações de política interna e externa para o Japão derrotado. 

Já estamos acostumados a nem mesmo questionar a visão histórica que privilegia o ponto de vista dos vencedores, relegando a perspectiva dos vencidos a um segundo plano. Digo isso, porque não quero pintar um quadro no qual os japoneses apareçam somente como vítimas, mas o fato é que as narrativas que mostram as agruras do povo da terra do sol nascente são escassas. Exemplo: as bombas atômicas disparadas sobre Hiroshima e Nagasaki são tema praticamente inexplorado, especialmente em relação ao número de filmes e documentários dedicados à Guerra do Vietnã e outros eventos trágicos, como o holocausto do povo judeu. 

Como Ayako foi produzido em 1972-3, talvez nem mesmo Tezuka tenha tido as manhas de colocar o dedo nas feridas – ainda – abertas pelo ataque nuclear norte-americano de 1945. Mas isso não significa que ele tenha deixado de abordar outros assuntos espinhosos, que teimam em não ser mencionados, como o fato de que o Japão tenha virado uma espécie de “Estado Vassalo” dos EUA.

De forma discreta, mas incisiva, Tezuka dá diversas alfinetadas na maneira pela qual os americanos em particular e a comunidade internacional em geral trataram os japoneses vencidos. A crítica às medidas empurradas goela abaixo, como a reforma agrária, mostram que foi preciso paciência oriental para suportar a política do General MacArthur, militar norte-americano que derrotou e, em seguida, comandou o Japão. Outro fato que não passou foi despercebido foram os tribunais internacionais que julgaram os crimes cometidos pelo Japão durante o segundo conflito mundial. Para Tezuka, nessas cortes de exceção ocorreram flagrantes arbitrariedades, evidenciadas pelo fato de que os argumentos dos advogados de defesa foram solenemente ignorados. 

A história do gibi começa com o retorno ao Japão do prisioneiro de guerra Jiro Tenge, um dos filhos do patriarca Sakuemon, após o término das hostilidades. Refeito o vínculo familiar, Jiro rapidamente se dá conta que a volta para casa nem sempre é uma benção. Seu pai é um devasso, seu irmão não é flor que se cheire e ninguém consegue explicar a origem de Ayako, sua irmã mais nova. E o próprio Jiro traz consigo um segredo que mudará os rumos da trama. Desde as primeiras páginas o clima de mistério é quase tangível. Somos apresentados a uma gama de personagens e situações tão inusitados quanto imprevisíveis. Tudo isso pontuado por incríveis cenas de contemplação da natureza, que servem como momentos de respiro para a trama frenética, teimosa em descansar. 

Protótipo da família feliz. #sqn

Já virou clichê falar sobre protagonistas anti-heróis, mas Jiro é um caso à parte. Ele pega bem mais pesado que os costumeiros personagens desse tipo, chegando a um novo patamar de mau-caratismo, característica presente em boa parte do elenco desta HQ. Como consequência, o gibi é profícuo em situações repugnantes que atentam contra o bom gosto da tradicional família brasileira. Por isso, para mim, Ayako representa uma espécie de maioridade de Tezuka, que se permitiu publicar perversões e cenas indigestas que incluem violência contra a mulher, incesto e maus-tratos contra crianças.

Temas que, certamente, não serão vistos na próxima edição do Cebolinha.  A crueldade e a crueza de algumas partes do gibi remetem a uma linha de pensamento sobre a qual passei a refletir depois de perceber alguns traços comuns em obras de autores japoneses, tanto no cinema (Ringu), como na literatura (1Q84). Cheguei à conclusão que, na ficção nipônica, o sadismo do agressor é potencializado pela crença de que o sofrimento da vítima é determinado pelo destino, não podendo ser, portanto, evitado. Isso faz com que as cenas de tortura e violência sejam muito mais intensas que aquelas presentes nos similares ocidentais, chegando a níveis quase insuportáveis. E Ayako não foge à regra. É Made in Japan, com muito orgulho.  

Cena presente no mangá e que ainda acontece na vida real.

Ayako traz uma pungente reflexão sobre os impactos da ocupação norte-americana no Japão pós II Guerra, sem medo de expor feridas ainda não completamente cicatrizadas na sociedade japonesa contemporânea. E o clã Tenge, que nunca foi sinônimo de estabilidade, é rapidamente tragado pelo inexorável vendaval de mudança anunciado pelos novos tempos. Os membros da família, contagiados pelo clima de “salve-se quem puder” tomam decisões egoístas cujos resultados recairão sobre Ayako, a pessoa mais indefesa daquele núcleo. Em Ayako, Tezuka tece uma teia de relações conflituosas habitada por pessoas sedentas por poder e dinheiro, que passarão por cima de qualquer escrúpulo ou sentimento de compaixão para atingir seus objetivos sórdidos. E é esse ambiente de devassidão e amoralidade que servirá como o playground para a disseminação de perversões e fantasias latentes. Em Ayako, Tezuka mostrou que os quadrinhos também poderiam alcançar a maioridade e se mudar da casa dos pais, indo para bem longe do Bairro do Limoeiro.  

A edição nacional de Ayako é extremamente bem cuidada, com inúmeras notas de rodapé. Traz, pela primeira vez no Ocidente, os dois desfechos para a saga imaginados por Tezuka. Coisa fina. 

Silêncio dos inocentes

Rapidinhas Raio Laser #09: especial Catarse

Vaquinhas virtuais chegaram para ficar. Goste ou não, o fato é que cada vez mais criadores estão utilizando o financiamento coletivo para viabilizar seus projetos. É aquela história: se tem gente interessada em bancar, por que não lançar? A coisa está especialmente disseminada nos gibis, principalmente em razão dos valores de produção, relativamente baixos se comparados aos de outras mídias. 

Aqui na Raio Laser já virou praxe fazer resenha de gibi independente. Aí pensamos em fazer um post exclusivamente dedicado às HQs que compramos por meio de vaquinhas virtuais, afinal elas continuam sendo independentes, certo? 

Na análise abaixo, a tendência é que façamos comentários positivos sobre os gibis adquiridos, já que só financiamos autores nos quais realmente acreditamos. Por isso os quadrinhos a seguir provavelmente receberão elogios rasgados. Será mesmo? (MMA)

por Marcos Maciel de Almeida e Ciro I. Marcondes

R’lyeh Boy – Caio Oliveira (Quinta Capa, 2017): R’lyeh Boy é uma sátira de ... Bem, se você não sabe, está na página errada. Busque conhecimento sobre a série mais longeva de Mike Mignola e volte aqui. R’lyeh faz referência à cidade submersa fictícia criada por HP Lovecraft, prisão do deus adormecido Cthulhu. Não sabe quem é Cthulhu? Resumo de três linhas: é um deus/entidade alienígena que está dormindinho na Terra e vai despertar qualquer hora dessas para tomar o que é seu, ou seja, o nosso planeta. Enquanto ele dorme, humanos mais sensitivos são afetados por seus sonhos e, gradualmente, passam a enlouquecer, barbarizando geral. O visual de R’lyeh Boy é claramente inspirado em Cthulhu.  R’lyeh Boy é funcionário de uma empresa que resolve problemas sobrenaturais. No gibi em questão, R’lyeh Boy é despachado para enfrentar avatares de jogadores de RPG (boa sacada, Caio!) da Terceira Dimensão (a nossa!). Os avatares invadiram o reino dos desmortos e estão botando pra quebrar. E isso é assunto pro nosso herói, claro. A pegada de Caio é enviesada para o humor e ele se sai muito bem nisso. Afinal, não é de hoje que ele vem fazendo a alegria da galera com a sua página “Cantinho do Caio” no Facebook. O gibi vem com uma série de “plus a mais”. Tem pin-ups espirituosos, piadinhas extras e adesivo engraçadinho. Simpático. 

Pensando aqui com meus botões. Enquanto Cthulhu dorme, ele segue influenciando a vida na Terra com sua presença no inconsciente coletivo. Já pensou se isso estiver acontecendo na real? Já imaginou se o próprio HP Lovecraft não for seu criador, mas mero fantoche que ajudou a propagar os mitos de Cthulhu e sua turminha da pesada, os “Old Ones”? Cthulhu é figurinha fácil na literatura, na música, no cinema, nos video-games e – por que não? – nos gibis. Nos últimos anos saíram – apenas no Brasil – pelo menos três quadrinhos relacionados ao mito alienígena (R’lyeh Boy, O Despertar de Cthulhu e Rio Negro. Pode ser que nós também estejamos contribuindo para a disseminação do imaginário do monstrengo. Mas bem, isso é papo para outro post. Por hora fiquemos com o gibi do Caio. É uma ótima pedida. Especialmente para ser apreciado antes do eventual despertar de Cthulhu. (MMA)

Adesivo maneiro pra barbarizar com seu vizinho evangélico

Anuí Lelis (Independente, 2017): A caixa de música de pequena Alice quebrou. Seu choro de desconsolo está acordando a cidade inteira. Ela e sua mãe levam a caixa de música para arrumar. O consertador é o cara mais odiado da região, daqueles que fazem até o capeta passar raiva. No entanto, tudo muda quando toca o telefone da casa de reparos. Quem será?  Esse é o resumo livre de spoilers de Anuí. É uma história simples, mas nada simplória. É, sobretudo, um trabalho de entrega. Lelis transmutou sangue, suor e lágrimas em papel e tinta guache para criar mais uma de suas obras de arte. O painel de cada quadrinho seu – é clichê dizer isso, mas fazer o quê? – merecia ser emoldurado e apreciado na parede. Lelis se esmera para pintar cada tijolo, cada pedra, cada telhado. Lelis é operário dos quadrinhos. Lelis é pedreiro. Com Lelis não tem tempo ruim. Lelis é gente que faz. Como em todo trabalho desse mineirinho desembestado, o gibi respira sutileza. É transporte certo para uma dimensão na qual as cores são mais vivas. Em que as pessoas não precisam caminhar, já que flutuam. Quando leio Lelis, é como se pudesse sentir cheiro de café fresco e pão de queijo assando no fogo à lenha. Trem bão demais, sô. Lelis é isso aí. Simplicidade e generosidade em doses cavalares. Falando em cavalo, nunca vou esquecer da primeira vez que o encontrei, no Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) de 2015.  Dei uma olhada na listagem de convidados no guia do evento. Todos bonitos e de banho tomado, em fotos reluzentes. Já Lelis aparecia montado em seu alazão. Quer mais autenticidade que isso?

Momento emocionante ligado a Anuí foi quando recebi – eu e todos que patrocinaram o gibi – o tocante e-mail de Lelis confessando seu descontentamento com o resultado final da revista. Na verdade, insatisfação não com o gibi em si, mas com o fato de que a versão que foi para a gráfica – por erro – foi a de baixa resolução. Eu nem tinha reparado. Fica triste não, Lelis. A edição ficou duca. 

Lelis já foi publicado na Europa, em vários gibis, inclusive Goela Negra, lançado pela Mino em 2015. Não é fraco não. Acho difícil que os gringos levem ele embora, porque o cabra não vai querer trocar o cheiro do mato “nacionar” pela grama sintética estrangeira. Apesar disso, acho que devemos aproveitar enquanto o cara está por aqui e prestigiá-lo. Lelis é mais. Lelis é Brasil. (MMA

Eudaimonia – Luciano Salles (Independente, 2017): Diferentemente do sci-fi freak/lisérgico de trabalhos como O Quarto Vivente e Dark Matter (e reaproveitando a personagem de Luzscia, a Dona do Boteco), em Eudaimonia Luciano Salles traz à tona um submundo degenerado cheio de personagens "figura", traficantes e drogados que apelam ao non-sense dentro de um ambiente mais urbano. A porraloquice, no entanto (ainda bem), permanece a mesma. Porém, a coisa ganha camadas pesadas de Geof Darrow, Frank Miller dos anos 90/00, além de pitadas de Rafael Grampá, para erigir um verdadeiro colosso visual, em P&B super hachurado, preciso nanquim e um hiper detalhismo estilizado que meio que se justifica por si só.  Digo isso porque, por mais que a história passe como um relâmpago, seja espécie de trecho entrevado de algo maior e possa ser lida em poucos minutos, o apelo visual desta HQ é algo que não passa despercebido nem pelo mais careta e equivocado crítico do estilo visual hiper detalhista. Já o enredo trata de um acerto de contas entre um matador de aluguel brutamontes e meio mongoloide vestido de onça, aliado a uma velha bem escr*ta, dona de um bar, que precisa de droga para aliviar artrites terríveis e coisas assim.  A ação é vertiginosa. Mangás de Katsuhiro Otomo e Tayo Matsumoto também marcam presença como influências para a degeneração urbana, e Eudaimonia se faz ensaio pra algo que poderia ser maior e mais robusto (portanto, mais cabuloso). Linhas de ação trôpegas cortam as operações alucinadas que fazem esse quadrinho parecer um curta-metragem (bem curto mesmo) ou um teaser de algo ambicioso que se anuncia.

Eu, pessoalmente, aguardo ansiosamente o romance gráfico monstruoso que Luciano Salles está ensaiando em todas estas histórias curtinhas, unindo esses temas todos parecidos e favoritos: o convívio doidão com drogas estimulantes e/ou psicotrópicas, personagens barra pesada sempre “under the influence”, histórias sci-fi perturbadores que funcionam como se Black Mirror não fosse tão careta, imersão em sonhos, delírios ou realidade virtual mesmo.

Eudaimonia realmente é um quadrinho legal, mas tem um certo jeito de “amostra grátis” que faz a gente pensar se não é tudo uma ação de marketing do autor para soltar sua obra-prima num futuro próximo. Estarei certo? (CIM)  

Black Emperors: Bikes vs Sk8s - Dalton Cara e Magenta King (Independente, 2017): Magenta King e Dalton Cara. Temos que ficar de olho nesses rapazes, que não estão para brincadeira. Depois de chutar nossas bundas com o não menos que espetacular 5/5, a dupla endiabrada ataca novamente para nos brindar com outra pauleira na moleira: Black Emperors.  Se tivesse que escolher apenas dois adjetivos para descrever o último fruto dessa parceria, seriam os seguintes: dinâmico e explosivo, como foi o próprio processo de produção da HQ, abundante em adrenalina. Explico. Em 2017, a dupla se propôs o desafio de produzir uma revista de 32 páginas em um mês. O processo de criação foi exposto durante as aulas que ambos ministravam na Quanta Academia e no Sesc Pompeia, contando com o feedback dos alunos. Após o sucesso da empreitada, os dois resolveram pegar ainda mais pesado e expandir os limites que se auto impuseram. A aposta agora era lançar uma edição com pelo menos cem páginas num período pouco maior que trinta dias. As doses de exposição também aumentariam. Por isso, cada nova página do gibi foi religiosamente postada nas redes sociais, permitindo o escrutínio do público interessado. Pergunta se os caras conseguiram passar pelo segundo teste? Para nossa alegria sim. Eis que é lançado Black Emperors: Bikes vs Sk8s, que compila os dois trabalhos acima. De que se trata o gibi? Bem, o título já entrega em parte, mas o confronto entre gangues de skatistas e ciclistas é apenas o pano de fundo para uma saga que envolve vingança, rebeldia e gratidão. Tudo isso num ritmo frenético. Lembra que eu falei que o gibi é dinâmico? Então, o quadrinho te pega pelo pescoço desde o primeiro quadro da primeira página – que já te lança no meio da ação – e não solta até que termine a leitura. 

Primeira página de Black Emperors

Um dos pontos positivos da HQ é a riqueza imagética dos personagens. Cada participante da trama tem linguagem e visual característicos, que parecem ter sido meticulosamente estudados. Curiosamente, o enorme talento para criação de personagens parece equivalente à capacidade dos autores para se livrar deles. A cada três páginas, cerca de quinze personagens morrem, apenas para dar lugar a novos coitados que partirão dessa para melhor na página seguinte. Apesar disso, a história mantém um fio condutor coeso e lógico, que não se cansa de transpirar diversão. 

Influenciados por Paul Pope, os autores resolveram alterar seu processo criativo, permitindo-se pequenas alterações de percurso e flexibilizações no roteiro, tudo isso em nome da diversão. E o gibi é puro reflexo disso. Black Emperors está aí para capturar os corações e mentes de leitores cansados de quadrinhos carentes de espontaneidade, criados a partir de receita de bolo. Pela leitura do gibi, fica evidente que Dalton e Magenta cresceram lendo doses maciças de gibis de super-heróis. O impressionante é que mesmo depois de comer tanto arroz com feijão, eles não se deixaram levar pelas fórmulas batidas do gênero. O mais bacana é ver que eles souberam aproveitar as influências para lançar novos olhares para o universo dos quadrinhos, fugindo de maniqueísmos e de personagens bidimensionais. Por isso, a trama de Black Emperors é altamente ousada e imprevisível. 

À moda de Howard Chaykin, os diálogos não têm espaço para didatismo ou explicações do tipo quem é quem. A história tenta emular o modo como as coisas como acontecem na vida real. Não há tempo para identificar cada um dos personagens, mesmo porque eles já estarão mortos nas páginas seguintes. O negócio é se deixar levar pelo vagalhão, sem fazer muitas perguntas. 

Não é fácil permanecer vivo no universo de Black Emperors

O leitor tem um ponto de vista privilegiado para observar o universo de Dalton e Magenta. Quem nunca foi dos grupos mais populares da escola – como eu – vai poder acompanhar de camarote uma realidade habitada exclusivamente por pessoas cool, tipo aquela turma da qual você nunca fará parte.

Black Emperors é uma espécie de versão quadrinizada e insana de seriados como Barrados no Baile e similares. Para mim, programas desse tipo suscitavam aquela sensação de fingir desprezo pela turma popular, mas sempre dar uma espiada torcendo para que os bonitões e descolados acabem se lascando. E o bom é que, em Black Emperors, quase todo mundo se dá MUITO mal. 

Para deleite dos leitores, o universo de Dalton e Magenta está todo interconectado. Fui ao delírio quando foi revelada a ligação do gibi com outra cria da dupla, o 5/5. Só posso terminar este texto dizendo: “Por favor, não parem. Continuem produzindo e eu continuarei comprando.” (MMA)