FIQ parte 3 – Intérprete de uma história negra do Brasil: entrevista com Marcelo D'Salete

FIQ parte 3 – Intérprete de uma história negra do Brasil: entrevista com Marcelo D'Salete

Parte 3 de nossa série de

entrevistas com grandes personalidades presentes no FIQ 2018

. Desta vez, com ninguém menos que Marcelo D’Salete. Não conhece ainda? Hmmm... Ainda dá tempo de correr contra o prejuízo.

Nascido em São Paulo, Marcelo D’Salete é um dos nomes de maior destaque no cenário quadrinístico brasileiro atual. Com forte pegada autoral e intenso engajamento em temas de cunho racial, os quadrinhos de Marcelo têm se destacado por abordar temas complexos da historiografia nacional – como a escravidão – pela perspectiva dos povos oprimidos. Dentre seus trabalhos de maior reconhecimento, incluem-se

Cumbe

(Veneta, 2014) e

Angola Janga

(Veneta, 2017). Em 2018,

Cumbe

foi indicada ao Prêmio Eisner (premiação máxima dos quadrinhos norte-americanos) na categoria melhor publicação estrangeira nos EUA. Tomara que ganhe.

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RELATO DE VIAGEM FIQ 2018 + ENTREVISTA COM DAVE MCKEAN!

por Marcos Maciel de Almeida

O FIQ 2018 foi bão demais, sô! Pelo menos foi o que deu para sentir após conversar com os participantes do evento. Organizadores, convidados, e expositores – principalmente eles – estavam com um sorriso estampado no rosto. Eu também não vou discordar. Foram cinco dias intensos, mas que valeram a pena. O clima de congraçamento estava disseminado e não se restringiu às paredes da Serraria Souza Pinto. Foram mais que comuns as esticadas ao Maletta – edifício tradicional no Centro de Belo Horizonte que congrega inúmeros botecos, sebos e restaurantes. Sempre equipados com suas indefectíveis mochilas recheadas de gibis, os participantes do FIQ embarcaram em altos papos noite adentro, sustentados por quantidades indecentes de cerveja e torresmo.

E a Raio Laser não ficou fora dessa, claro. Escalados por nosso chefe Ciro Inácio Marcondes, eu e meu melhor inimigo Márcio Jr mergulhamos em mais uma louca aventura. Tínhamos como compromisso cobrir o evento, tarefa na qual teríamos nos saído melhor se não fosse o cansaço e a ressaca. Se bem que o Márcio tem uma justificativa melhor que a minha. Ele era expositor na mesa 164, local em que, dentre outras maravilhas, vendia o quadrinho que escreveu: Cidade de Sangue, desenhado pelo mestre Julio Shimamoto e colorido pelo talentoso Tiago Holsi. O gibi é coisa fina. Capa dura, formato grande e precinho camarada. Mas bem, isso é papo para outra resenha. (Falando nisso, cadê minha cópia, Márcião?)

Mesa 164: Raiúkas + Tiago Holsi

Não vou entrar em detalhes sobre a programação do FIQ, disponível no site , mas não posso deixar de mencionar que foi muito bem sacada. Meus momentos favoritos? Palestra do Dave McKean, em que o capista de Sandman contou um pouco sobre sua trajetória, mostrando – para desespero dos céticos – que é um artista de mão cheia e não apenas nas HQs. McKean narrou sua experiência em outras mídias, como o cinema e a música. Irriquieto, o artista britânico confidenciou que não consegue parar de transitar por outras áreas, sempre com uma entrega descomunal e imersiva. Foi emocionante estar perto dessa estrela generosa e humilde que brilha com luz tão intensa. Melhor parte? Quando ele perguntou: “quem aqui faz quadrinhos?”. Metade do auditório levantou a mão. “Legal, mas eu acho que todo mundo aqui deveria estar fazendo quadrinhos...”. Silêncio.

Dave McKean fazendo o sonho dos fãs voar mais alto.

Outra palestra bacana foi a “Editando quadrinhos no Brasil”, com os responsáveis pelas editoras Veneta, Balão, Mino e Lote 42. Foi um baita aprendizado ver como esse povo aposta com criatividade e ousadia numa forma de arte que – como a maioria delas – é tão desprestigiada no Brasil. Parabéns, rapaziada.

Fina flor da editoração quadrinística brasileira

Oportunidade bacana no festival foi poder assistir animações – escolhidas pela curadoria do FIQ – no MIS Cine Santa Tereza. Pensa num cineminha acolhedor e confortável, com programação cultural impecável. E o melhor: de graça! Só no FIQ? Não, meu caro, o ano inteiro! Parece milagre, mas é verdade. Eis o Brasil que dá orgulho. Uma salva de palmas para os envolvidos. Qual filme assisti? “Só” deu para pegar o Tekkon Kinkreet, baseado no mangá Preto e Branco, do Taiyo Matsumoto. O “só” foi entre aspas, porque quem já viu essa belezura sabe do que estou falando. Se não viu, veja. Se já viu, espalhe a palavra.

MIS Cine Santa Tereza

Mas qual foi o momento mais hiper-mega-blaster-topzera do evento? Todos. O FIQ desse ano foi o verdadeiro lugar de gente feliz. Acho que devia ser algo na água do local. (Aliás, podiam disponibilizar mais bebedouros, hein?). O clima de alegria e cumplicidade era contagiante. Sabe aquele esquema de reencontrar a galera do Segundo Grau? Esqueça! O FIQ não tem nada a ver com isso. Aqui o pessoal está olhando para frente. A vibe é mais no estilo “juntos novamente pela primeira vez” ou “nunca te vi, sempre te amei”. E não falo isso apenas pelo aspecto artístico em si ou pela camaradagem artista/artista e artista/público. Todos os quadrinistas expositores com quem conversei estavam bastante satisfeitos com o resultado das vendas. Acho que o fato de não termos tido FIQ no ano passado e o medo de que o evento não rolasse esse ano por causa da greve dos caminhoneiros contribuíram para esse espírito do “vamos celebrar, porque o FIQ tá rolando mesmo galera!”. E o grande charme do evento é que ele se apoia exclusivamente nos quadrinhos. Claro que tem outros produtos correlatos, mas o carro chefe são mesmo os quadrinhos. Grandes, pequenos, caros, baratos, PB ou coloridos. Eles comandam a festa, e por isso não há necessidade de trazer algum ator norte-americano bombado ou que esteja bombando.

Mas bem, para que nosso chefe na Raio Laser não pense que foi prejuízo investir em nossos suntuosos hotéis e em nossas caríssimas diárias para cobrir o evento, fizemos esse relato vagabundo e algumas entrevistas. Cinco no total. Vou manter suspense sobre os próximos entrevistados, mas decidimos começar com pé na porta e soco na cara. Ninguém menos que Dave McKean numa entrevista chuchu beleza exclusiva para a Raio Laser

Entrevista DAVE MCKEAN – por Marcos Maciel de Almeida e Márcio Jr.

Nascido em 1963 em Maidenhead, Inglaterra, o desenhista/pintor/ilustrador/músico/cineasta/escritor Dave McKean tornou-se mundialmente famoso ao ilustrar as capas da maxissérie Sandman, escrita por Neil Gaiman, durante o final da década de 80 e meados dos anos 90. O trabalho do autor é rico em colagens, efeitos com objetos e fotografias. Seu estilo arrojado e de grande densidade artística faz a cabeça dos fãs e também dos não leitores de quadrinhos. O trabalho de McKean e Gaiman se cruzou diversas vezes, em obras como Violent Cases (1987), Sinal e Ruído (1992) e Mr. Punch (1994), todas lançadas no Brasil. Entre 1990 e 1996, Dave escreveu e desenhou o calhamaço Cages, que venceu o prêmio Harvey de Melhor Lançamento e Melhor Graphic Novel. Em 2016, McKean publica Black Dog, recentemente lançado no Brasil pela Editora Darkside.

Black Dog

Neste último trabalho, na qual interpreta – com bastante liberdade – a trajetória do soldado/artista plástico britânico John Nash, McKean mostra-se um artista no auge: cada um dos capítulos do livro é contado com um estilo artístico diferenciado, que parece reverenciar as várias fases da carreira do quadrinista.

Black Dog evidencia a maturidade de sua arte, pronta para continuar nos deixando de queixo caído pelas próximas décadas. Confira, abaixo, trechos de uma rápida – e concorrida – entrevista que ele gentilmente concedeu à Raio Laser (MMA):

Raio Laser: Onde você acha que estaria hoje caso a revista do Sandman nunca tivesse existido?

Dave McKean: Em algum outro lugar...(risos). Sim, eu acredito que Sandman tenha sido um momento de sorte. Havia um espaço, nos anos 80, na DC e na Marvel, em que nós podíamos tentar coisas e em que Neil podia escrever as histórias que ele queria. E eu podia brincar com as capas e fazer o que quer que me desse na telha. E ninguém questionava isso.

Durou apenas alguns anos, mas tivemos muito material interessante feito naquela época.

Mas eu ainda estaria fazendo o que estou fazendo agora. Estou escrevendo e desenhando não porque eu desenhei as capas do Sandman. Eu ainda estaria fazendo exatamente as mesmas coisas ainda que o Sandman não tivesse existido.

Raio Laser: Você trabalha com diversas mídias e tem uma ligação muito estreita com quadrinhos e música. Como essa ligação ocorre em seu trabalho? Você é quadrinista, músico, dono de gravadora... Em que medida pensa em seus quadrinhos como musicais e em sua música como imagética?

Black Dog

Dave McKean: Música e arte eram minhas duas paixões quando criança. E essa foi minha escolha. Eu tinha, profissionalmente, que optar pelo caminho da arte ou da música. Eu sentia isso. Então fui para a escola de artes, porque isso parecia a coisa certa para fazer, mas eu sempre senti falta da música. Então, tem sido fantástico poder fazer essas duas coisas se encontrarem em projetos como Black Dog. Meu quadrinhos favoritos soam como música. Eles não são preenchidos com muito texto. Eles são, preferencialmente, sem texto. O importante é que a narrativa e as imagens fluam como música. Elas têm essa liberdade.

E a música que eu escrevo tende a possuir um elemento narrativo. Eu não sou muito bom em escrever melodias que não tenham uma razão. Ela tem que – de alguma forma – estar contando uma história. Então, música e narrativa são muito importantes para mim. Por algum motivo, a narrativa é algo muito fora de moda no mundo das artes hoje em dia. Enquanto que, para mim, ela é um elemento crucial para nossa cultura. É como transmitimos para as novas gerações a maneira pela qual nos percebemos como seres humanos.

Raio Laser: Seu trabalho sempre teve um aspecto de bricolagem, de colagem de vários elementos. Em determinado instante, a presença da manipulação digital surge em sua obra. Como vê isso hoje? Haveria uma sensação de que alguma coisa ficou datada ou o trabalho anterior funciona como uma espécie de marca daquele tempo? Como enxerga o trabalho anterior em retrospecto?

Dave McKean: Bem, eu comecei tentando fazer imagens que fossem translúcidas e com aspecto onírico, mas utilizando meios físicos, como fotografia, múltiplas chapas fotográficas, colagem física de objetos. Eu consigo obter cerca de 20% daquilo que estava imaginando na prancha (de desenho). Mas então eu comprei um computador e li o manual do Photoshop. E foi como se alguém o tivesse escrito para mim! Era exatamente o que eu queria fazer. E eles conseguiram alcançar esse resultado da mesma maneira que eu teria feito. Então eu senti que o Photoshop tinha sido feito para mim. Um mês depois de começar a usar ferramentas digitais, eu comecei a obter de 50 a 70% – do que eu estava imaginando – no produto final. Eu adorei o controle e a manipulação que ele me deu sobre as imagens. Além disso, tinha o fato de que você podia testar coisas muito rapidamente, salvar as versões preferidas... Era como se estivesse brincado. Eu achei a experiência muito divertida. Mas o que acontece é que comecei a ver muitas outras pessoas utilizando ferramentas digitais. E eu também fiz muitos trabalhos usando Photoshop por muitos anos. Bem, eu tive prazer em brincar com essas ferramentas, mas eu sinto muita falta da humanidade presente numa imagem desenhada ou pintada em meio físico. Eu ainda uso Photoshop o tempo todo, mas é apenas para controlar a imagem no final do trabalho. E a imagem e a pintura são feitas por meio físico. E se, eventualmente, uma página ou parte específica da história requer uma experiência digital estranha ou algo do tipo, então eu uso (o Photoshop), mas é apenas uma ferramenta com muitos truques. Não é a coisa mais importante. Não é ele quem dá as cartas.

Raio Laser: Seu trabalho envolve diferentes formas de arte. Nos quadrinhos, como você enxerga seu trabalho? Quais seriam seus pares? Se fôssemos fazer um recorte da cena quadrinística mundial, em que lugar poderíamos encaixá-lo? Em outras palavras, qual seria sua turma?

Dave McKean: É difícil dizer, porque eu não sinto que faça parte de um grupo específico, embora haja muitas pessoas pelo mundo pelas quais eu sinta grande empatia. Mas por uma razão ou outra, eu não sinto como se fizesse parte daquele grupo. Por exemplo, meus artistas favoritos nos quadrinhos são italianos como Lorenzo Mattotti. Ele fazia parte de um grupo chamado Valvoline. Todos tinham mais ou menos a mesma idade, cresceram juntos e encorajavam uns aos outros. Eu não tenho um grupo como esse, mas eu sinto um grande carinho e empatia pelo Lorenzo Mattotti, pelo José Muñoz, Cyril Pedrosa... bem, você sabe. Muita gente. Mas eles estão em todos os cantos. E eu não posso dizer que nós realmente façamos parte de uma turma, porque somos muito diferentes. Mas essas são as pessoas com as quais eu sinto uma forte conexão.

Raio Laser: Seu trabalho é poderoso e está fortemente disseminado em várias mídias, como quadrinhos, cinema e música. Como gostaria de ser lembrado?

Dave McKean: (Gargalhadas...) Meu Deus! Na verdade, ficaria feliz em ser esquecido... (risos). Na verdade eu gostaria que alguns dos livros que estou fazendo agora fossem lembrados, porque eu sinto que eles são realmente sobre alguma coisa. São sobre temas interessantes e eu espero que durem um pouco de tempo. Estou feliz que alguns dos trabalhos que fiz 20 ou 30 anos atrás tenham lugar na História das HQs. Eu acho isso muito bacana. Mas não é necessariamente – eu espero – o tipo de material que as pessoas estarão olhando daqui a 100 anos. Eu espero que eu ainda não tenha produzido meus melhores trabalhos. Espero que o melhor ainda esteja por vir.