Autocracia: um quadrinho político sobre o mundo motorizado

Depois de umas mini-férias, a Raio Laser enfim acorda de seu sono dogmático. O texto a seguir é mais uma colaboração de Havane Melo (professora e pesquisadora de histórias em quadrinhos e fotografia), como sempre muito bem-vinda. (CIM)

por Havane Melo

Embora tenha lançado uma HQ de vanguarda, disponível no Brasil desde 2015, e  desenvolvido diversas parcerias com grandes nomes dos quadrinhos internacionais, Woodrow Phoenix ainda é um artista pouco popular por aqui. Talvez porque seu único gibi lançado e traduzido nacionalmente, Autocracia: Velocidade, Poder e Morte no Mundo Motorizado (Rumble Strip, 2008; Veneta, 2015), está longe de ser uma leitura confortável e não apresenta personagens, diálogos ou veículos. O autor comunica-se conosco através de dados reais sobre acidentes de trânsito e críticas sobre a forma como a sociedade tem orientado seu desenvolvimento, enfatizando a utilização de veículos como meio de transporte, em detrimento do pedestre e do transporte coletivo. A obra também questiona a legislação de trânsito e a relativização da punibilidade em acidentes no setor.

Se acreditarmos que o conteúdo jurídico de uma sociedade é fruto de sua organização contemporânea (ou, pelo menos, é isso que deveria ser), é considerado aceitável que a punibilidade do motorista seja reduzida, afinal, temos vários interesses em jogo aqui e tanto o Estado como o setor privado – entidades muito maiores que o indivíduo não motorizado – têm relação direta com a expansão do setor automobilístico.

Em 2017, a cidade de São Paulo chegou à marca de 6 milhões de automóveis registrados . Ainda assim, pouco mais da metade da população do Brasil tem um veículo próprio: 53% das casas brasileiras ainda não têm nem carro nem moto. Aqui em Brasília, se você é usuário de transporte público ou se já tentou pegar um ônibus no final de semana, é possível que faça parte de 61% dos usuários que consideram o transporte coletivo do DF péssimo.

Infográfico desenvolvido por Leo Aragão, Daniel Roda, Dalton Soares e Elvis Martuchelli para o site G1 

Fora das estatísticas, no mundo das artes visuais, diversos artistas têm a caminhada como ponto inicial do processo criativo. E o fato não é novo: as experiências relacionadas à caminhada e ao ato de criação remontam ao século XIX, com o conceito de flâneur, desenvolvido por Charles Baudelaire, em Paris. Na década de 1920, movimentos artísticos, como o surrealismo, por exemplo, produziam suas experiências com deambulações, enquanto os dadaístas realizavam grupos de caminhadas à deriva. Em 1950, Guy Debord e seus parceiros discutiram o ato da caminhada dentro da Internacional Situacionista. E, na arte contemporânea, dezenas de artistas utilizam o ato de caminhar como parte de seu processo criativo, direta ou indiretamente, como exemplo Richard Long, Hamish Fulton, Francis Alÿs, Mona Hatoum, Gabriel Orozco, André Breton, Lygia Pape, Hélio Oiticica, entre outros.

A versão original da obra, Rumble Strips (2008), é focada na cidade de Londres e, como tal, participou do projeto "Sequential City": uma exposição organizada pelo estúdio Baxter and Bailey, que nos apresenta Londres através dos quadrinhos e contou com 14 obras, algumas páginas originais e entrevistas sobre a relação do processo criativo dos artistas com a cidade. Entre as entrevistas, encontramos a fala de Phoenix sobre a relação entre a cidade e sua HQ:

Para o Brasil, a HQ apresentou páginas criadas especialmente para essa edição, contendo dados e construções urbanas locais. Entre as cidades brasileiras representadas, está Brasília que, até outubro de 2017, já contabilizava 17 ciclistas mortos em acidentes de trânsito, segundo dados do DETRAN/DF.

Muitos dos quadrinhos autobiográficos que desembarcaram no Brasil na última década trouxeram posicionamentos políticos por trás da história pessoal de seus personagens, refletiram estilos de vida e escolhas pessoais que conquistaram uma diversidade de leitores (vide Fun Home, Pagando por Sexo, Retalhos, entre outros). A diferença é que Autocracia não trouxe romance, ação ou aventura, não nos apresentou a personagens carismáticos e ainda critica o sistema de transportes vigente, do qual muitos de seus leitores fazem parte.  Ainda assim, Autocracia não é uma obra cicloativista. Não menciona alternativas. Não justifica o sistema. Não é um relato autobiográfico. E, definitivamente, não é um quadrinho para mero entretenimento. É um posicionamento político e crítico que, no mínimo, provoca reflexões no leitor e mexe com sua zona de conforto. O trabalho de Phoenix merece nosso olhar não apenas pela novidade da composição, mas também pelo tom político que a obra apresenta desde o início - a palavra autocracia, em português, significa governo ilimitado, absoluto. Um quadrinho capaz de perturbar os usuários mais convictos da indústria automobilística.