Autocracia: um quadrinho político sobre o mundo motorizado

Depois de umas mini-férias, a Raio Laser enfim acorda de seu sono dogmático. O texto a seguir é mais uma colaboração de Havane Melo (professora e pesquisadora de histórias em quadrinhos e fotografia), como sempre muito bem-vinda. (CIM)

por Havane Melo

Embora tenha lançado uma HQ de vanguarda, disponível no Brasil desde 2015, e  desenvolvido diversas parcerias com grandes nomes dos quadrinhos internacionais, Woodrow Phoenix ainda é um artista pouco popular por aqui. Talvez porque seu único gibi lançado e traduzido nacionalmente, Autocracia: Velocidade, Poder e Morte no Mundo Motorizado (Rumble Strip, 2008; Veneta, 2015), está longe de ser uma leitura confortável e não apresenta personagens, diálogos ou veículos. O autor comunica-se conosco através de dados reais sobre acidentes de trânsito e críticas sobre a forma como a sociedade tem orientado seu desenvolvimento, enfatizando a utilização de veículos como meio de transporte, em detrimento do pedestre e do transporte coletivo. A obra também questiona a legislação de trânsito e a relativização da punibilidade em acidentes no setor.

Se acreditarmos que o conteúdo jurídico de uma sociedade é fruto de sua organização contemporânea (ou, pelo menos, é isso que deveria ser), é considerado aceitável que a punibilidade do motorista seja reduzida, afinal, temos vários interesses em jogo aqui e tanto o Estado como o setor privado – entidades muito maiores que o indivíduo não motorizado – têm relação direta com a expansão do setor automobilístico.

Em 2017, a cidade de São Paulo chegou à marca de 6 milhões de automóveis registrados . Ainda assim, pouco mais da metade da população do Brasil tem um veículo próprio: 53% das casas brasileiras ainda não têm nem carro nem moto. Aqui em Brasília, se você é usuário de transporte público ou se já tentou pegar um ônibus no final de semana, é possível que faça parte de 61% dos usuários que consideram o transporte coletivo do DF péssimo.

Infográfico desenvolvido por Leo Aragão, Daniel Roda, Dalton Soares e Elvis Martuchelli para o site G1 

Fora das estatísticas, no mundo das artes visuais, diversos artistas têm a caminhada como ponto inicial do processo criativo. E o fato não é novo: as experiências relacionadas à caminhada e ao ato de criação remontam ao século XIX, com o conceito de flâneur, desenvolvido por Charles Baudelaire, em Paris. Na década de 1920, movimentos artísticos, como o surrealismo, por exemplo, produziam suas experiências com deambulações, enquanto os dadaístas realizavam grupos de caminhadas à deriva. Em 1950, Guy Debord e seus parceiros discutiram o ato da caminhada dentro da Internacional Situacionista. E, na arte contemporânea, dezenas de artistas utilizam o ato de caminhar como parte de seu processo criativo, direta ou indiretamente, como exemplo Richard Long, Hamish Fulton, Francis Alÿs, Mona Hatoum, Gabriel Orozco, André Breton, Lygia Pape, Hélio Oiticica, entre outros.

A versão original da obra, Rumble Strips (2008), é focada na cidade de Londres e, como tal, participou do projeto "Sequential City": uma exposição organizada pelo estúdio Baxter and Bailey, que nos apresenta Londres através dos quadrinhos e contou com 14 obras, algumas páginas originais e entrevistas sobre a relação do processo criativo dos artistas com a cidade. Entre as entrevistas, encontramos a fala de Phoenix sobre a relação entre a cidade e sua HQ:

Para o Brasil, a HQ apresentou páginas criadas especialmente para essa edição, contendo dados e construções urbanas locais. Entre as cidades brasileiras representadas, está Brasília que, até outubro de 2017, já contabilizava 17 ciclistas mortos em acidentes de trânsito, segundo dados do DETRAN/DF.

Muitos dos quadrinhos autobiográficos que desembarcaram no Brasil na última década trouxeram posicionamentos políticos por trás da história pessoal de seus personagens, refletiram estilos de vida e escolhas pessoais que conquistaram uma diversidade de leitores (vide Fun Home, Pagando por Sexo, Retalhos, entre outros). A diferença é que Autocracia não trouxe romance, ação ou aventura, não nos apresentou a personagens carismáticos e ainda critica o sistema de transportes vigente, do qual muitos de seus leitores fazem parte.  Ainda assim, Autocracia não é uma obra cicloativista. Não menciona alternativas. Não justifica o sistema. Não é um relato autobiográfico. E, definitivamente, não é um quadrinho para mero entretenimento. É um posicionamento político e crítico que, no mínimo, provoca reflexões no leitor e mexe com sua zona de conforto. O trabalho de Phoenix merece nosso olhar não apenas pela novidade da composição, mas também pelo tom político que a obra apresenta desde o início - a palavra autocracia, em português, significa governo ilimitado, absoluto. Um quadrinho capaz de perturbar os usuários mais convictos da indústria automobilística.

MELHORES QUADRINHOS LIDOS EM 2017 - PARTE 4

Fazendo o levantamento das melhores leituras de 2017, algumas constatações me saltaram aos olhos. A primeira, é que não li pouco – mas li menos do que gostaria. A bem da verdade, se pudesse, passaria o tempo todo lendo. Ou quase.

Ainda que tenha lido em boa quantidade, fiquei longe de equilibrar a razão entre o que adquiri e o que efetivamente consumi. De modo que a pilha segue aumentando de forma doentia. Mantenho a fantasia de que irei ler absolutamente todos os gibis que tenho. Mas a matemática e o tempo são implacáveis e essas questões têm me atormentado mais e mais (vou até comprar uns gibizinhos agora pra aliviar um pouco a ansiedade).

A escolha das leituras também não obedeceu a nenhum critério claramente definido. Tirei o atraso de algumas obras importantes. E perdi tempo com algumas besteiras. A ideia que vai se plasmando em mim é que não sou eu quem escolhe os gibis a serem lidos, são eles que me escolhem – numa equação que envolve acessibilidade (muitas vezes não encontro o que quero ler em determinado momento) e intuição.

Sempre advoguei que a Raio Laser deva ter uma perspectiva atemporal. É consenso entre nós. As listas de melhores não têm a mínima pretensão de cobrir o ano editorial. Isso é papo de assessoria de imprensa jabazeira. Bons quadrinhos nunca terão prazo de validade. Minha surpresa foi perceber que a maioria das HQs que compõem minha lista de melhores foi, coincidentemente, publicada em 2017. O que isso significa? Sei lá.  Por fim, não gosto de estabelecer hierarquia entre as obras. Então, chega de papo furado e vamos à lista. (MJR)

Parte 1

Parte 2

Parte 3

por Márcio Junior

01 - O MUNDO DE EDENA, Volumes 1 a 6 – Moebius (Nemo, 2013 a 2014): Tenho uma dívida pessoal com a Editora Nemo pelo esforço e qualidade com que preencheram inadmissíveis lacunas do mercado editorial brasileiro. Em edições primorosas, publicaram (ou republicaram) autores de primeira grandeza como Hugo Pratt, Enki Bilal e Jean Giraud, o insuperável Moebius. Após oito álbuns cobrindo diferentes trabalhos do mítico autor francês, foi a vez da espantosa série O Mundo de Edena. Moebius é um artista sem igual. Dentro e fora do mundo das HQs. Entre 1983 e 2001, ao longo de 18 anos – o hiato de uma maioridade –, concebeu os seis livros que narram a epifânica trajetória de Atan e Stel. Por mais improvável que pareça, a série nasceu de uma encomenda feita pela gigante automobilística Citroën. Foi a fagulha necessária para que o autor se lançasse num oceano de profunda criação, sem destino certo ou porto seguro. Guiado unicamente pela liberdade, deu à luz uma obra de infinitas leituras, lidando com temas tão diversos quanto a relação homem/máquina, sexualidade, natureza, mitos criacionais, opressão, sonho, psicanálise, inconsciente, alimentação, magia e, acima de tudo, transformação.  Para Moebius, a vida se dá em constante mutação. E mais que pontos de partida e chegada, o mais importante é o caminho – ele mesmo dinâmico e mutável.

Posto que forma e conteúdo não se dissociam, graficamente O Mundo de Edena nos conduz a infindáveis viagens imagéticas. Nasce de uma busca do artista pela essência do traço, pela negação dos excessos. E mesmo esta busca se transubstancia em tantas outras abordagens visuais ao longo dos álbuns, num constante processo de experimentação que jamais se esgota em si mesmo. Ali, a beleza se materializa e se atualiza de modo sempre novo. Uma obra de arte definitiva.

Realizei uma imersão no Mundo de Edena. Foi, sem sombra de dúvidas, minha mais importante leitura em 2017. Planejei longos textos sobre a obra aqui na Raio Laser. A vida – em constante mutação, como já dito – não permitiu. Fica para outro momento. Mas aquele mundo onírico permanece aberto, à espera de quem se aventure por suas paragens. Faço então um único pedido à Nemo: deixem minha dívida aumentar. Continuem publicando Moebius.

02 - BILLIE HOLIDAY – Muñoz & Sampayo (Mino, 2017) e EL COLMILLO DE LA SERPIENTE – Muñoz & Charyn (Norma, 1999): O argentino José Muñoz é um deus do claro-escuro, um poeta das sombras, um gênio dos quadrinhos. Sua pena cava profundos sulcos no papel, deixando um leito aberto para que o nanquim/sangue/treva possa preenchê-lo, dando forma a obscuras facetas da experiência humana. Não deixa de ser absurdo um artista desta magnitude permanecer praticamente inédito no Brasil. Movida a coragem, a Mino deu sua contribuição para reverter este quadro com a preciosa edição de Billie Holiday – na minha opinião o grande lançamento de 2017 no mercado brasileiro. Outra obra-prima de Muñoz lida ano passado foi El Colmillo de la Serpiente – esta, ainda inédita por estas plagas. Falei sobre os dois livraços aqui.

03 - SILÊNCIO – Didier Comès (Bertrand, 1983): Silêncio, obra icônica do belga Didier Comès, foi um desses acasos fortuitos: numa jogada de pura sorte, o livro veio parar em minhas mãos. Daí para se tornar um dos favoritos (não de 2017, mas de toda a minha vida), foi o prazo de uma leitura. Escrevi sobre ele aqui.

04 - CIDADES ILUSTRADAS - SALVADOR – Marcello Quintanilha (Casa 21, 2005): A tradução gráfica de uma cidade a partir das impressões de um olhar estrangeiro era o mote da coleção Cidade Ilustradas. Quadrinistas nacionais e internacionais eram convidados a viver por cerca de duas semanas em uma cidade brasileira. A partir desta imersão, com grande nível de liberdade oferecido aos artistas, nasciam os livros – invariavelmente ricos e interessantes. David Loyd (São Paulo), Jano (Rio de Janeiro), Fabio Moon & Gabriel Bá (Manaus) e Guazzelli (Florianópolis) foram alguns dos nomes que participaram da coleção. O ponto mais alto, entretanto, viria com a Salvador de Marcello Quintanilha.

A tão decantada capacidade de Quintanilha em captar o tipo comum brasileiro brilha aqui mais que figurino de Ivete em cima de trio elétrico. Seu pendor natural pela originalidade faz com que Cidades Ilustradas: Salvador não seja uma mera compilação de desenhos (espetaculares, como de praxe, em se tratando de Quintanilha). Mais que isso, o livro situa-se num lugar indefinido entre livro ilustrado e história em quadrinhos, expandindo os limites de ambos.  Existe uma narrativa em prosa a percorrer a obra, com saltos e interstícios. Personagens surgem, desaparecem, retornam. As imagens possuem um diálogo com esta narrativa, são atravessadas por ela. E as atravessam. Imagem e texto, um prenhe do outro.

Cidades Ilustradas: Salvador opera então com uma meta-HQ. Por outro lado, a qualidade do texto de Quintanilha é, por si só, notável. O livro é a prova cabal que o autor poderia se dedicar exclusivamente à literatura. Mas não faça isso não, Marcello. Já nos basta a ausência de um Mutarelli. 

05 - NÓIA, UMA HISTÓRIA DE VINGANÇA! – Diego Gerlach (Escória Comix e Vibe Tronxa Comix, 2017): No atual (e riquíssimo) panorama dos quadrinhos brasileiros, o gaúcho Diego Gerlach é – como ele mesmo afirma, em profusa auto-ironia – avis rara. Desenhista de mão cheia e idiossincrático até a medula, tem criado uma obra originalíssima em dezenas de zines espalhados por aí. Ponto para a Escória Comix ao intimar o sujeito a criar Nóia, uma história de vingança! Com sua inconfundível personalidade, Gerlach sintetiza uma vibe moral setentista/oitentista, respaldada em um repertório que abarca o Justiceiro do Ross Andru, Dirty Harry e... Mauricio de Sousa! Nóia, o personagem principal, é um Cebolinha ultra-reaça, com cabelo de maconha e camisa da CBF. A hiper-violência que escorre pelas páginas carregadas de tensão frenética de Gerlach é gratuita apenas a um olhar desatento. Muito do Brasil 2018 está ali. Para mim, isso é que é Graphic MSP.

06 - ÚLCERA VORTEX, Volumes I e II – Victor Bello (Escória Comix, 2017): Outra pedrada da Escória Comix. Em um país sério e honesto, gente como o editor Lobo Ramirez e o quadrinista Victor Bello estariam atrás das grades. Sorte a nossa que estamos no Brasil.

Úlcera Vortex é um delírio da podreira. A imaginação de Victor Bello é irrefreável. Vejo o sujeito como uma espécie de Jack Kirby – só que débil mental e comedor de bosta cagada por pessoas movidas a uma dieta de ácido e Pitú. Obrigado Escória Comix e Úlcera Vortex. Vocês são a única resposta cabível à fofurização que acomete o quadrinho brasileiro.  

07 - CAMALEOA – Watson Portela (HC Comix, sem data, anos 1990): Se a memória da outrora popular tradição do terror no quadrinho brasileiro está se apagando, o que dizer então de nossas HQ eróticas? Quando falamos em sacanagem desenhada, um único nome vem à mente: Carlos Zéfiro. Nada mais injusto. Ao longo de décadas, nossas bancas foram o lar de milhares de gibis dedicados ao auxílio da prática onanista. Muito desse material era de qualidade questionável. Todavia, em períodos de vacas magras, a pornografia era o ganha-pão de legendas como Flavio Colin, Julio Shimamoto e Mozart Couto.

Camaleoa é um registro dos estertores deste mercado. Trata-se de uma pornografic novel (sic) do gigante Watson Portela. Ou melhor, de Helga (roteiro) e Barroso (arte) – afinal, o uso de pseudônimos era frequente no meio, uma vez que os quadrinistas buscavam resguardar sua imagem de “artistas sérios”. Manara, Crepax, Serpieri e quetais são tidos como mestres do erotismo. O Brasil produziu HQs do mesmo nível. Está passando da hora deste material ser resgatado com o devido cuidado. Eu ajudo. Com o maior prazer.

08 - MENSUR – Rafael Coutinho (Quadrinhos na Cia., 2017): Mensur está em tudo que é lista de melhores de 2017. Eu é que não serei blasé a ponto de retirá-lo da minha só por causa disso. Mas também não vou ficar aqui dizendo o quanto essa HQ é das coisas mais incríveis já vistas no quadrinho brasileiro. Periga o Rafa Coutinho ficar blasé...

09 - BLACK HOLE, Volumes 1 e 2 – Charles Burns (Conrad, 2007 e 2008): É sempre difícil encarar a pilha de quadrinhos que aguarda leitura anos a fio – enquanto cresce exponencialmente. Em 2017, um dos títulos com os quais finalmente acertei as contas foi Black Hole, de Charles Burns, ainda em sua primeira edição nacional, pela Conrad. As pilhas que se acumulam por anos dizem muito da nossa patologia. E patologia é um dos temas centrais da mais ambiciosa obra de Charles Burns, já alçada à categoria de clássico. Medo, isolamento, inadequação, sexo... Os dilemas enfrentados por todo ser humano na passagem para a fase a adulta são tratados com bizarra densidade através da perspectiva única de Burns. E como desenha esse desgraçado! Se você ainda não conhece Black Hole, não seja doente como eu. Pare o que está fazendo e corra atrás do livro, agora em edição única pela DarkSide.

10 - OS MORCEGOS-CÉREBRO DE VÊNUS E OUTRAS HISTÓRIAS – Coleção Incendiária, Volume 1 (Mino, 2017): A Mino segue resoluta no objetivo de construir um dos mais brilhantes e diversificados catálogos de quadrinhos no Brasil. Este primeiro volume da Coleção Incendiária – que marca o retorno do editor Lauro Larsen à casa que ajudou a fundar – é prova inconteste do profundo cuidado dedicado às suas publicações. Se é que alguém ainda não sabe, trata-se de uma portentosa compilação de quadrinhos norte-americanos de ficção científica, com um recorte que vai de 1939 a 1954 – ano em que se instaurou o famigerado Comics Code Authority. (Um parêntesis: alguma vez no mundo alguém já citou o Comics Code sem antes precedê-lo do adjetivo “famigerado”?). Ao todo, são 31 HQs que compõem um mais que representativo panorama do período. O material, em domínio público, passou por um monástico processo de restauração pelo designer Carlos Junqueira, idealizador do projeto. A qualidade do preto e branco alcançada na publicação não tem paralelos no mundo. Todavia, há controvérsias em se abrir mão das cores originais – planas e com paleta reduzida. Não foi à toa que Roy Lichtenstein ficou de quatro por elas.  O livro (de design impecável), foi traduzido com categoria pelo demônio Diego Gerlach. Intimidade com quadrinhos bizarros o sujeito tem de sobra - e é uma pena que a revisão não tenha sido mais criteriosa. 

Um certo Dr. Ciro Inácio Marcondes abre os trabalhos com o não menos que excepcional artigo Os intrusos numa era antes da censura. Daí pra frente é deliciar-se com as mirabolantes narrativas de um período cada vez mais distante de nós e assistir diversos nomes (alguns hoje consagrados; outros, injustamente esquecidos) dando seus primeiros passos na arte sequencial – ao mesmo tempo em que faziam com que a própria linguagem se desenvolvesse.

É emocionante ver a insanidade de Basil Wolverton e Fletcher Hanks, a classe de Alex Toth, Joe Kubert e Wally Wood, a originalidade à toda prova de Jack Kirby. Eram autores se estabelecendo num meio absolutamente avesso à autoralidade: o comic book. Pois se nas prestigiosas tiras de jornal o público procurava Alex Raymond, Hal Foster e Milton Caniff (entre tantos outros de elevada reputação à época), no descartável e industrial comic book tudo que a garotada buscava eram histórias completas, de seus personagens ou gêneros favoritos. Para além de nostalgia vintage, Os Morcegos-Cérebro de Vênus são um precioso documento do próprio amadurecimento em curso nos quadrinhos norte-americanos da época. Pena que o famigerado Código de Ética provocou um indesejável desvio de percurso, do qual as HQs se ressentem ainda hoje. 

11 - JACK KIRBY PENCIL AND INKS – Jack Kirby (IDW, 2016): Se estivesse vivo, em 2017 Jack Kirby completaria um século de existência. A data foi comemorada com uma miríade de lançamentos mundo afora. Nada mais justo. Após um final de carreira onde amargou certo ostracismo, desde sua morte, em 1994, a coisa gradativamente mudou de figura. Não tenho estatísticas nas mãos, mas as colocaria no fogo pela afirmação de que nenhum quadrinista norte-americano foi mais estudado, discutido e reverenciado nas últimas duas décadas. Com a mesma segurança, sou capaz de afirmar que Kirby é, em diversos aspectos, o mais influente autor de comics desde sempre. No Brasil, a celebração foi pateticamente tímida. Com milhares e milhares de páginas implorando publicação – muitas delas ainda inéditas no país do golpe – a Panini, a título de exemplo, resumiu-se às duas edições de Super Powers (um trabalho tardio, infantil e sem o vigor pleno do Rei). Jack Kirby Pencil and Inks é uma belíssima edição da IDW. Os primeiros números de Demon, Kamandi e OMAC estão reunidos sob uma excelente proposta editorial. Cada página das HQs é apresentada lado a lado: à esquerda, apenas o lápis de Kirby (que àquela época fotocopiava tudo que produzia antes de enviar os originais à editora); e à direita, arte-finalizada (e escaneada diretamente do original, o que significa termos acesso às nuances do nanquim, aos retoques com guache branco, às anotações feitas nos rodapés). Além da imaginação infinita – tão típica de Kirby –, é possível perceber a inacreditável precisão de seu lápis. Desenhos detalhadíssimos, que parecem nascer sem qualquer esboço ou estudo prévio. Por outro lado, constata-se também que o brilhante Mike Royer é, de fato, seu arte-finalista definitivo. Um livro para se degustar com o babador rente ao pescoço.

12 - HELLBOY NO INFERNO Volume 1: DESCENSO – Mike Mignola (Mythos, 2015): Já disseram tudo sobre Hellboy: que é terror de influências lovecraftianas, conto de fadas misturado a lendas folclóricas de diferentes matrizes culturais, aventura pulp. Nada disse deixa de ser verdade. Mas há algo que paira acima de todas estas referências: Hellboy é um gibi de super-herói. Dos melhores. Temos ali toda a imaginação tresloucada típica do gênero, o herói carismático em uma jornada de percalços infinitos, vilões casca-grossa, ação em doses cavalares e o melhor: despretensão. Assim como Mike Mignola é um dos mais dignos herdeiros de Jack Kirby – o rei eterno e absoluto desta seara –, Hellboy carrega o legado do melhor da Marvel dos anos 60/70. Compare o capetão com o Coisa da dupla Lee & Kirby e verá que as semelhanças extrapolam a mera coincidência – a começar pelo gosto por charutos.

Após tempos dedicando-se exclusivamente aos roteiros e ao espólio do personagem (que inclui filmes, animações e tudo que a indústria do entretenimento pode oferecer), Mignola retorna ao timão na série Hellboy no Inferno. Para isso, teve antes que matar o personagem – por motivos que não os usualmente adotados pelos comics norte-americanos. A morte de Hellboy não foi uma ação de marketing para inflacionar as vendas do personagem, mas um estratagema para jogá-lo no inferno, lugar imaginário onde Mignola não teria que desenhar nada que lhe incomodasse – como carros, aparatos tecnológicos reais e cidades contemporâneas. Livre de amarras gráficas, dali pra frente seria só alegria. Não foi bem o que aconteceu. Após dez edições, Mignola – que curiosamente parece ser um artista em constante crise criativa, a despeito de seu descomunal talento – jogou a toalha. As cinco primeiras edições foram compiladas neste encadernado. As restantes estão anunciadas para o início de 2018. Já estou salivando. 

13 - INUYASHIKI Números 1 a 4 – Hiroya Oku (Panini, 2017): Ichiro Inuyashiki é um perdedor. Tem 58 anos, mas aparenta mais. É frágil, medíocre e constantemente humilhado – até pela própria família. E então descobre que está com câncer. Em estado terminal. O absurdo entra em cena: Inuyashiki é pego por uma explosão de origem alienígena e acorda sem se lembrar de nada. Com o passar do tempo, descobre que se tornou um androide com incríveis poderes. O que fazer com eles? Como toda ficção científica de primeira, Inuyashiki não é sobre ciência, capacidades especiais, máquinas invocadas ou destruição em escala nuclear, mas uma profunda reflexão sobre a vida contemporânea. O mangaká Hiroya Oku é um craque. Desenhista brilhante e dono de um storytelling afiadíssimo, conduz a HQ com classe e sofisticação, criando um tratado sobre as penúrias do homem comum, invisível. Coisa fina. Das poucas que me deixam ansioso pela próxima edição.

14 - TEX GIGANTE nº 31: CAPITÃO JACK – Tito Faraci e Enrique Breccia (Mythos, 2016): A coleção Tex Gigante traz o suprassumo do mítico personagem italiano – que em 2018 comemora 70 anos de vida editorial. Quadrinistas internacionais do mais alto gabarito são convidados a oferecer sua visão do ranger em álbuns que ultrapassam 200 páginas. Joe Kubert, Magnus e Ivo Milazzo são apenas alguns dos nomes que já desfilaram pelas páginas da coleção. Capitão Jack traz Enrique Breccia (filho do imortal Alberto Breccia, legenda maior do quadrinho argentino) abusando de seu espetacular preto e branco, destilando diversas técnicas na arte-final e compondo as páginas de forma bela e sóbria. Tudo isso para nos levar à aridez do velho oeste, onde se desenrola a trama habilmente escrita por Tito Faraci, num tom mais maduro que o usual bonelliano. Em algum momento, Capitão Jack deve ser republicado pela coleção da Salvat ou mesmo em Tex Gigante em Cores, da Mythos, onde a colorização arruinará (ao menos em parte) o brilhante trabalho de Breccia.

15 - TEX nº 573 a 575: O Sinal de Yama – Mauro Boselli e Fabio Civitelli (Mythos, 2017): Ainda falando em Tex, difícil imaginar uma melhor porta de entrada para o universo do personagem que a trilogia O Sinal de Yama. Está tudo ali: tiroteios, ciladas, pancadaria, magia, vilões terríveis, heróis destemidos e infalíveis. Mauro Boselli entrega uma aventura de tirar o fôlego, explorando um elenco de personagens que esbanja carisma – ainda que claramente estereotipado. Mas o destaque vai mesmo para a inacreditável arte de Fabio Civitelli, de longe meu texiano favorito. Seu rigor acadêmico e a obsessão com os detalhes beira a insanidade. Civitelli desenha com precisão absoluta cada grão de areia do deserto, cada folha de arbusto, cada espinho de cacto. As 34 primeiras páginas da HQ – mostrando o retorno do icônico arqui-inimigo Yama – são um espetáculo de atmosfera horrorífica. A boa notícia é que em abril a Mythos republicará O Sinal de Yama, em formato maior e edição caprichada – os formatinhos usuais são um atentado contra os desenhistas da Bonelli. A má notícia é que novamente irei gastar dinheiro com esta HQ. 

16 - MASTERS OF SPANISH COMIC BOOK ART – David Roach (Dynamite Entertainment, 2017): Minha dieta de leituras invariavelmente inclui art books. E em 2017 foi este Masters of spanish comic book art que fez a alegria da casa. Na década de 1970, os espetaculares desenhistas espanhóis tomaram de assalto os quadrinhos norte-americanos, principalmente através dos magazines em preto e branco da editora Warren (que não se submetiam ao famigerado Código de Ética e, portanto, lidavam com conteúdo mais adulto). Gênios do traço como Esteban Maroto, Auraleón, Luis Bermejo, Pepe Gonzáles, Fernando Fernández, José Ortiz e Sanjulián levaram a arte das HQs a patamares inauditos. O belíssimo livro organizado por David Roach destaca este período, mas cobre um espectro bem mais amplo dos quadrinhos de autoria espanhola, chegando a nomes contemporâneos como Daniel Acuña e David Aja, conhecidos dos nerds mais espertos. Com 272 páginas e 500 ilustrações – das quais mais da metade escaneadas diretamente dos originais – Masters of spanish comic book art é de encher os olhos (podendo até fazê-los verter lágrimas, a depender da sensibilidade do cliente).

MELHORES QUADRINHOS LIDOS EM 2017 - PARTE 3

Abro os olhos. Vejo as gordas gotas de suor e sangue se multiplicando vagarosamente no chão. Meu corpo lateja como um coro barítono que vibra por meus ossos lacerados. Levanto a cabeça e posso ver o corpo estendido daquele que seria o ano de 2017 me encarando com o olhar já vazio da morte. Ao que tudo indica, sobrevivi à experiência traumática do décimo sétimo ano do século XXI. Velho sortudo… Atrás de mim, 2018 levanta sua cabeça horrenda…

Peço desculpas ao exigente leitor da Raio Laser por emular tão tristemente os cacoetes estilísticos do caríssimo Frank Miller (se bem que mesmo ele podia se desculpar por fazer a mesma coisa nos dias de hoje), mas abuso da dramaticidade para de alguma forma me justificar por trazer para vocês uma lista tão magra de leituras. Mas foi um ano difícil. E espero que esta lista traga um pouco de reflexão, diversão e entretenimento para vocês como trouxe para mim. Vale lembrar que esta não é uma lista dos melhores quadrinhos publicados no ano, mas sim de boas leituras que foram realizadas em 2017 (inclusive lançamentos). (LN)

Parte 1

Parte 2

por Lima Neto

1 – Mensur – Rafael Coutinho (Cia. das Letras, 2017): Começamos pelo título que abrilhanta 90% das listas de melhores HQ´s do ano de 2017. Não sem razão. Muito já foi dito sobre a volumosa novela gráfica de Rafael Coutinho. Inclusive aqui mesmo na Raio. Mas aproveito este espaço para falar um pouco sobre a minha leitura da obra. Em julho último publicamos no site um ensaio meu sobre a tolice intrínseca e necessária aos quadrinhos de super-heróis, sem a qual não haveria diferença entre os mascarados e os criminosos que caçam. Caso se interesse, você pode ler aqui. O que não está dito no texto é que a leitura que vai inspirar a reflexão sobre o assunto – identidade, rostidade, responsabilidade (e o inverso de tudo isso) – é a narrativa do mensuren Gringo e seu autoproclamado exílio da própria vida. Mensur, como toda obra desse calibre, forma um emaranhado de possibilidades interpretativas e caminhos para o pensar. 

Mas vai ser exatamente o caminho mais direto, o da identidade, que vai me acompanhar a leitura inteira. Desde a bela capa, que evita encarar o leitor e parece ao mesmo tempo ler seu título ou admirar as cicatrizes de seu rosto, passando pelas negras capas internas riscadas em branco - como se fossem lembranças subconscientes de que as linhas que vão dar forma ao conteúdo do livro apenas são o que são graças aos caprichos da percepção -, Mensur é uma narrativa sobre o risco. Sobre a linha e seu papel de definir limites e de avançar, ou não, sobre estes mesmos limites. Não como uma bravata, embora haja bravatas, mas como um risco que se assume e cuja forma resultante define o que se é. Gringo é um personagem ciente de que não há riscos mais eficazes e verdadeiros que aqueles que realiza e recebe em seu secreto esporte. Riscos que definem quem ele é, ou melhor, que rabiscam sobre sua identidade social e construída, uma garatuja de não-identidade que é mais real do que qualquer outra linha  mundana que dá forma aos seres sociais. Abrir mão do rosto, como traço identificador mais do que elemento estético, é a ação antissocial última. É “rasgar a identidade”, como dizem os seres de rosto tatuado para além de qualquer moda que transitam pelas grandes cidades. Insatisfeitos com qualquer identidade que a sociedade possa oferecer. Mas esta entrega ao não-ser não é de maneira alguma redentora, e nem mesmo heroica, é uma apenas uma vivência marcada pelo patético de uma obsessão. 

2 – Lendas do Cavaleiro das Trevas: Alan Davis vol. 1 e 2 – Mike W. Barr e Alan Davis (Panini, 2014/2015): Falando em quadrinhos de super-heróis, uma das leituras mais agradáveis do início de 2017 foi a coleção dedicada à breve fase do desenhista inglês Alan Davis como artista de Batman sob a batuta do escritor Mike W. Barr. Esta fase tem como tarefa dar continuidade à origem do personagem escrita por Frank Miller em Batman Ano 1, e o experiente Barr vai misturar sua verve mais madura (que junto com Brian Bolland foi responsável pela pérola Camelot 3000) com uma interpretação mais colorida e fantástica do homem-morcego. Essa mistura agridoce se inicia com a sequência de título aproveitador Batman Ano 2, que vai ter a arte do ainda desconhecido Todd McFarlane nas primeiras edições, mas termina com o lápis de Davis. A partir daí, o britânico continua no título, agregando a mistura de seriedade e fantasia um visual icônico e o Batman mais elegante da editora. Nas páginas das duas edições, vemos um desfile dos vilões mais clássicos do personagem, reapresentados para a geração pós-crise. Barr e Davis conseguem com sucesso representar os vilões com a dose correta de delírio fantástico e ainda assim parecerem perigosos para suas vítimas. Essa fase ainda conta com a parceria de Robin, tendo um jovem e irresponsável Jason Todd por trás da máscara. Boa parte desse sucesso está o colorido vivo alucinógeno de Adrienne Roy e a competente arte final do parceiro de Davis, Paul Neary. Além da galeria de vilões, vale a pena destacar um empolgante encontro do maior detetive da DC com o maior detetive do mundo – Sherlock Holmes. O encontro aconteceu na edição de 50 anos da revista Detective Comics e contava ainda com a participação do detetive casca-grossa Slam Bradley e o herói investigador de faro para o mistério, Homem-Elástico. O encontro ainda contou com a arte de Dick Giordano, Carmine Infantino, Terry Beatty e Eufranio Reyes Cruz. Outra surpresa bem-vinda na edição foi a adição do especial Circulo Completo, publicado anos depois desta fase e que mostrava a volta do vilão ceifador, personagem de Batman Ano 2 que inspirou o longa-metragem de animação Batman – Máscara do Fantasma. E ainda a colaboração de Davis e Barr na historieta “Saideira no McSurleys”, um conto em preto e branco publicado em março de 2002. 

3 – A História do Petróleo em Quadrinhos – Tales Pereira (Jaguatirica, 2016): O quadrinho nacional vive hoje um momento de intensa produção. Não há como negar. Seja nas prateleiras das livrarias ou nas bancas das feiras independentes, somos cobertos por uma enxurrada de lançamentos dos mais diversos gêneros e qualidades. Este volume de produção nem sempre é correspondido com um poder de compra que garanta o escoamento do que é produzido, e, nesse impasse, muitos quadrinhos podem passar completamente despercebidos pelos radares. Uma dessas HQs se chama A História do Petróleo em Quadrinhos, de Tales Pereira. Uma das teclas mais pressionadas entre os pesquisadores de diversos campos que têm HQ seu objeto de pesquisa é a do potencial didático dos gibis. E esse livro, lançado pela editora Jaguatirica do Rio de Janeiro e bancado por uma campanha bem sucedida no Catarse, expõe de maneira explícita esse potencial. O quadrinho, como o título entrega, é um sobrevoo pela história desta matéria-prima que até hoje demarca uma cicatriz negra na história e nas relações entre ocidente e oriente. Tales, que já trabalhou como engenheiro petroquímico para a Petrobrás, usa um traço simples e cartunesco para discorrer todo seu conhecimento sobre o “ouro preto” em uma narrativa simples, didática, mas assombrosa em seu conteúdo. Com muito despojamento, A História do Petróleo em Quadrinhos expõe os derradeiros mecanismos que movem a sociedade capitalista do ocidente, iluminando relações aparentemente não  correlatas entre ciência, tecnologia e geopolítica. Seu estilo de desenho, embora esquemático, não deixa de ser expressivo e consistente, e o resultado final é uma aula cujo extenso conteúdo pode ser assimilado de maneira muito eficiente. A simplicidade deste gibi é enganadora e esconde uma leitura que deveria ser obrigatória e capaz de mudar a forma de ver o mundo. Algo que raramente é capaz de se dizer sobre uma obra. 

4 – Monstro do Pântano Regênese Vol. 3 – Rick Veitch e vários (Panini, 2017): Rick Veitch segurou uma das maiores batatas quentes do  quadrinho norte americano quando topou dar sequência à fase do escritor Alan Moore no título Swamp Thing. Amigo pessoal de longa data do escritor inglês, Veitch escreveu um dos mais psicodélicos capítulos do personagem no espaço, ainda na fase de Moore. Sua experiência como escritor não era pouca, mas seguir os passos do amigo era um desafio que ele  conseguiu ultrapassar com elegância e uma boa dose de polêmica. Em histórias xamânicas, o personagem do lodo encontrou outras versões de si mesmo de eras passadas, presenciou o consumismo simbolizado pelos carros e autoestradas, entrou no corpo de John Constantine para poder consumar seu amor por sua mulher na forma de uma inseminação (que se tornará sua filha Teffé Holland) e tatuar uma de suas nádegas. Veitch tinha muita familiaridade com o conteúdo das histórias anteriores e isso deu a ele bastante segurança para seguir. Mas vai ser no volume 3 que veremos algumas de suas melhores histórias. A primeira, "Esperando Deus", vai colocar o elemental contra nada menos que o próprio Super-Homem ao tentar buscar justiça pelo sofrimento causado por Lex Luthor quando este destruiu sua ligação com o verde da terra, ainda na fase de Moore. A edição vai mostrar um Monstro do Pântano que se esgueira de todas as formas para consumar sua vingança, sempre sendo frustrado por um Super-Homem que o impede quase sem notar a presença do elemental, realizando apenas algumas ações das muitas que performa todos os dias na função de deus guardião da humanidade. A história vai buscar na relação entre Papa-Léguas e Coyote uma maneira divertida e pungente de homenagear o primeiro super-herói da editora prestes a completar 50 anos.

Em "O Mais Longo dos Dias", encontramos os quatro avatares do verde que, em edições anteriores, partiram para o espaço de forma a agregar à sua coletividade a experiência única que o Monstro do Pântano passou. Cada um deles, seres tão interessantes quanto próprio Alec Holland, se tornam cientes de que seu planeta natal está para ser alvo de um ataque brutal. Ainda não havia selo Vertigo, e a revista Swamp Thing estava para participar do evento "Invasão", que acontecia em todos os títulos da editora. As descrições fantásticas que cada ser dá sobre o ambiente em que agora habitam se somam à paranoia crescente que prepara terreno para a edição seguinte e, em "Enlutada", o clímax se apresenta na forma da cônjuge de um ser alienígena que foi derrotado pelo Monstro do Pântano ainda na fase original de Len Wein e Bernie Whrightson. A narrativa que se segue é tocante e uma interpretação de pensamento alienígena das mais interessantes nos quadrinhos. Como resultado, o Monstro do Pântano é novamente desligado de sua relação com o verde, e vai transitar pelo tempo reencarnando em pontos-chave da história do universo DC. Fase esta que resultou na saída de Veitch do título ao ver a história em que o Holland reencarnaria na madeira da cruz de Cristo. O escritor foi cortado em um crescendo fenomenal, e esta série de encadernadas não terá continuação tão cedo no Brasil, pois mesmo nos EUA esta fase final é proibida de ser republicada. 

5 – The Big Book of Grimm – Jonathan Vankin e vários (1999, Piranha Press): Mais um ano termina, mais uma lista e mais um livro da série Factoid Books, da Piranha Press. Em 2015 a minha lista trazia o Big Book of Death, e agora o “Grande Livro dos Grimm” chega em 2017 botando gibis como Fábulas para correr com o “real deal” dos contos de fada. Como os outros livros da série, este big book é um apanhado das melhores fábulas dos irmãos Grimm, adaptadas por Jonathan Vankin e desenhadas por um exército de quadrinistas de impressionar. George Freeman desenha Cinderella; o conto macabro de Branca de Neve se torna mais grotesco no traço de Charles Vess; Hunt Emerson ilustra o conto Clever Hans. A lista é enorme: Rick Geary, D’Israeli, Sérgio Aragonés, James Kochalka, Rick Burchett, Dame Darcy, Seth Fisher, Mashall Rogers, Steve Leialoha. A quantidade de histórias dá um panorama bem completo das verdadeiras fábulas sempre com uma arte de qualidade em preto e branco. Ainda me impressiona que estes livros não encontram publicação no Brasil. 

MELHORES QUADRINHOS LIDOS EM 2017 - PARTE 2

Li muitos quadrinhos em 2017. Infelizmente, o clichê quantidade não reflete qualidade pode ser aplicado no meu caso. Apesar de ter lido muito material novo e algumas velharias, confesso que tive dificuldades em encontrar gibis que realmente merecessem fazer parte desta lista de melhores leituras. Sei lá. Talvez esteja ficando velho e chato, mas o fato é que não foram muitas as HQs que mexeram com meu coraçãozinho. Bem, isso já foi dito antes, mas a lista de leituras da equipe Raio Laser não tem necessariamente lançamentos do ano, mas gibis de qualquer época. Sim, sei que vocês estão acostumados com listas de gibis recentes, mas lamento informar que não tive tempo nem dinheiro para comprar tudo que saiu em 2017. E, mesmo que tivesse, duvido muito que faria algo diferente do que fiz. Acho um saco essa ditadura do novo e não consigo/quero ficar atualizado. Sorry, folks. Lembra que eu disse que estou ficando velho e chato? Então... (MMA)

Segue a lista, sem ordem de preferência:

PARTE 1

por Marcos Maciel de Almeida

1- Três Sombras - Cyril Pedrosa (Companhia das Letras, 2011): Eis um gibi que me ganhou pela capa. Assim que vi aquela floresta tenebrosa e o título misterioso, percebi que tinha sido fisgado pelo trabalho do francês Cyril Pedrosa. O enredo, entretanto, é bastante indigesto para pais, avós, tios e assemelhados: a tentativa desesperada de evitar a morte de um ente querido. Negação, fuga, dor e aceitação. Três Sombras é sobre tudo isso. Em planos de sequência primorosos – que se passam em locações tão diversas quanto originais - Cyril narra a corrida frenética de um pai numa disputa que ele não pode vencer. Seus adversários são as intrigantes - e incansáveis - três sombras do título.  O traço aparentemente simples de Pedrosa é enganador. Por meio de pinceladas leves, o autor transmite emoções profundas, inerentes a qualquer pessoa. Seus quadrinhos evocam uma melancolia endêmica do gênero humano, como se o peso da existência estivesse apoiado sobre nossas cabeças, à espera de qualquer descuido para poder desabar e acabar de vez com o martírio de viver. Poético, elegante, triste, mas nunca  enfadonho, Três Sombras mostra - num ritmo às vezes ofegante, às vezes preguiçoso - a vã obsessão humana em tentar fugir do inescapável. 

2- Novo Lobo Solitário - Kazuo Koike e Hideki Mori (Panini, 2017): Quem foi o cara que disse que um raio não pode cair duas vezes no mesmo lugar? Este cidadão certamente não leu o Novo Lobo Solitário, de Kazuo Koike. Mais de 40 anos após o encerramento da história de Itto Ogami - finalizada em 1976 - o lendário roteirista japonês retoma a saga do último integrante da família Ogami, Daigoro, a partir do ponto exato em que a série original havia terminado. Para a empreitada, Koike escalou Hideki Mori, que teve de encarar a barra de substituir o gigante Goseki Kojima. E o novato deu conta do recado, conseguindo fazer o impensável: chegar perto de replicar o talento e a técnica de Kojima, também responsável direto pela trajetória de sucesso do Lobo e seu filhote. Se Kojima é hoje reverenciado pelas sequências de ação vertiginosa, enquadramento cinematográfico e fotografia bela e diversa, Mori não ficou para trás e fez o dever de casa, deixando o espírito do velho mestre orgulhoso.  É lançamento caça-níquel? Tenho minhas dúvidas. Kazuo Koike já é lenda no Japão. Escreveu trocentos títulos e ministrou uma pancada de cursos de roteiro. Não é como se o escritor veterano estivesse com a conta de luz atrasada. Koike tem histórico de integridade e comprometimento com os fãs. Tanto é assim que, quando percebeu que seu gibi Samurai Executor - também feito em parceria com Kojima - não estava à altura do trabalho que vinha fazendo com o Lobo Solitário, decidiu matá-lo. E o fez no próprio gibi de Itto Ogami, como vimos em Lobo Solitário - 1ª série, da Panini, publicado em 2005. Por isso, acredito que, se Koike se sentiu impelido a dar continuidade à saga, foi porque ainda tinha algo a dizer. 

É claro que sempre haverá as velhas viúvas do mangá original que lamentarão o fato de que o novo trabalho estaria  corrompendo a obra anterior, que deveria ter sido mantida intocada e etc. Não dê ouvidos para tais lamúrias. Ignore as reclamações desse povo que não faz sexo. Pule de cabeça nos novos capítulos da saga de Daigoro, o garoto que tem os olhos de gelo e a capacidade de derreter os corações mais embrutecidos. 

3- O Mensageiro Verde-Cinza - O Spirou de Schwartz e Yann - Yann Le Pennetier e Olivier Schwartz (Sesi Editora, 2016): Nunca tinha lido nada do Spirou, importante integrante da Santíssima Trindade da BD franco-belga, ao lado de Tintim e Asterix. Bem, continuo sem ter lido nada. Ou quase. Explico. A série Spirou de... convida grandes expoentes e revelações da BD para reinventar o personagem clássico criado por Rob-Vel em 1938, mas consagrado por André Franquin cerca de uma década depois. Já teriam ouvido falar em algo parecido?  Sim, Sidney Gusman nunca escondeu que a série Spirou de... inspirou a criação das incontornáveis Graphic MSPs, que promovem o lançamento - no formato graphic novel -de versões repaginadas dos personagens do Universo de Mauricio de Sousa. No caso em questão, Yann jogou Spirou no meio de uma trama internacional em que o mensageiro de hotel e herói involuntário quase evita a II Guerra Mundial. Tudo isso com um toque de humor e aventura bastante espontâneos que honram a história e o legado do personagem. Prestes a completar 80(!) anos de existência em 2018, Spirou ainda é um ilustre desconhecido no Brasil, e a série Spirou de... é uma ótima porta de entrada para quem está interessado em conhecer mais sobre esse icônico personagem do quadrinho europeu.

4- 5/5 Working Class Heroes - Magenta King e Dalton Cara (Bimbo Groovy, 2013): Pense em seriados japoneses no estilo Changeman e Flashman. Agora imagina se esse troço prestasse. 5/5 é isso. Reinventando a fórmula tradicional dos supergrupos orientais, Magenta e Dalton criaram um universo realista e brutal, no qual a busca por uma vaga na equipe atrai pessoas mais interessadas em fama que em contribuir para o bem coletivo. Com diálogos afiados e arte fenomenal, a dupla mostra que não tem apenas química, mas verdadeiro talento de alquimista ao transmutar lixo asiático em ouro quadrinístico. A boa notícia é que esta dupla endiabrada passou a colocar uns teasers no Facebook que levam a crer que ainda veremos mais de 5/5. Tomara. Eis um conceito que parece promissor. Leia mais sobre aqui.

5- Cavaleiro da Lua vol. 4 e 5 – Jeff Lemire e Greg Smallwood (Panini, 2017): Existem personagens de HQ que vivem por aí, na mendicância, só esperando a oportunidade de serem escritos por um argumentista minimamente decente. E o Cavaleiro da Lua é um deles. Primeiro com Warren Ellis, em Cavaleiro da Lua vol 1 (2015), e agora com Jeff Lemire, o herói lunático consegue sair das sombras para matar a saudade de velhos e novos fãs. Com o auxílio do mais que competente Greg Smallwood, Lemire explora novas facetas da loucura do personagem, que desta vez vai parar num sanatório. Sim, sei que a tecla da loucura já foi batida quinhentas vezes, mas os bons escritores também são os caras capazes de contar a mesma história de um jeito diferente, não é mesmo? A fase de Lemire inclui os volumes 4 e 5 do Cavaleiro, sendo necessária, ainda, a publicação do sexto volume, para concluir a saga. Que bom que tiraram o personagem da geladeira. Finalmente algum editor da Marvel deve ter se tocado que estava na hora de burilar o maior tesouro da editora: a riqueza de personagens e de locações acumulados ao longo das quase seis décadas de existência da Casa das Ideias. É aquela coisa: por que ficar insistindo no enésimo clone do Wolverine se você tem personagens do quilate de Mortalha, Valete de Copas e tantos outros morando no Limbo? Makes no sense, bro.  Um dos bons conceitos trabalhados por Lemire é o de que as identidades do Cavaleiro precisam de tempo para se “sedimentar”. No vol. 5, por exemplo, há o surgimento de nova personalidade, reflexo da necessidade do herói de se adaptar às novas situações que encontra. O problema é que, se a nova personalidade não estiver suficientemente enraizada na realidade, pode se desintegrar sem deixar vestígios. Retirado de sua tumba, o Cavaleiro recebeu tratamento vip na Marvel norte-americana, com direito a tosa, spa rejuvenescedor e escova progressiva. O resultado é esse aí. HQ de respeito, com roteirista de peso e personagem repaginado para os novos tempos.

6- Ultraforce # 0-5 – Gerard Jones e George Perez (Malibu, 1994): Quem precisa de mais uma equipe de super-heróis? Eu. Especialmente se ela tiver boa dinâmica de grupo, vilões minimamente interessantes e o melhor desenhista para gibis do tipo, como George “Me gustan camisetas havaianas” Perez. Lançado em 1994, o título Ultraforce congregava os principais personagens do Ultraverso da Malibu Comics, uma das várias editoras de menor porte existentes no mercado norte-americano dos anos de 1990 dedicada ao ramo dos super-heróis.  A duração da Malibu foi efêmera. No mesmo ano de lançamento da Ultraforce, ela foi comprada/fagocitada pela Marvel, após breves 8 anos. Este tipo de prática predatória não foi criada pela Casa das Ideias, mas isto não exime a gigante dos comics de críticas, dado que tal política somente empobrece o mercado de quadrinhos. Mesmo tendo a Marvel prometido não descontinuar os títulos que havia comprado, o fato é que, após alguns meses, todas as revistas do Ultraverso foram canceladas. Uma pena. Pior para o mercado como um todo e principalmente para os fãs, que perderam alternativas - boas e ruins - de compra. Mas bem, pelo menos Ultraforce foi bom enquanto durou. Tudo bem que Gerard Jones tenha bebido na manjada fonte dos X-Men de Claremont e montado uma equipe formada por seres superpoderosos que juraram defender uma população que os teme e odeia. Apesar disso - ou talvez por essa razão -, conseguiu conferir interação consistente ao reunir medalhões que, como em todo bom gibi de supergrupo, se detestam. A equipe tinha bastante potencial, mas a compra da Malibu pela Marvel, aliada à crise que assolou o mercado de HQs nos EUA em 1994, melou o desenvolvimento das histórias, que passaram a incluir personagens mala-sem-alça do Universo Marvel tradicional, como Cavaleiro Negro e Sersi. E como resultado dessa política de remanejamento intraeditorial de dejetos radioativos, não teve como a Ultraforce sobreviver. 

7- Avengers: The Serpent Crown HC – Steve Englehart e George Perez (Marvel, 2012) e Squadron Supreme TPB – Mark Gruenwald e Bob Hall (Marvel, 1997): O Esquadrão Supremo é um dos grupos mais fodarásticos da Marvel. Especialmente porque é formado pelos personagens principais da Liga da Justiça, com a exceção do Batman, cujo homólogo marveliano – Nighthawk – nunca teve muito espaço nas histórias originais do grupo. Embora já tivessem aparecido em outras edições de Avengers, é apenas na Saga da Coroa da Serpente que o grupo realmente debuta em grande estilo. Foi nessa edição que os fãs babões – como eu – puderam ter uma ideia de como seria o embate entre Liga e Vingadores. E sim, a SCS é o suprassumo do gibi de herói e não sente nenhuma vergonha disso. Assim, há profusão de momentos impagáveis e ridículos, como não poderia deixar de ser. Uma das melhores cenas neste sentido é o surgimento da então novíssima vingadora, Felina, que achou que podia se tornar super-heroína simplesmente porque sabia surfar e tinha praticado esportes na juventude. Paralelamente à história principal, há uma aventura surreal do Thor e da Serpente da Lua, que voltam no tempo diretamente até a época do Velho Oeste (!) do Universo Marvel para resgatar o Gavião Arqueiro. E o retorno de Thor para o presente é um momento de virada para o personagem. Convencido pela Serpente da Lua a não mais “pegar leve” com os inimigos – coisa que costumava fazer para que os duelos em Midgard ainda tivessem alguma graça – o Deus do Trovão roda a baiana e deixa todo mundo com o cu na mão. Como se isso não bastasse, o gibi também é altamente recomendado pelo fato de apresentar a SCS em sua integralidade, sem os cortes safados da Editora Abril.

Quanto ao Esquadrão Supremo de Gruenwald, trata-se de um gibi mais sério, quase cabeça, que pensa a realidade super-heroística em tempos pré-Watchmen e Authority. No gibi, Hyperion e seus colegas tentam construir a utopia perfeita para os cidadãos dos EUA, ainda que, para tanto, tenham de empregar métodos condenáveis, como lavagem cerebral contra criminosos. Temas como autoritarismo e ditadura da minoria são tratados de maneira hábil por Gruenwald, que reconhecia o trabalho na série como o melhor de sua carreira. Não é para menos. O falecido escritor urdiu uma trama envolvente, com diversos pontos de tensão que se acumulam e desembocam num desfecho que não tem nada de anti-climático. Embora não seja nenhum gênio das HQs, Gruenwald conhecia as regras básicas para a elaboração de boas histórias e não deixou pontas soltas, resolvendo os principais conflitos e subtramas do roteiro. Duro ter de admitir, mas o escritor “roda presa” do Capitão América conseguiu fazer uma história competente e intrigante, venerada por gente do calibre de Alex Ross e Kurt Busiek. Se você é fã do Esquadrão Supremo, não deixe de ler as duas edições acima. Se ainda não é, ainda há tempo para se redimir de seus pecados. 

8- Forming – Jesse Moyniham (A Bolha, 2013): Soap-opera especial que veio desembocar na Terra, com direito a viagem no tempo, incesto, contatos imediatos do 5º grau e conflitos milenares. Cortesia de Jesse Moyniham, um dos responsáveis pela animação A Hora da Aventura. Imperdível. Saiba mais aqui.

9- Meu Amigo Dahmer – Derf Backderf (Darkside Books, 2017): Sem dúvidas, um dos gibis mais perturbadores deste e dos anos recentes. Conta, sob o ponto de vista privilegiado do autor, o convívio nos tempos de High School com aquele que teria a infâmia de se tornar um dos serial killers mais odiados de todos os tempos – Jeffrey Dahmer. Em tom documental/pessoal, Backderf narra a experiência de viver ao lado daquele sujeito que você sabe que é esquisito, mas passa longe de imaginar os anseios perversos que o motivam. O gibi não é tão bem desenhado. As imagens remetem a um Don Martin (Revista MAD) piorado, mas isso não é problema algum. Ao contrário. Por meio de estilo próprio, o autor conseguiu manter a pegada que uma obra de tamanho impacto pessoal necessitava. Outro ponto de destaque é a qualidade gráfica presente na publicação da Darkside Books. Gibizinho capa dura, papel especial, edição de luxo e o escambau. Coisa fina, mano. 

Embora tenha um desenvolvimento por vezes arrastado, Backderf pinta um panorama bastante fidedigno da vida escolar numa pequena cidade dos EUA no final dos anos de 1970. Interessante pontuar aqui que se tratam apenas dos anos prévios ao início da “carreira” de Dahmer como assassino serial. Se quiser saber maiores detalhes sobre os crimes dele, será preciso apelar para a internet. Neste caso, vá por sua conta e risco, camarada. Só não esqueça de levar o saco de vômito. Pensando bem, talvez o ritmo da narrativa não seja arrastado coisa nenhuma. Na verdade, o autor deve ser elogiado por sua habilidade em retratar o clima de marasmo e tédio presentes na comunidade escolar que frequentou, sensação que certamente é partilhada pelos milhões de estudantes espalhados pelos cinco continentes. 

Meu Amigo Dahmer é aquele gibi que você pensa duas vezes antes de pegar, porque sabe que não sairá o mesmo após a leitura. Rola aquele silêncio provocador pouco antes da abertura das páginas, no melhor estilo: “Será que eu realmente deveria estar fazendo isso?”. Se bem que, no fundo, você sabe que não há escapatória. Você vai encarar o desafio. E então... Perdeu, playboy!

10- Justice League Europe # 15-19 – Keith Giffen/Gerard Jones e Bart Sears (DC Comics, 1989): Admito que sempre fui um dos caras da turma “do contra”. Adoro apreciar as coisas que ficam meio que escondidas quando todos estão olhando para uma única direção. Com Liga da Justiça, não foi diferente. Enquanto todos louvavam (com razão) a Liga da Justiça América de Giffen e DeMatteis, eu me divertia mais com as aventuras dos “primos pobres”, ou seja, a Liga da Justiça Europa. O mix de personagens era delicioso. O Flash Wally West safadão, a liderança insegura do Capitão Átomo, o tom debochado/melancólico do Metamorfo e o fato – bastante realista, por sinal – de que todos queriam comer a Mulher-Maravilha. Junte-se a estes ingredientes um desenhista no auge da forma – Bart Sears – e o resultado não poderia ser menos que fenomenal. O estilo de Sears, especialista em desenhar seres metálicos e robotizados, caiu como uma luva no gibi, a tal ponto que considero, humildemente, suas representações do Capitão Átomo e do Soviete Supremo como as versões definitivas dos personagens até hoje.  Depois de uma sequência memorável (JLE # 1-14), em que acompanhamos as tentativas hilárias e infrutíferas do Capitão Átomo em liderar uma equipe totalmente disfuncional, chegamos ao momento mais louco e apoteótico do gibi, numa história chamada “O Vetor Extremista”. Nela, somos apresentados a um grupo de malfeitores – Os Extremistas – que homenageia/plagia os grandes vilões do Universo Marvel, como Doutor Destino e Magneto, entre outros. A ideia dos caras é simples: ou a Terra se rende ou eles vão acionar todo o arsenal nuclear do planeta. O problema é que a maioria dos membros da LJE tem poderes de dar pena, sendo necessária a criação de uma estratégia de ataque decente para que o grupo não passe mais uma vergonha. A história também conta com a participação de alguns dos “Vingadores” da DC, na verdade os Campeões de Angor, na forma de Gaio (Jaqueta Amarela) e Feiticeira Prateada (Feiticeira Escarlate), agora membros efetivos da LJE. 

Além dos diálogos afiados e dos desenhos primorosos, há easter eggs interessantes, como a aparição do desiludido Tio Mitch, criador de um parque de diversões cujo staff – totalmente formado por robôs – é incapaz de aceitar o fato de que possam existir pessoas que não têm o menor interesse em estar 100% anestesiadas por uma felicidade artificial. Trata-se, na verdade, de uma bela homenagem/sacaneada no legado do velho Walt Disney.  Muito já foi dito sobre a fase da Liga da Justiça de Keith Giffen. Não tenho muito a acrescentar. Ler esta fase é como observar aquele grupo de amigos que já está junto há muito tempo e adora se sacanear. A única diferença é que eles são super-heróis. Lutam contra o crime e depois vão tomar uma. Quer dizer, tomariam uma se os gibis da época não fossem tão politicamente corretos. E esse clima de descontração é proveniente da mente insana do fanfarrão Keith Giffen, louco para causar. E se a Liga da Justiça América já recebia a maior parte da atenção, Giffen podia esculhambar mais no título irmão, para nossa alegria.

MELHORES QUADRINHOS LIDOS EM 2017 - PARTE 1

Fim de ano. Coisa boa. Como todo ano do século XXI tende a ser meio lazarento, não custa comemorar, mesmo que de graça, a chegada de mais uma vã e febril esperança. Porém, ao menos no que diz respeito aos quadrinhos, foi uma safra e tanto. Como vocês bem devem saber, nossas listas são de leituras de qualquer época realizadas em 2017. Daí você ver aqui coisas que vão desde os anos 20 até o zênite do quadrinho brazuca lançado no ano que termina agora. E sem dúvida 2017 marcará nossa produção com um punhado de obras-mestras. Por conta de minha coluna no Metropoles, li caminhões atolados de quadrinhos por toda parte. Tanto que deixei coisas como Floyd Gottfredson, Claudio Nizzi, Carl Barks, Frank Miller e outras leituras maravilhosas que fiz, de fora. Sobraram estes 16 campeões. Para evitar redundância, apenas escrevi resenhas inéditas para os que não haviam aparecido na Raio Laser ou na ZIP. Pros outros, links pros textos originais. 

A partir da semana que vem, os selecionados dos outros colaboradores da Raio. A lista não obedece a qualquer ordem racional e o número "16" é totalmente aleatório. Por favor, caro leitor, coloque suas melhores leituras nos comentários e nas redes sociais. Compartilhe! (CIM)

por Ciro Inácio Marcondes

01 - STEVE CANYON 1 – Milton Caniff (L&PM, 1990 [1947]): Para um fã de quadrinhos atual bastante dedicado, Steve Canyon é o exemplo que Umberto Eco utiliza em seu Apocalípticos e Integrados para indicar como a linguagem desta forma de expressão pode se descortinar aos poucos numa interação semiótica entre imagens e palavras. Afinal, nas primeiras tiras deste herói estão lá as palavras de todos que o cumprimentam, sem que o leitor possa visualizar a figura de Steve, "apreendido" por outros meios de linguagem antes de aparecer efetivamente.  Encarar uma sequência longa de tiras realizadas por Milton Caniff nos anos 40, no entanto, é uma tarefa mais dura que um simples dever de casa universitário. Realizadas após 13 anos em que o grande mestre de Will Eisner se dedicou ao seu sucesso de aventura de guerra Terry e os Piratas, as tiras do início de Steve Canyon, muito bem representado nesta preciosa edição da L&PM, são testemunha dos quadrinhos de uma época, de um dos maiores autores desta época e, por fim, desta época ela mesma.  Se Terry levava, de maneira um pouco mais juvenil, seus protagonistas a aventuras marítimas no oriente, Canyon, já no contexto do pós-guerra, procurava refletir sobre o sentimento triunfante (por vezes agridoce) que se apoderou dos americanos após a vitória no Japão. Nestas primeiras tiras, Steve é um ex-piloto da força aérea que agora aluga seu avião comercialmente, envolvendo-se, eventualmente, com bandidos, escroques e femmes fatales que querem se aproveitar de seus serviços. 

O protagonista é um tipo "escoteiro" venturoso, cheio de virtudes, galã sedutor que guarda semelhança com astros de Hollywood da época, como Gary Cooper ou Cary Grant. O cinema dos anos 40, famoso pela abordagem noir (gângsters, detetives, violência urbana, pessimismo e estilização estética), inclusive, é frequentemente citado, direta ou indiretamente, e aventuras de guerra e aviação acabam se misturando a tramas sombrias, sórdidas. Há um quê de A Morte num Beijo em cada quadro desse começo de Steve Canyon, um tremendo flagrante do que é conhecer o contexto da arte dos anos 40.

Porém, acima de tudo se destaca a arte e o estilo de Caniff, um dos gigantes da era de ouro, um daqueles muito poucos que antecipam a modernidade nos quadrinhos. Além dos temas, amadurecidos, o caráter semi-literário do texto - cada quadro é preenchido ao menos em sua metade por textos carregados de informações preciosas para as tiras, além de falas memoráveis, gírias e outras curiosidades – mostra o quão difícil era a rotina do autor de uma daily strip continuada. Histórias longas, com tramas complexas cheias de reviravoltas, eram narradas a conta-gotas, dia após dia, e estratégias interessantes para fisgar o leitor faziam da estrutura de linguagem destes quadrinhos algo imprevisível e ousado. Compreende-se mais claramente o papel de tanto texto (era preciso otimizar a história) e ao mesmo tempo a riqueza visual (profundidade de campo, figurinos detalhados, rostos caricaturizados) destes quadrinhos. Uma pena que a edição da L&PM, já um tanto velhinha, reduza tanto o tamanho das tiras (quase como thumbnails), diminuindo o impacto da arte deste gênio absoluto da nona arte.

02 - RICHARD STARK'S PARKER – BOOK ONE: THE HUNTER – Darwin Cooke (IDW Publishing, 2009): Esta exímia adaptação da série de romances modernos de crimes pulp baseados no famoso "cold-blooded sonofabitch" Parker se inicia com uma sequência em quadrinhos digna de antologia. Em doze impassíveis páginas que remetem à primeira aparição de Steve Canyon na famosa tira de Milton Caniff (ler resenha acima), Darwin Cooke vai fazendo seu personagem atravessar a cidade de NY com seu jeito hard-boiled, sem mostrar seu rosto (em planos subjetivos no estilo noir de Prisioneiro do Passado), pulando catracas brutalmente, xingando pessoas na rua, cuspindo no chão, soltando baforadas de cigarro (sem filtro!) na cara da garçonete, e por fim falsificando uma carteira de motorista. 

Apenas na página 20 é que visualizamos seu rosto embrutecido no espelho e já percebemos de cara: estamos diante da face da psicopatia. Parker é adaptado do autor de best-sellers sobre crimes Richard Stark (pseudônimo para Donald Westlake), e, por mais que sejam livros escritos nos anos 60, eles resguardam a estilística soturna de um Raymond Chandler, porém assombrada por uma violência quase típica da Nova Hollywood. Seria como um encontro de Sam Peckinpah com Dashiel Hammet. 

A adaptação de Cooke (lamentavelmente recém-falecido) é um exemplo sobre como se transpor ideário, ambientação e motivações de uma obra em uma mídia para outra. Esta sequência muda inicial é um modelo perfeito de declaração de intencionalidade, de força estética e perspicácia artística.

The Hunter, primeiro volume das quatro adaptações que o quadrinista fez de Stark, é uma história de vingança implacável e psicopática no último - motivo o suficiente para agradar a leitores de coração frio. Porém, é no aproveitamento maduro (em quadrinhos) do texto de Stark - com diversas soluções visuais espetaculares e cinematográficas - que Cooke efetivamente conquista os leitores ávidos por uma obra em quadrinhos incontestável. E esta verdade é tão pura quanto ver Parker assassinando seus oponentes com suas próprias mãos nuas.

03 - MENSUR – Rafael Coutinho (Cia. Das Letras, 2017): Depois de sete anos trabalhando neste indefectível romance gráfico, Coutinho nos entregou algo que desestrutura valores sobre modernidade, trabalho, obsessão e masculinidade. Leia a crítica completa aqui.

04 - ANGOLA JANGA – Marcelo D’Salete (Veneta, 2017): Este é o mais ambicioso trabalho em quadrinhos brasileiro de 2017. Épico, submetido a um minucioso escrutínio histórico e poderoso tanto em linguagem quanto em mensagem, não pode passar batido no cenário cultural brasileiro contemporâneo. Leia a crítica completa aqui.

05 - THE BLACK PANTHER – EPIC COLLECTION – PANTHER’S RAGE (O Pantera Negra – A Fúria da Pantera) – Don McGregor, Rick Buckler e Billy Graham (Marvel, 2016 [1966-1976]): Versão completa do arco mais ambicioso do Pantera Negra. Destaque para o apelo shakespeariano do texto de McGregor, e para a intensidade das tramas, puro “Marvel 70’s”. Leia a crítica completa aqui.

06 - JUDGE DREDD – THE COMPLETE CASE FILES 01 – Vários artistas (2000 AD, 2012/2014 [1977/1978]): 1977: ano completamente auspicioso para a criação de um clássico cyberpunk de contracultura, capaz de horrorizar cabeças mais frágeis mesmo no apocalipse que vivemos hoje, com Black Mirror e o escambau. Este primeiro volume das obras completas de Judge Dredd é exemplo perfeito de como um criador como John Wagner, associado a um time brutal de outros escritores e artistas, elevou uma ideia de iconoclastia tão típica do início da era Thatcher na Inglaterra ao status de epítome do pensamento pulp em quadrinhos sobre o apocalipse. 

Como sabemos, em Judge Dredd o personagem envelhece com o passar dos anos, o que torna este encadernado um “Ano 1” dos mais voluntariosos das HQs porque, bem, este é realmente o primeiro ano de aventuras do anti-herói. Aqui há uma panaceia de degenerações e deformações: hordas de gangues de punks truculentos, assaltos a ambulâncias para roubar procedimentos de cirurgia plástica, plantas carnívoras falantes, reality shows com a morte como consequência, rebelião de robôs nazistas. Este último arco, aliás, dos androides “Call-Me-Kenneth” e “Heavy Metal Kid” (uma das possíveis origens para o termo que elucida todo o rock pesado), é clássico e impagável: a “singularidade” vista da maneira mais crua e ogra possível (basicamente robôs gigantes e carniceiros, que odeiam humanos, destruindo tudo pela frente num complô irracional e beligerante). Porém, nada se compara à estultice autoritária do próprio Juiz Dredd, capaz de matar por uma multa de trânsito, capaz de prender um espectador por ver um canal de TV ilegal. 

O que escritores tarimbados como Wagner, Pat Mills e Malcolm Shaw querem dizer com a criação de algo desproporcional e sem controle como Mega-City One é que, no limiar de todo caos, inevitavelmente se apregoa o fascismo como solução fácil para restabelecer (apenas) uma ilusão de ordem. Na arte, nada menos que monstros como Carlos Ezquerra, Brian Bolland e Ian Gibson dão imaginário a este compêndio de horror cyberpunk e imoral que fez de 2000 AD uma revista realmente tão à frente do seu tempo.

Anarchy in Mega-City One

07 - CANNON – Wallace Wood (Pipoca & Nanquim, 2017 [1969]: Wally Wood no auge! Só isso seria o suficiente para venerar esta edição, mas além disso há ótimas histórias de espionagem, canastrice e erotismo saindo aos borbotões. Leia a crítica completa aqui.

08 - AQUI – Richard McGuire (Cia. Das Letras, 2017 [2014]): O experimento expandido de McGuire, levando a linguagem dos quadrinhos ao limite, é instantânea obra-prima e continuará sendo estudado por muitos e muitos anos. Leia a crítica completa aqui.  

09 - TUNGSTÊNIO – Marcello Quintanilha (Veneta, 2014): Como fugir, na análise da obra de Quintanilha, a clichês como “radiografia da cultura brasileira”, ou “desperta o universal por meio do local”? Sim, estou atrasado na leitura deste romance gráfico vitorioso praticamente em tudo que aborda, em cada elemento trabalhado, em cada nuance pensada, seja ela visual ou temática. Um breve, porém significativo, contato com o autor no II Encontro Entre TELAAs, em Brasília, elucidou um pouco para mim a capacidade de Quintanilha em agregar imaginários dos mais díspares e disparatados, de Barcelona e da independência da Catalunha, a correntes e pulseiras, sapatos alinhados, de uma Salvador disforme e trôpega, de um francês bem falado, até chegar a um quadrinho com a voracidade de um animal apedrejado na estrada. 

Creio que, para lá de uma leitura microscópica de certas idiossincrasias de um brasileiro do dia-a-dia, há neste autor o imprevisível em seu próprio trato pessoal, algo que anseia insaciavelmente pela originalidade, que não se contenta com menos que isso.

Tungstênio é realmente mordaz, na absoluta neutralidade de olhar em relação à moral de seus personagens: toscos, freaks e largados à deriva numa sociedade inseminada pela malandragem, por uma ética turva e porosa, por uma difícil separação entre uma noção pública e outra privada da vida. Outro clichê seria dizer que esta voracidade da narrativa - que entrecruza 3 ou 4 personagens num momentum que envolve crimes, passionalidade, ação civil e até certo romance – seria cinematográfica. Ora, que filme consegue alcançar tamanha vertigem? Tarantino, Hitchcock, Altman? É um trabalho para poucas pessoas, este mergulho sem remorso no abismo da narrativa. Mais que isso, para um brasileiro, Tungstênio parece aquele olhar desgostoso num espelho escroto em que vemos nossas piores deformidades físicas (cicatrizes, marcas de nascença). Mesmo assim, independente da classe social do leitor, há um certo conforto em parecer em casa, ainda que numa casa rota e cheirando a merda. Em relação ao fato de que essa obra tenha acumulado prêmios internacionais, surpreende apenas que os gringos tenham compreendido a natureza deste fedor. Ou que uma obra de gênio sobreviva independente a isso. E é aí que entra arte de Quintanilha. 

10 - WALT & SKEEZIX – 1927 & 1928 – Frank O. King (Drawn & Quartely, 2010 [1927/1928]): A “family strip” Gasoline Alley é famosa por algumas poucas “sunday strips” bastante originais em que seu autor Frank King trabalha aspectos de metalinguagem e possibilidades narrativas em páginas vibrantes que se tornaram exemplos paradigmáticos da versatilidade dos quadrinhos. Esta edição, que cobre os anos de 1927 e 1928 da tira, compila apenas o trabalho diário do autor. Por mais que Gasoline Alley já existisse havia seis anos quando este material foi produzido, ainda estamos um tanto distantes daquelas sundays que ainda encantam a todos como paroxismo da linguagem das HQs.

Gasoline Alley (aqui chamado apenas Walt & Skeezix – nome dos protagonistas – por questões de direito autoral) é o segundo quadrinho mais longevo da história dos EUA (perde só para Os Sobrinhos do Capitão), e é publicada até hoje com seus personagens envelhecendo em “tempo real”. Emociona entrar em contato com os primórdios da tira, quando o bebê (Skeezix) adotado por um “tio” de bons valores e correção moral (Walt) ainda é uma criança inocente.

As belezas de se ler esta obra-prima dos anos 20 (numa magnífica edição da Drawn & Quaterly prefaciada por ninguém menos que Chris Ware) está em aspectos diversos: primeiro, pela delicadeza e sutileza com que seu autor trabalha ao mesmo tempo temas e linguagem. Estas tiras usam recursos visuais diversos. Soluções como paralelismos, aliterações, descrições literárias e repetições interessantes nos quadros nos mostram que King desde sempre compreendeu o potencial desta forma de arte mesmo num espaço limitado como a tira diária. 

Além disso, temos um panorama riquíssimo da vida numa família americana burguesa dos anos 20: sabemos o que comem, como se comunicam, o que vestem, quais suas preferências estéticas e morais. Além disso, a tira está circundada por uma densidade psicológica difícil de achar mesmo nos filmes americanos da época – alternando momentos poéticos com melodrama de primeira e uma intensidade agridoce que não é diferente da vida real. Dois anos de Gasoline Alley podem parecer um recorte pequeno em tão longeva trajetória, mas é uma metonímia para se compreender a mentalidade sobre os quadrinhos da época (muito mais avançada do que se pode imaginar) e também a mentalidade sociopolítica dos próprios EUA: King, ao contrário da Harold Gray (de Little Orphan Annie) e Chester Gould (de Dick Tracy) – notórios  simpatizantes do Partido Republicano que ansiavam por uma América mais secular – era reservado politicamente e acreditava em micro-valores que se expressam no trato pessoal e na bondade de cada um, algo que resplandece em seu herói do dia-a-dia Walt, talvez o melhor “bom americano” das HQs. 

11 - AL CAPP’S LI’L ABNER – THE COMPLETE DAILIES & COLOR SUNDAYS – VOLUME TWO 1937-1938 – Al Capp (IDW Publishing, 2010 [1937/1938]: Diferentemente de Gasoline Alley (ler resenha acima), a tira Li’l Abner (Ferdinando, no Brasil) prescinde de poesia e de um olhar sutil sobre as vicissitudes da burguesia americana e do american dream. Aqui o papo é mais reto e o humor, escarninho, come solto. “Desde Mark Twain não surgia uma sátira tão arrasadora dos costumes do homem, nos Estados Unidos”, afirmou o saudoso Alvarão de Moya.  De fato, Li’l Abner é um demolidor de sonhos, uma metralhadora giratória que não poupa qualquer aspecto da vida americana, especialmente pós-depressão, como é o caso deste compilado, que cobre os anos de 37 e 38. Seu polêmico criador, Al Capp, politicamente pendeu para a direita e para a esquerda em sua vida, geralmente indo contra o que o establishment acreditava. A tira só parou em 77, dois anos antes de sua morte. Em 1937 Capp tinha apenas 19 anos, mas os elementos que tornaram Li’l Abner um clássico imortal já estão todos lá: o vilarejo rude, caipiríssimo, de Dogpatch (“Brejo Seco” no Brasil), com a família Yokum (“Buscapé”) e sua cristalina inocência e valores de “bom selvagem”, submetidos a um contraste não apenas com hillbillies perversos e degenerados (os Scraggs, versão 30’s para o white trash atual) como também com os habitantes de “Noo Ywak”: geralmente pessoas despudoradas e sacanas – magnatas, gângsters, donos de cassino, golpistas e trapaceiros. O próprio Abner é um tipo atlético abobalhado, bruto como um bloco de concreto, aquilo que Clark Kent seria se tivesse caído no mundo real.  E Li’l Abner ainda abusa de recursos de quadrinhos, seja para disparar uma continuidade empolgante nas tiras diárias, seja para tornar mais lúdicas e saturadas as tiras dominicais. Quanto ao famoso uso do inglês caipira como elemento de subversão (tendo sido comparado até a James Joyce), eu li e vos afirmo: é tudo verdade! Capp tinha uma visão incisiva sobre oralidade e sobre como o modo de falar deflagra todo um ambiente cultural. De certa forma, é como ler Shakespeare no original: no começo parece impossível, mas, depois que você domina uns termos-chave, a coisa deslancha. Afinal, “ef yo’ has faith in me Mammy – ah kin do it!”   

12 - ESTUDANTE DE MEDICINA – Cynthia B. (Veneta, 2017): A visão que a talentosíssima Cynthia propõe para a fuleiragem brasileira (e suas crises existenciais) em seu primeiro romance gráfico não é coisa de principiante. Vai pro trono! Leia a crítica completa aqui.

13 - TABLOIDE – Leandro Melite (Veneta, 2017): Eis aqui a sinergia perfeita entre um roteiro sólido e empolgante, personagens vivos e idiossincráticos e uma arte arrasadora, esplendorosa. Alguém duvida que Melite está no panteão atual do quadrinho nacional? Leia a crítica completa aqui.

14 - LE COMBAT ORDINAIRE (O Combate Ordinário) – Manu Larcenet (Dargaud, 2003): O traço delicado e, pode-se dizer, até infantil de Manu Larcenet pode enganar à primeira vista. A sinuosidade das linhas e o apego à sua morfologia (algo que lembra até Schulz) nos remetem a uma melancolia boa, saudável, até amena. O prospecto desta premiada BD (ganhou Angoulême), porém, nos direciona a uma mais profunda configuração existencial. O “combate ordinário” de um jovem fotógrafo em crise, incapaz de tomar decisões que deem rumo definitivo à sua vida (pontuada por graves crises de ansiedade), tem a intenção de ser a luta interna de cada um de nós. Lembra a despretensão com que o ordinário é colocado como matéria-prima literária na série de romances Minha Luta, do autor norueguês Karl Ove Knausgard. Em meio à vastidão desta busca pela alma, temas contemporâneos emergem: a ascensão dos Le Pen na França, a guerra da Argélia, a utilidade da fotografia, a fragilidade dos relacionamentos (com irmãos, com bichos ou amorosos). Le Combat Ordinaire pode usar como subterfúgio uma forma em quadrinhos totalmente clássica (a modernização do álbum), mas dá sentido e perenidade a ela, mostrando que a velha BD ainda tem seus cartuchos para queimar.     

15 - SSHHHH! – Jason (Mino, 2017): Para o louco que ainda não leu a obra do norueguês Jason (um dos grandes da HQ contemporânea), este Sshhhh!, poético, intenso e rebuscado, é ótima porta de entrada. Leia a crítica completa aqui.

16 - QUARTIER LOINTAIN (Bairro Distante) – Jiro Taniguchi (Casterman, 2006 [1998, 1999]): Taniguchi, um dos grandes do quadrinho mundial, se foi em 2017. Era tempo de ler sua obra-prima, um mergulho íntimo (viagem no tempo inclusa) nas relações familiares japonesas de hoje e do passado. Leia a crítica completa aqui.

HQ em um quadro: "Pateta Repórter" homenageia Chaplin, por Teresa Radice e Stefano Turconi

Cena em P&B de O Garoto na visão da Disney contemporânea (Teresa Radice, Stefano Turconi, 2009): A série Pateta Repórter, publicada pela Disney entre 2009-2015 e que recebeu bela edição definitiva pela Abril recentemente, pode não ser das leituras mais profundas, mas é um baita projeto interessante de reconstituição histórica e recontextualização de personagens já cansados de décadas e décadas de repaginações. Ilustrada com toda simpatia pelo italiano Stefano Turconi e escrita a partir de bem feita pesquisa pela também italiana Teresa Radice, estes quadrinhos colocam o abobalhado personagem na pele de um repórter estilo "Forrest Gump" (faz tudo errado, mas dá tudo certo) numa Nova York do new deal nos anos 30, tudo estilizado num romântico ambiente de profissões intrépidas (algumas quase extintas, como o jornalismo, vide manchete "Neymar volta a curtir uma foto no Instagram de Bruna Marquezine"), cafés charmosos, calhambeques, trens e chapéus, muitos chapéus. Não é incomum encontrarmos citações a manifestações maneiras da época, como o swing jazz de Louis Armstrong e Benny Goodman, ou o lendário jogador de beisebol Babe Ruth. Vale destacar também e predileção de Radice por colocar personagens femininas (como Minnie, melhor amiga do Pateta) em evidência, deixando Mickey como uma aparição meio fantasma em cada história (ele nunca tem tempo pra nada).

Em certo momento da saga, chegou a vez de Charles Chaplin ser homenageado, e é o que vemos nos dois quadros selecionados acima. Quem está familiarizado com cinema mudo vai reconhecer uma homenagem/paródia a O Garoto (The Kid, 1921), primeiro longa-metragem de Chaplin, que de certa maneira consolidou a carreira que ele vinha construindo desde 1914 em mais de 60 curtas-metragens realizados por pequenos estúdios muito populares na época, como Keystone, Essaney e Mutual. Pode-se dizer sem medo de errar que Chaplin já era uma unanimidade (e talvez a maior estrela de cinema do mundo) antes mesmo que filmasse seu primeiro longa. A questão é: tentando homenagear Chaplin, a dupla Radice/Turconi troca os pés pelas mãos em alguns quesitos (perdoáveis, claro. É apenas um gibi do Pateta), não compreendendo completamente a influência de Chaplin e ao mesmo tempo situando-o em uma época que não foi propriamente a sua.

Explico, claro: a história em questão, "O Guarda-Chuva, o Chapéu e o Garoto", conta como Minnie vai receber o grande cineasta em Nova York para que ele realize uma filmagem (O Garoto, obviamente, não foi filmado em NY, e sim na periferia de Los Angeles, nos primórdios de Hollywood). Ao mesmo tempo, o vigarista cego Biagio (um papagaio que faz parte da gangue de trambiqueiros de Bafo de Onça) vai receber seu sobrinho, um simpático mini-meliante chamado Jack, no porto de NY. Durante a sequência de chegada (que representa bem o caos que devia ser esse porto no momento em que navios vinham da Europa), ocorre uma confusão e Jack embolsa o famoso chapéu coco de Chaplin, Pateta fica com o guarda-chuva de Biagio, etc. O plot realmente não importa muito. Apenas ressalte-se que o que se segue é uma tentativa de emular o estilo "slapstick" - comédia física cheia de algazarra e tons de absurdo, que poderíamos dizer ter sido inventada por Mack Sennet, o mestre de Chaplin que o acolheu quando ele chegou da Inglaterra sem um tostão furado, com uma trupe de teatro, em 1914. A história segue com perseguições burlescas por diversos cenários e situações engraçadas e ridículas. O slapstick é um gênero consolidado nos anos 10, e O Garoto, neste sentido, está muito mais próximo desta década do que do cinema dos anos 30.

Repito que não quero pegar pesado em uma justa homenagem a Chaplin num gibi infantil, mas gostaria de ressaltar algumas curiosidades históricas em relação ao grande cineasta que o gibi subverte, adapta ou simplesmente ignora:

1 - A ambientação da época: é comum as pessoas pensarem que os anos 20 e 30 são a mesma coisa, mas a verdade é que são tão diferentes quanto os anos 80 são dos 70, e por aí vai. Pateta Repórter se situa nos anos 30, portanto após o crack da bolsa de NY e dentro de um contexto de muita pobreza e desemprego nos EUA, o que fez esta década se tornar culturalmente, economicamente e cinematograficamente muito diferente da anterior. Em primeiro lugar, nos anos 30 o cinema já é sonoro e foi em poucos anos que se realizou uma transição completa. Mesmo que Chaplin (um resistente) tenha feito alguns de seus melhores filmes, como Luzes da Cidade e Tempos Modernos, nos anos 30, qualquer um minimamente informado sabe que, se estamos falando dos anos de glória do cinema mudo, estamos falando das décadas de 10 e 20. O Garoto, como vimos, foi lançado em 1921, e Chaplin não era um "velho mestre" (como mostrado no gibi), mas sim um iniciante em longas-metragens. É verdade que este filme é fundamental para delinear a estilística chapliniana, misturado o slapstick com melodrama, mas isso já havia sido ensaiado em curtas como O Vagabundo, que Chaplin filmou pela Essaney ainda em 1915. Portanto, para não deixar erros: anos 20 são roaring twenties, era do dixieland, das flappers, da euforia pós primeira guerra, muito dinheiro gasto em crédito, lei seca, junk spots, etc. E especialmente: o momento em que as maiores obras-primas do cinema mudo são produzidas. Anos 30 são de reconstrução dos EUA, Roosevelt, new deal, mulheres voltando para dentro de casa e o auge do cinema sonoro de gênero, como musicais e faroestes. Neste sentido, O Garoto aparece aqui como forçação de barra e uma indução à confusão entre épocas bastante distintas.

2 - O cinema representado: em certo momento da historia, Jack e Pateta estão se perseguindo e entram num estúdio de cinema. É a oportunidade que os autores têm de fazer sua homenagem a todo o (digamos) "cinema antigo", misturando referências e épocas. Vejamos: primeiro eles passam pelas filmagens de um western. Ok, gênero que praticamente funda o cinema como um todo e atravessou bem a fase silenciosa (vide The Great Train Robbery, filmes de William S. Hart, Tom Mix, experimentos de Griffith, etc.). Depois, um filme de piratas, também um gênero mudo estrondoso, sendo o mais famoso The Black Pirate, com Douglas Fairbanks, de 1926. No terceiro quadro temos um filme de ciclo arturiano, ou ao menos medieval, que remete aos vários filmes de Cruzadas (como o clássico italiano de 1918) e também a filmes de Robin Hood, como o clássico de 22 também com Fairbanks (o desenho de Radice no quadrinho, no entanto, emula mais a versão de 38 com Errol Flynn, o que condiziria mais com a época do gibi). Depois, na página seguinte, a coisa começa a ficar meio torta. O sci-fi no primeiro quadro só pode remeter ao "serial" de Flash Gordon de 1936. O famoso quadrinho de Alex Raymond saiu em 1934. Portanto, nem um nem outro têm qualquer coisa a ver com cinema mudo. O quadro seguinte mostra Pateta topando com fantasias de Drácula, Frankenstein e outros monstros: clara referência aos clássicos de Universal dos anos 30 (Drácula de Todd Browning, Frankenstein de James Whale e o Lobisomem com Lon Chaney Jr, que já é dos anos 40). Por fim, King Kong, que é de 1933 e epítome da Hollywood dos anos 30. Portanto, referência bacanas, cruzadas, entre anos 20 e 30, mas ainda sinto Chaplin um tanto deslocado nesse contexto.

3 - O garoto: Jack, o pequeno papagaio, é referência direta, obviamente, a Jackie Coogan, uma das primeiras estrelas mirins de Hollywood, que contracenou com Chaplin no filme de 1921. Ao contrário do que se pensa em algumas lendas urbanas, Coogan não morreu de overdose de heroína, e sim teve uma carreira decente no cinema até falecer de causas naturais nos anos 80. Além de ter feito "o garoto", ele também ficou famoso por lutar pelos direitos das crianças que atuam e por ter feito o tio Fester na série original da Família Adams.

4 - Chaplin gosta de textão: em certo momento da história, quando Chaplin finalmente vai apresentar seu filme ao público, ele profere um discurso (meio longo) antes, o que faz o Pateta comentar o seguinte: "Para um gênio do cinema mudo, o mestre fala um bocado!" De fato, Chaplin, ao fazer seu primeiro filme falado (O Grande Ditador, 1940), resolve descontar as décadas de mutismo num discurso enorme no final da história, uma das falas mais emblemáticas da história do cinema. Ele teve um atraso de 13 anos para aderir ao cinema falado, mas, quando finalmente o fez, marcou também a nova tecnologia. E curtia um textão mesmo: suas entrevistas são lendárias e polêmicas. Sua autobiografia é um delicioso calhamaço de 500 páginas.

Os dois quadros que selecionei mostram, em P&B puxado pra sépia, a agrura de Carlitos criando Jack em meio à pobreza (o que me lembra a notória frase do cineasta François Truffaut: "Quando Chaplin entrar na Keystone para rodar ‘filmes de perseguição’, correrá mais rápido e mais longe que seus colegas do music-hall, pois, embora não fosse o primeiro cineasta a descrever a fome, foi o único a conhecê-la") e a afetividade entre os dois personagens. Foi a maneira definitiva com que Radice e Turconi cristalizaram sua homenagem: plasmando o cinema em quadrinho. Bela e fofa homenagem, diga-se. Esses detalhes e imprecisões relatados são coisa de gente chata, não se acanhem. Coisa de doente. (CIM)

Polícia para quem precisa - Art Ops e o marasmo da Vertigo

por Lima Neto

Algumas vezes é difícil entender a razão de sucesso de determinados títulos. Às vezes essa dificuldade simplesmente expõe um mal gosto generalizado disfarçado de estilo ou nostalgia. Em outros momentos, porém, como no caso do Quadrinho ArtOps, lançamento do selo Vertigo e publicado no Brasil pela Panini, a incongruência entre as indicações elogiosas e a qualidade do material descredita ainda mais o mercado dos comics norte-americanos. Mesmo assim, em sua narrativa desgastada e seu discurso rasteiro sobre arte, ArtOps acidentalmente levanta alguns questionamentos bem urgentes sobre arte e liberdade de expressão. O volume, que encaderna as primeiras cinco edições da revista norte-americana, tem o roteiro de Shaun Simon e conta com a arte sempre competente (embora um tanto sem inspiração na edição em questão) de Michael Allred auxiliado pelo traço de Matt Brundage e as cores da costumeira parceira e esposa de Allred, Laura.

O roteirista Shaun Simon faz parte de uma geração que foi diretamente afetada pelo desenvolvimento do quadrinho para “leitores maduros” nas grandes editoras estadunidenses, processo este que culminou na criação do selo Vertigo e que encontrou na editora Karen Berger sua ponta de lança. Não sem motivo, o direcionamento gráfico de seus títulos da DarkHorse - Neverboy e The Fabulous Lifes of the Killjoys - seguem muito próximos ao estilo visual do selo da DC. A própria DarkHorse abriu suas portas para a mentora editorial do “mature reader” e criou o Berger Books, selo de quadrinhos editados por Berger. Em seu primeiro trabalho para a Vertigo, entretanto, Simon desaponta com uma HQ recheada de anarquismo de boutique e um discurso superficial sobre Arte – teoricamente a matéria prima conceitual de seu roteiro - que envergonha até os recentes guardiões dos bons costumes que inflamam a discussão sobre censura na arte brasileira.

Em ArtOps, título que faz trocadilho com o termo OpArt - tendência artística dos anos 60 que buscava explorar os conteúdos plásticos da imagem de maneira a dialogar com os limites e falibilidades da visão humana - vamos conhecer Reginald “Reggie” Jones, uma espécie de Joe Strummer embrulhado em um emaranhado de clichês de personagens típicos da Vertigo, parte Shade The Changing Man, parte Dane McGowan de Invisibles. Reggie é o único filho da líder do grupo de operações especiais que dá nome à revista e prefere viver no submundo do boxe e nos guetos punk de Nova York a trabalhar para a mãe.

ArtOps faz parte de uma safra de narrativas em quadrinhos que vão imaginar forças policiais para áreas do cotidiano que costumeiramente não possuem um sistema de vigilância, como é o caso de DPF - Departamento de Polícia da Física, de Simon Oliver e Robbie Rodriguez e publicada também na Vertigo. Como resultado, vemos a multiplicação de séries policiais com temas bizarros, uma influência inegável da saudosa Top Ten de Alan Moore e Gene Ha, publicada pelo selo ABC Comics, pertencente à DC.

Nessa perspectiva, ArtOps acompanha um Reggie que se vê obrigado a entrar para a corporação da mãe depois que a equipe inteira desaparece. O herói relutante se junta a um personagem de quadrinhos vivo, uma espécie de ser de nanquim também reminiscente do herói satírico Splash Branningan da ABC; uma agente sobrevivente que escapou do desaparecimento por estar presa fora do tempo; e uma garota qualquer que encontram pelo meio do caminho (sim, esta é uma descrição precisa). Juntos, devem proteger a própria Mona Lisa del Giocondo, retirada do quadro em que vive e solta no mundo real. 

Acidentalmente, a brincadeira pueril concebida por Shaun Simon de fato suscita algumas reflexões interessantes sobre as interconexões entre artes plásticas e histórias em quadrinhos, alta e baixa culturas, liberdade e fruição estética. Mas a superficialidade da abordagem derruba qualquer pretensão maior. Desde que o primeiro jornal publicou a primeira tira de linhas rabiscadas em milhares de páginas impressas no final do século XIX, as artes plásticas, sobretudo a pintura, já estavam processando em seus discursos visuais a virada pictórica que estava por vir e que culmina na Pop Art. Explorar as possibilidades estéticas, poéticas e até mesmo éticas dessas tecnologias de reprodução são características desse movimento. De especial interesse para esse texto está o trabalho de Roy Lichtenstein, que em 1961 exibiu seu quadro Look, Mickey, uma espécie de aula de anatomia da imagem impressa de quadrinhos. O que Lichtenstein representa em suas pinturas não será tanto as reproduções de quadros de comics “anônimos”, mas sim as linhas propositalmente sintéticas do processo de reprodução; as suas cores primárias e saturadas; e o prato principal - a retícula gráfica, sinônimo duplo que passa a significar a Pop Art para o senso comum e que vai simbolizar a imagem da HQ por contiguidade. É esta retícula que adorna a capa da edição de ArtOps.

Mas não se enganem, o reticulado da capa só expõe a escolha fácil dos autores da revista por intersecções óbvias entre quadrinhos e arte. Essa banalização só teria uma única qualidade redentora, caso fosse intencional, a de vingar uma velha mácula contra as HQ's praticada por artistas como Lichtenstein. Em ArtOps, a Arte finalmente vai receber o tratamento desdenhoso com que no passado tratou os quadrinhos. Se para Lichtenstein as imagens que analisava eram rabiscos anônimos livres de autoria ou intenção – e, principalmente, livres da divisão dos milhares de dólares da venda de suas obras com os autores originais dos desenhos que copiava - em ArtOps a mão do pintor também vai ser um detalhe desprezível. O Davi de Michelangelo torna-se marco sem vínculo com um criador. A Mona Lisa de Leonardo da Vinci, esvaziada de sentido, vai ser epítome do lugar comum na pintura ocidental (mas poderíamos chamar aqui de pintura apenas, pois duvido muito que os autores estejam cientes de que existe arte produzida fora destes cânones mais evidentes, quanto mais além das fronteiras europeias). Da mesma maneira que uma criança acredita que o que lê na página de um gibi é o Super-Homem, e não uma narrativa construída por pessoas para tal finalidade, assim vão ser encaradas as obras que rodeiam a história em ArtOps: imagens surgidas por geração espontânea que de maneira alguma pertencem a algum discurso ou pesquisa artística em que estejam inseridos a não ser o mais pueril conceito de “história da arte”. Como bem disse um amigo leitor, “é tudo uma desculpa para desenhar a Monalisa de moicano”.

Esta maneira anárquica de entender os cânones da arte poderia guardar um interessante potencial de questionamentos: as imagens ainda imaginam quando se tornam cânone, signos inertes que caracterizam um determinado discurso sobre a arte? Tratar estas imagens como se tivessem atingido uma vida própria, uma significação maior do que o contexto em que estão inseridas para daí subvertê-las em outros códigos me parece uma ideia rica em possibilidades, mas, como disse no início, as boas ideias da revista são acidentais demais para serem devidamente trabalhadas. Isso porque, diferente de uma HQ como DPF, a arte não é um lugar de leis objetivas que ao serem quebradas geram um efeito indesejado. Arte é o espaço criativo cuja riqueza reside na exploração dos “virem a ser” das coisas tensionadas pelo seu presente e suas possibilidades. É nesse sentido que ArtOps revela sua face mais frustrante e careta. Qualquer anarquia que apareça na edição não passa de um aceno aos saudosistas leitores da Vertigo. Porque, como policiais que são, a ArtOps apenas se interessa em manter o status quo e salvar as “belas artes” das artes “feias".

Quando a história se desenrola, vemos que tudo pode ser resumido a algo como “bonitinhos do bem, responsáveis por manter os cânones da arte, versus feiosos do mal, que distorcem os quadros e esculturas como vingança contra um mundo que não os aceita como tal”. A vilã é uma espécie de pintura cubista, como se uma das damas da ilustre pintura Demoiselles d’Avignon saísse do quadro e fosse partilhar sua aparência com o restante do mundo. Não há no gibi qualquer sinal que indique que os autores da revista estejam a par de como a pintura cubista colocava em xeque a representação como construção buscando desvincular a pintura da visão naturalista da imagem como cópia da realidade. Tampouco não vemos aceno algum para o fato de a estética da personagem representar a estratégia pictórica de expor pontos de vistas diferentes de um objeto sobre uma superfície única - uma das diretrizes do movimento de Picasso e Braque. Pelo contrário, o que vemos em ArtOps é o mesmo senso comum que se encontra tão presente no dia a dia real e virtual, e que no Brasil vai tomar contornos preocupantes desabando na criação de verdadeiros “policiais da arte”.

Em ArtOps, as pichações são monstros assassinos que arrancam braços e sequestram crianças. A beleza clássica do nu de Davi é punida com a deformação de seu corpo tal qual um Joseph Merrick. O célebre Grito de Edvard Munch é reduzido a uma vilania infantil de quem não tem maturidade para lidar com o tipo de sentimento que o quadro suscita. A ambiguidade do sorriso da Gioconda de Da Vinci é solapada pela criação de uma versão masculina que, forte e brutal, vai salva-la para a obrigar a viver ao seu lado. Os próprios agentes, apesar de serem representados como rock stars, são tacanhos, caretas e reprimidos.

O personagem Reggie tem a pretensão de ser uma metáfora: o homem que tem a arte dentro de si mas a renega, tem medo do que pode acontecer caso a liberte. Quando seu medo se realiza, Reggie se transforma num quadro de Jackson Pollock ambulante. E neste clima recalcado, a libertação de Reggie é recebida como um descontrole, como uma arte selvagem que não tem valor e deve ser controlada. As semelhanças com a maneira com que as arte plásticas vêm sendo encaradas no Brasil aponta para um ponto em comum entre os autores (pelo menos seu escritor) e a massa de “policiais da arte” que tomam o país – a incompreensão de que a Arte, essa de A maiúsculo, é um processo acumulado de pesquisa estética que se espalha por infindáveis caminhos, mas sem a intenção de chegar a lugar algum. A arte, diferente da ciência, não quer resolver, mas sim propor problemas. A Vertigo em seu início sabia disso. A própria noção de um “policiamento” artístico mostra uma incompreensão fundamental que é conceber a arte sem o espaço da liberdade que ela exige.

Termino esta resenha com a pergunta investigativa: quem lucra com a proliferação de policiais das coisas? Seria esta proliferação de títulos uma manifestação da sensação de insegurança que cresce nas classes intermediárias da sociedade, e de sua necessidade de controlar o ambiente em volta até em seus aspectos mais abstratos? Seja o que for, a cada dia aparecem mais produtos culturais que, em ambiguidade disfarçada, reforçam uma vontade difusa de entregar as liberdades em nome da segurança. Geralmente estes produtos são vendidos com um verniz anárquico que se quebra na primeira inspeção, ou então são embrulhados numa nostalgia vazia que só simboliza um passado mais seguro.

Em um presente marcado por uma instabilidade e medo constantes gerados por uma economia mundial que não parece mais ser capaz de se sustentar, alguns títulos da Vertigo parecem revelar o real estado cadavérico de uma indústria que já se mostrou renovadora, mas que agora é incapaz de arriscar na publicação de propostas realmente autorais. Com ArtOps, vemos uma Vertigo que não causa mais vertigem alguma, mas que promete segurança e satisfação enquanto pagarem bem por isso.