Rapidinhas Raio Laser #09: especial Catarse

Vaquinhas virtuais chegaram para ficar. Goste ou não, o fato é que cada vez mais criadores estão utilizando o financiamento coletivo para viabilizar seus projetos. É aquela história: se tem gente interessada em bancar, por que não lançar? A coisa está especialmente disseminada nos gibis, principalmente em razão dos valores de produção, relativamente baixos se comparados aos de outras mídias. 

Aqui na Raio Laser já virou praxe fazer resenha de gibi independente. Aí pensamos em fazer um post exclusivamente dedicado às HQs que compramos por meio de vaquinhas virtuais, afinal elas continuam sendo independentes, certo? 

Na análise abaixo, a tendência é que façamos comentários positivos sobre os gibis adquiridos, já que só financiamos autores nos quais realmente acreditamos. Por isso os quadrinhos a seguir provavelmente receberão elogios rasgados. Será mesmo? (MMA)

por Marcos Maciel de Almeida e Ciro I. Marcondes

R’lyeh Boy – Caio Oliveira (Quinta Capa, 2017): R’lyeh Boy é uma sátira de ... Bem, se você não sabe, está na página errada. Busque conhecimento sobre a série mais longeva de Mike Mignola e volte aqui. R’lyeh faz referência à cidade submersa fictícia criada por HP Lovecraft, prisão do deus adormecido Cthulhu. Não sabe quem é Cthulhu? Resumo de três linhas: é um deus/entidade alienígena que está dormindinho na Terra e vai despertar qualquer hora dessas para tomar o que é seu, ou seja, o nosso planeta. Enquanto ele dorme, humanos mais sensitivos são afetados por seus sonhos e, gradualmente, passam a enlouquecer, barbarizando geral. O visual de R’lyeh Boy é claramente inspirado em Cthulhu.  R’lyeh Boy é funcionário de uma empresa que resolve problemas sobrenaturais. No gibi em questão, R’lyeh Boy é despachado para enfrentar avatares de jogadores de RPG (boa sacada, Caio!) da Terceira Dimensão (a nossa!). Os avatares invadiram o reino dos desmortos e estão botando pra quebrar. E isso é assunto pro nosso herói, claro. A pegada de Caio é enviesada para o humor e ele se sai muito bem nisso. Afinal, não é de hoje que ele vem fazendo a alegria da galera com a sua página “Cantinho do Caio” no Facebook. O gibi vem com uma série de “plus a mais”. Tem pin-ups espirituosos, piadinhas extras e adesivo engraçadinho. Simpático. 

Pensando aqui com meus botões. Enquanto Cthulhu dorme, ele segue influenciando a vida na Terra com sua presença no inconsciente coletivo. Já pensou se isso estiver acontecendo na real? Já imaginou se o próprio HP Lovecraft não for seu criador, mas mero fantoche que ajudou a propagar os mitos de Cthulhu e sua turminha da pesada, os “Old Ones”? Cthulhu é figurinha fácil na literatura, na música, no cinema, nos video-games e – por que não? – nos gibis. Nos últimos anos saíram – apenas no Brasil – pelo menos três quadrinhos relacionados ao mito alienígena (R’lyeh Boy, O Despertar de Cthulhu e Rio Negro. Pode ser que nós também estejamos contribuindo para a disseminação do imaginário do monstrengo. Mas bem, isso é papo para outro post. Por hora fiquemos com o gibi do Caio. É uma ótima pedida. Especialmente para ser apreciado antes do eventual despertar de Cthulhu. (MMA)

Adesivo maneiro pra barbarizar com seu vizinho evangélico

Anuí Lelis (Independente, 2017): A caixa de música de pequena Alice quebrou. Seu choro de desconsolo está acordando a cidade inteira. Ela e sua mãe levam a caixa de música para arrumar. O consertador é o cara mais odiado da região, daqueles que fazem até o capeta passar raiva. No entanto, tudo muda quando toca o telefone da casa de reparos. Quem será?  Esse é o resumo livre de spoilers de Anuí. É uma história simples, mas nada simplória. É, sobretudo, um trabalho de entrega. Lelis transmutou sangue, suor e lágrimas em papel e tinta guache para criar mais uma de suas obras de arte. O painel de cada quadrinho seu – é clichê dizer isso, mas fazer o quê? – merecia ser emoldurado e apreciado na parede. Lelis se esmera para pintar cada tijolo, cada pedra, cada telhado. Lelis é operário dos quadrinhos. Lelis é pedreiro. Com Lelis não tem tempo ruim. Lelis é gente que faz. Como em todo trabalho desse mineirinho desembestado, o gibi respira sutileza. É transporte certo para uma dimensão na qual as cores são mais vivas. Em que as pessoas não precisam caminhar, já que flutuam. Quando leio Lelis, é como se pudesse sentir cheiro de café fresco e pão de queijo assando no fogo à lenha. Trem bão demais, sô. Lelis é isso aí. Simplicidade e generosidade em doses cavalares. Falando em cavalo, nunca vou esquecer da primeira vez que o encontrei, no Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) de 2015.  Dei uma olhada na listagem de convidados no guia do evento. Todos bonitos e de banho tomado, em fotos reluzentes. Já Lelis aparecia montado em seu alazão. Quer mais autenticidade que isso?

Momento emocionante ligado a Anuí foi quando recebi – eu e todos que patrocinaram o gibi – o tocante e-mail de Lelis confessando seu descontentamento com o resultado final da revista. Na verdade, insatisfação não com o gibi em si, mas com o fato de que a versão que foi para a gráfica – por erro – foi a de baixa resolução. Eu nem tinha reparado. Fica triste não, Lelis. A edição ficou duca. 

Lelis já foi publicado na Europa, em vários gibis, inclusive Goela Negra, lançado pela Mino em 2015. Não é fraco não. Acho difícil que os gringos levem ele embora, porque o cabra não vai querer trocar o cheiro do mato “nacionar” pela grama sintética estrangeira. Apesar disso, acho que devemos aproveitar enquanto o cara está por aqui e prestigiá-lo. Lelis é mais. Lelis é Brasil. (MMA

Eudaimonia – Luciano Salles (Independente, 2017): Diferentemente do sci-fi freak/lisérgico de trabalhos como O Quarto Vivente e Dark Matter (e reaproveitando a personagem de Luzscia, a Dona do Boteco), em Eudaimonia Luciano Salles traz à tona um submundo degenerado cheio de personagens "figura", traficantes e drogados que apelam ao non-sense dentro de um ambiente mais urbano. A porraloquice, no entanto (ainda bem), permanece a mesma. Porém, a coisa ganha camadas pesadas de Geof Darrow, Frank Miller dos anos 90/00, além de pitadas de Rafael Grampá, para erigir um verdadeiro colosso visual, em P&B super hachurado, preciso nanquim e um hiper detalhismo estilizado que meio que se justifica por si só.  Digo isso porque, por mais que a história passe como um relâmpago, seja espécie de trecho entrevado de algo maior e possa ser lida em poucos minutos, o apelo visual desta HQ é algo que não passa despercebido nem pelo mais careta e equivocado crítico do estilo visual hiper detalhista. Já o enredo trata de um acerto de contas entre um matador de aluguel brutamontes e meio mongoloide vestido de onça, aliado a uma velha bem escr*ta, dona de um bar, que precisa de droga para aliviar artrites terríveis e coisas assim.  A ação é vertiginosa. Mangás de Katsuhiro Otomo e Tayo Matsumoto também marcam presença como influências para a degeneração urbana, e Eudaimonia se faz ensaio pra algo que poderia ser maior e mais robusto (portanto, mais cabuloso). Linhas de ação trôpegas cortam as operações alucinadas que fazem esse quadrinho parecer um curta-metragem (bem curto mesmo) ou um teaser de algo ambicioso que se anuncia.

Eu, pessoalmente, aguardo ansiosamente o romance gráfico monstruoso que Luciano Salles está ensaiando em todas estas histórias curtinhas, unindo esses temas todos parecidos e favoritos: o convívio doidão com drogas estimulantes e/ou psicotrópicas, personagens barra pesada sempre “under the influence”, histórias sci-fi perturbadores que funcionam como se Black Mirror não fosse tão careta, imersão em sonhos, delírios ou realidade virtual mesmo.

Eudaimonia realmente é um quadrinho legal, mas tem um certo jeito de “amostra grátis” que faz a gente pensar se não é tudo uma ação de marketing do autor para soltar sua obra-prima num futuro próximo. Estarei certo? (CIM)  

Black Emperors: Bikes vs Sk8s - Dalton Cara e Magenta King (Independente, 2017): Magenta King e Dalton Cara. Temos que ficar de olho nesses rapazes, que não estão para brincadeira. Depois de chutar nossas bundas com o não menos que espetacular 5/5, a dupla endiabrada ataca novamente para nos brindar com outra pauleira na moleira: Black Emperors.  Se tivesse que escolher apenas dois adjetivos para descrever o último fruto dessa parceria, seriam os seguintes: dinâmico e explosivo, como foi o próprio processo de produção da HQ, abundante em adrenalina. Explico. Em 2017, a dupla se propôs o desafio de produzir uma revista de 32 páginas em um mês. O processo de criação foi exposto durante as aulas que ambos ministravam na Quanta Academia e no Sesc Pompeia, contando com o feedback dos alunos. Após o sucesso da empreitada, os dois resolveram pegar ainda mais pesado e expandir os limites que se auto impuseram. A aposta agora era lançar uma edição com pelo menos cem páginas num período pouco maior que trinta dias. As doses de exposição também aumentariam. Por isso, cada nova página do gibi foi religiosamente postada nas redes sociais, permitindo o escrutínio do público interessado. Pergunta se os caras conseguiram passar pelo segundo teste? Para nossa alegria sim. Eis que é lançado Black Emperors: Bikes vs Sk8s, que compila os dois trabalhos acima. De que se trata o gibi? Bem, o título já entrega em parte, mas o confronto entre gangues de skatistas e ciclistas é apenas o pano de fundo para uma saga que envolve vingança, rebeldia e gratidão. Tudo isso num ritmo frenético. Lembra que eu falei que o gibi é dinâmico? Então, o quadrinho te pega pelo pescoço desde o primeiro quadro da primeira página – que já te lança no meio da ação – e não solta até que termine a leitura. 

Primeira página de Black Emperors

Um dos pontos positivos da HQ é a riqueza imagética dos personagens. Cada participante da trama tem linguagem e visual característicos, que parecem ter sido meticulosamente estudados. Curiosamente, o enorme talento para criação de personagens parece equivalente à capacidade dos autores para se livrar deles. A cada três páginas, cerca de quinze personagens morrem, apenas para dar lugar a novos coitados que partirão dessa para melhor na página seguinte. Apesar disso, a história mantém um fio condutor coeso e lógico, que não se cansa de transpirar diversão. 

Influenciados por Paul Pope, os autores resolveram alterar seu processo criativo, permitindo-se pequenas alterações de percurso e flexibilizações no roteiro, tudo isso em nome da diversão. E o gibi é puro reflexo disso. Black Emperors está aí para capturar os corações e mentes de leitores cansados de quadrinhos carentes de espontaneidade, criados a partir de receita de bolo. Pela leitura do gibi, fica evidente que Dalton e Magenta cresceram lendo doses maciças de gibis de super-heróis. O impressionante é que mesmo depois de comer tanto arroz com feijão, eles não se deixaram levar pelas fórmulas batidas do gênero. O mais bacana é ver que eles souberam aproveitar as influências para lançar novos olhares para o universo dos quadrinhos, fugindo de maniqueísmos e de personagens bidimensionais. Por isso, a trama de Black Emperors é altamente ousada e imprevisível. 

À moda de Howard Chaykin, os diálogos não têm espaço para didatismo ou explicações do tipo quem é quem. A história tenta emular o modo como as coisas como acontecem na vida real. Não há tempo para identificar cada um dos personagens, mesmo porque eles já estarão mortos nas páginas seguintes. O negócio é se deixar levar pelo vagalhão, sem fazer muitas perguntas. 

Não é fácil permanecer vivo no universo de Black Emperors

O leitor tem um ponto de vista privilegiado para observar o universo de Dalton e Magenta. Quem nunca foi dos grupos mais populares da escola – como eu – vai poder acompanhar de camarote uma realidade habitada exclusivamente por pessoas cool, tipo aquela turma da qual você nunca fará parte.

Black Emperors é uma espécie de versão quadrinizada e insana de seriados como Barrados no Baile e similares. Para mim, programas desse tipo suscitavam aquela sensação de fingir desprezo pela turma popular, mas sempre dar uma espiada torcendo para que os bonitões e descolados acabem se lascando. E o bom é que, em Black Emperors, quase todo mundo se dá MUITO mal. 

Para deleite dos leitores, o universo de Dalton e Magenta está todo interconectado. Fui ao delírio quando foi revelada a ligação do gibi com outra cria da dupla, o 5/5. Só posso terminar este texto dizendo: “Por favor, não parem. Continuem produzindo e eu continuarei comprando.” (MMA)