BEST OF DA RAIO LASER: melhores leituras de 2016

Assim como fizemos no ano passado, vamos recobrar 2016 a partir da radicalidade da memória, da aleatoriedade provocada pelo ritmo alucinante que foi esse ano louco. Os quadrinhos foram se acumulando, e coisas velhas, coisas novas, coisas longínquas, coisas nacionais, tudo isso foi sendo despejado como caos da informação, como um vendaval descontrolado de quadrinhos. Assim, é hora de organizar essa porra e praticar aquele velho exercício de produzir sentido através da experiência. Na Raio Laser é assim: escreve quem quer, quando quer, como quer. E assim são nossas listas. Eu e o Marcos no propusemos este exercício este ano. E aí estão nossas listas, sem ordem qualquer, radicalmente pessoais. É a nossa chance de arrumar a casinha, de processar a coisa toda, e de apresentar alguns truques, como sempre. Boa leitura! (CIM

por Ciro I. Marcondes e Marcos Maciel de Almeida

HELL BREAKS LOOSE: LISTA DO CIRO

1 – L’ÉGLISE ET L’ETAT, VOLUME 1: UNE HISTOIRE DE CEREBUS (A Igreja e o Estado, Volume 1 – Uma história de Cerebus) – Dave Sim (Vertige Graphic, 2012 [1987]): o canadense Dave Sim é um dos mais controversos enfants térribles dos quadrinhos. Guru da autopublicação nos anos 80, tretou com o Comics Journal e inúmeros leitores por conta de suas opiniões radicais. Foi internado após excessos com psicotrópicos. Chegou a desafiar (na vera) o quadrinista Jeff Smith para uma luta de boxe. O background, no entanto, não vem ao caso (ou talvez a ajude a explicar) quando vamos mergulhar em sua obra Cerebus, uma coleção megalítica de vários tomos publicada entre 1986 e 2004, totalizando nada menos que 6000 páginas de um mesmo quadrinho.

Cerebus, neste sentido, é o Em busca do tempo perdido desta forma de arte: alguns poucos ousarão tentar lê-lo. Menos ainda conseguirão terminá-lo.

Em outro sentido, porém, Cerebus em nada se assemelha à delicada obra de Proust. Certo, eu tive acesso apenas a uma versão (traduzida para o francês) do primeiro volume do arco A Igreja e o Estado (que é o terceiro longo arco da série), mas só isso já são 600 páginas de quadrinho. Cerebus é um orictéropo (aardvark, um mamífero africano) antropomorfo que, nas primeiras histórias, atuava como uma paródia de Conan. Dave Sim foi, porém, progressivamente, transformando um barbárico mundo medieval em uma sociedade incrivelmente complexa com incontáveis desdobramentos de poder, refletindo fortemente as esferas política e religiosa. Neste volume, o mal-humorado e beberrão personagem vai sendo manipulado por grupos políticos, aristocratas, amantes e religiosos para sair de um estado de total abandono (após antes ter sido monarca do reino de Iest) até chegar à posição de Papa.

O humor de Sim é ácido e selvagem, e sua ironia cheia de inferências eruditas. Os quadrinhos mainstream são frequentemente demolidos pela perspectiva fanática de autor e personagens (basta checar, neste volume, Artemis, uma paródia grotesca do Wolverine). A linguagem em quadrinhos é hermética e minuciosamente elaborada. Cada página individual tem um conceito e a preocupação com o equilíbrio entre a qualidade intelectual da obra e seu senso de humor blasfemo é quase obsessiva. Não é uma leitura fácil, eu vos advirto. Sim mistura inúmeros registros diferentes e o cenário político do universo de Cerebus é tão amplo que toma tempo até fazer sentido na cabeça do leitor. O orictéropo chega a escrever um tratado sobre como governar, que se apresenta integralmente entre as páginas dos quadrinhos.

Com algum esforço, a leitura progride e o todo conceitual, incluindo sua visão sobre um muito variado leque de assuntos, vai se abrindo. Quanto mais se lê Cerebus, mas se tem fome de lê-lo, e o que antes parecia uma peça de literatura se transforma num tratado social e político dos nossos tempos. Em Cerebus, nada é literal e todo tipo de quebra com a quarta parede é recurso para elaboração do discurso da HQ. O efeito “quadrinhos sem limites” dos comix underground (origem de Sim) transparece aqui, como se o autor fosse espécie de Gilbert Shelton (Wonder Wart-Hog) intelectualizado. Enfim, uma das mais agudas visões de política e religião dos quadrinhos, realizada por uma das masterminds do meio. (CIM)

2 – BULLDOGMA – Wagner William (Veneta, 2016): sabe aquelas obras que você ama e odeia ao mesmo tempo, com um sentimento concomitante que compartilhe inteiramente as duas apreciações (do mesmo jeito que Jesus meio que seria, ao mesmo tempo, todo Deus e todo humano), sem que uma coisa necessariamente interfira na outra (Dançando no escuro é um bom exemplo...)? Pois bem: não é que Bulldogma seja exatamente isso. Não há muito o que criticar sobre o exímio trabalho de quadrinização de Wagner William neste romance gráfico. Ele usa uma proposta hipermidiática (como se o livro fosse um repositório de hiperlinks) para costurar (quase digitalmente) a persona de sua protagonista pós-moderna, a demasiado humana Deisy, a Adèle Blanc Sec “jovem adulta” dos anos 10. Ela é solteira, designer, ilustradora, pichadora, bissexual, tem um bulldog, etc, etc. Poderia parecer um clichê, mas William usa e abusa de maneiras inventivas para sofisticar o universo desta personagem: interfaces de Internet, celulares, cartazes, pichações, toys. Além disso, como se fosse uma película que recobre o drama mundano contemporâneo da personagem, há um mistério sci-fi pulp com alienígenas que nunca efetivamente se revela ou resolve.

Bulldogma é contagiante e muito impactante em sua jornada pelas telas diferentes de representação em quadrinhos: telas de arquivos de computador, telas de chats no FB, telas dos requadros, telas de TV, de videogame, de visões subjetivas, outras delirantes, alucinatórias. Infelizmente, é também muito autoindulgente, e as grossas camadas de metalinguagem da HQ me parecem não apenas excessivas e desnecessárias, como também uma estratégia guarda-chuva para proteger o próprio autor de suas inseguranças. E isso é bastante incômodo. Daí a ambiguidade estranha no fruir das páginas. Não apenas a protagonista (sim, nada plana e enredada por um rico universo ficcional) ressoa certa antipatia, como parece também antipática a empáfia hipsterista da história. Francamente, Bulldogma deve ser a HQ com mais referências e citações por cm² da História. E a carga pesada de metalinguagem (Deisy está escrevendo uma graphic novel que de certa forma é o próprio Bulldogma, etc.), procurando prever e antecipar as críticas a estes excessos todos, tornam a coisa um pouco broxante e enfadonha.

Não que estas referências sejam palha ou obtusas. William sabe costurar muito bem um grande volume de erudição no texto em quadrinhos, como se isso tudo fizesse também parte desta estrutura de hiperlinks. Porém, isso soa como se ele precisasse esconder sua incapacidade de elaborar efetivamente uma história por trás de uma visão feminina que, mais atrás ainda, é a sua própria. Daí também a necessidade de se justificar esta posição com um monte de embromação retórica posicionada meio que ironicamente dentro da boca dos personagens. É por isso que, apesar da fantástica visão de quadrinhos que o autor apresenta na tessitura deste romance gráfico, seu final é frustrante porque este dispositivo de autoblindagem impede que a coisa chegue a qualquer lugar.

Enfim, a nuvem de formatos e referências, incluindo aí o esvaziado e supostamente metafórico plot alienígena, denuncia sim a desorientação do autor, mas, para o bem da HQ, reflete-se também fortemente em sua personagem. Mais do que uma história cult, Bulldogma é um tratado pós-moderno sobre infelicidade, solidão e vazios afetivos nos centros urbanos dos nossos dias. Sua aversão à interpretação (“Você está muito mais preocupado em chegar em algum lugar do que simplesmente estar lá”) é um sintoma que somatiza na própria Deisy. Quase por acidente, portanto, em sua densa fragmentação, Bulldogma alicerça coerência ao unir a própria falta de coerência comum a autor e personagem. Ambígua, sim, mas profundamente provocativa e inteligente, esta HQ merece certamente um lugar entre as melhores leituras do ano. (CIM)

3 – VALERIAN, AGENT SPATIO-TEMPORAL: LA CITÉ DES EAUX MOUVANTES (Valerian, agente espaçotemporal: a cidade das águas movediças) – Jean-Claude Mézières e Pierre Christin (Dargaud, 1977 [1969]): a chegada de um filme adaptado de Valerian dirigido por Luc Besson (a ser lançado em agosto de 2017) trouxe nova atenção a esta HQ clássica, forte precursora da sci-fi na cultura pop. Na verdade, Valerian foi um dos principais consolidadores da space-opera em mídias visuais, e sua influência sobre Star Wars não é lenda urbana. Além disso, é a série mais longeva da HQ franco-belga que continua sendo publicada por seus autores originais. Isso me motivou a ler mais um volume encadernado, que é a segunda aventura do herói e sua parceira Laureline. Publicado originalmente na Pilote em 1969, em A cidade das águas movediças podemos ver o esplendor da arte de Jean-Claude Mézières em seus dias de ouro: mais caricata do que se tornaria posteriormente, com enorme riqueza no detalhamento de personagens e cenários, além de intensa imaginação para figurinos de época e gadgets espaciais.

Christin (que escreveu nada menos que Partida de caça, com Bilal), mestre absoluto da sci-fi, faz Valerian viajar no tempo em busca do psicopático Xombul, que retornou a uma Nova York pós-apocalíptica do ano de 1986 (!). A cidade está toda inundada (os cenários são surpreendentes e espetaculares) e Valerian precisa atravessá-la de barco, enfrentando escroques neo-hippies e um certo líder do submundo (e bandleader ocasional) chamado Sun Rae – inspirado no jazzista de vanguarda e filósofo new age Sun Ra. Desventuras cada vez mais insanas (e visualmente deslumbrantes) vão se sucedendo, e até a então jovem cidade de Brasília aparece na bagaça (como centro utópico de reunião dos líderes mundiais no cenário pós-apocalíptico). Parece maneiro o suficiente? Valerian pode parecer datado e ingênuo hoje em dia, mas é o clássico exemplo do tipo de obra que leitores “modernos e descolados” desprezam, sem saber que estão ignorando um verdadeiro tesouro de possibilidades para um bom quadrinho de aventura. (CIM)

4 – MORT CINDER – Hector Germán Oesterheld e Alberto Breccia (Clarín, 2004 [1962-4]): Mort Cinder é um homem que, ao morrer, renasce em outra época, mantendo suas memórias, infinitamente. As impressionantes histórias das memórias deste homem são relatadas a um velho antiquário londrino (Ezra Winston), que as desperta no imortal com seus objetos antigos. Mort Cinder faz parte da fase mais madura de Oesterheld, o mais importante roteirista de quadrinhos argentino, e vê a arte do gigante Breccia no auge, uma profusão de rabiscos sombrios e expressões paralisantes. Publicada de maneira seriada em Misterix no início dos anos 60, Mort Cinder é um passo além em relação à obra mais famosa Oesterheld, O eternauta: aqui, já não cabem mensagens verossímeis ou tentativas de estruturar um universo muito coerente. O imortal e seu velho amigo antiquário são pura metáfora, puro subterfúgio para Oesterheld viajar no tempo e no espaço (o Egito antigo, a Babel bíblica, o período colonial, etc.) e produzir poderosos contos de perfil sociológico, filosófico, humanista. Uma obra inigualável. Em breve mais sobre Mort Cinder por aqui! (CIM)

5 - AVENTURAS NA ILHA DO TESOURO - Pedro Cobiaco (Mino, 2015): salto selvagem e incontrolável no imaginário lisérgico dos millenials. Leia a crítica completa aqui.

6 – CIDADE DE VIDRO DE PAUL AUSTER - David Mazzucchelli e Paul Karasik (Via Lettera, 1998 [1994]): Cidade de vidro, a novela que inaugura a famosa “trilogia de Nova York” do grande autor americano Paul Auster, é como um novelo interminável de inferências metalinguísticas sobre a origem da fala, das palavras e da linguagem encaixadas dentro de um romance noir de banca, folhetinesco. Mesmo como literatura (onde a capacidade de abstração intelectiva é muito grande), lança um desafio à compreensão. O que dizer então de uma adaptação em quadrinhos? Esta graphic dos anos 90 é um exemplo paradigmático a respeito de como fazer a literatura render em  quadrinhos. O personagem principal, Quinn, é um escritor de romances pulp de detetives que certo dia recebe uma ligação em que o confundem realmente com um detetive, chamado... Paul Auster. A partir daí vamos afundando num labirinto metafísico e metalinguístico em que se confundem elementos de cultura popular (pessoas que passam 20 anos em porões), bíblica (a Torre de Babel), literária, filosófica, etc. Mazzucchelli está em grande forma, e as soluções visuais para as charadas e enigmas abstratos propostos pelas mentes devaneantes da história são intensas, imersivas, de tirar o fôlego. Talvez seja o seu trabalho mais equilibrado, e sem dúvida um ponto de virada em sua carreira, hoje ainda mais prestigiada com o genial Asterios Polyp. Para os que pensam a adaptação em quadrinhos, é hora de reler esta pequena obra-prima, que anda um tanto esquecida. (CIM)

7 – PAU E PEDRA – Peter Kuper (Quadrinhos na Cia., 2016): Kuper é um mestre do silêncio e do surrealismo, professor de Harvard e um artista tão talhado que a notícia de um lançamento seu é garantia de coisas muito acima de média. Ainda que ele nunca repita a qualidade da análise social (por meio da metonímia em quadrinhos) que realizou no insuperável O sistema, sua inventividade para bolar novos formatos de quadrinhos mudos parece não ter fim. Neste Pau e pedra, ele deixa de lado o experimentalismo obsessivo para contar uma história mais direta. Ao invés de um silêncio por meio de símbolos, um silêncio pro meio de arquétipos. Assim, sem usar palavras, ele retorna a uma ancestralidade primordial, em que seres de pau e pedra parecem travar a primeira história de opressão, a primeira rebelião e a primeira guerra do mundo. O fato de os seres de Kuper serem feitos de materiais brutos torna este ambiente ainda mais longínquo e primitivo, eons geológicos de volta a um passado de realidade mágica. A arte é elegante e a alternância entre o P&B e as cores é habilmente disposta numa programação para nos maravilhar e surpreender. Mesmo sendo um trabalho menor de Kuper, Pau e pedra é uma de suas HQs mais versáteis. Ao mesmo tempo em que o mundo arquetípico dela pode servir para educar uma criança, realiza também uma reflexão sóbria e implacável sobre temas como a tirania, o extrativismo e a escravidão. Go silent! (CIM)

8 - THE COMPLETE ELF QUEST - VOLUME 1 - Wendy e Richard Pini (Dark Horse, 2014): a encantadora saga hippie dos elfos de Richard e Wendy Pini é a mais longa HQ indie da história. Mais sobre Elf Quest aqui.

9 – DUPIN – Leandro Melite (Zarabatana, 2015): imaginem Edgar Allan Poe adaptado para os quadrinhos com forte carga lovecraftiana, e protagonizado por duas crianças. Leandro Melite teve realmente as manhas de ir muito além da homenagem ou da adaptação (Os assassinatos da Rua Morgue) ao transformar a famosa história inaugural da ficção policial em espécie de conto de fadas obscuro e aterrador. Lindamente, digamos, incrustado na cidade de São Paulo, Dupin é um romance gráfico aberto ao oculto, guardando seus segredos em aspectos e momentos precisos. Sob forte sombra de Mutarelli, mas também perfeitamente autêntico, este quadrinho solidamente bem narrado se alterna entre as vicissitudes dos dois protagonistas. De um lado, temos a angústia esperada do tween Eduard, que, na ausência de uma figura paterna de referência, se interroga sobre o que é ser um homem. Do outro, temos seu primo Gustave, um menino português de compleição estranha e trejeitos literários, claramente uma figura superdotada que fala através de enigmas e esconde um passado de tragédia e forças estranhas. Por mais que Dupin seja sofisticado em termos de arte, timing, suspense e empaginação, é a química entre estes dois personagens que o conduz a ser algo de calibre maior na fartura dos quadrinhos brasileiros contemporâneos. Melite se preocupa com a qualidade artística e esconde alguns easter eggs em seu trabalho, mas é a força humana depositada nesta estranha relação que salta aos olhos, que legitimamente emociona. No final das contas, após um (um tanto demorado e chato) preâmbulo na experimentação (às vezes inócua), o quadrinho brasileiro encontra força novamente naquelas premissas básicas: personagem, trama, ambientação, etc.

Dupin até esbarra em alguns estereótipos um tanto quanto previsíveis (o policial grosseiro e idiota, a gangue de rua que pratica bullying), mas nada que prejudique o prazer de uma história elegantemente bem narrada, com implicações inteligentes de significado. E assustadora. Muito assustadora. (CIM)

10 - QUADRADINHAS – Lucas Gehre (LTG Press, 2016): entre 2010 e 2015 o quadrinista brasiliense Lucas Gehre produziu uma série de quadrinhos em formato específico (uma página quadrada geralmente contendo nove requadros do mesmo tamanho, mas com variações), populares na Internet. Em 2016, via Catarse, ele lançou esta coletânea em formato físico. Os quadrinhos brasileiros agradecem. Nenhum trabalho produzido no Brasil atualmente é como o de Lucas. As quadradinhas são um laboratório para o voo poético do autor em direção às suas aspirações mais íntimas. Os temas podem ser completamente divergentes entre si, assim como a abordagem sobre a linguagem dos quadrinhos. Porém, há em comum a necessidade de se expressar certo inefável da vida que só pode ser comunicado dentro de um espaço de poesia. E fazer isso em quadrinhos é muito admirável.

Gehre usa como base alguns tropos (o espaço sideral, o mundo microscópico, plantas, animais, jogos, objetos, relacionamentos) que são desenvolvidos, por exemplo, sob uma sensibilidade morfológica (em quê as coisas parecem umas com as outras?) ou temporal (não é incomum que a quadradinha capture movimentos extremamente sutis, ou variações quase imperceptíveis em gradações de cor). Algumas tangem a abstração (lembrando Rothko). Os objetos, numa vibe totalmente magritteana, são realojados de suas funções originais, sendo observados com uma lente profundamente curiosa e instigada. Gehre desvela um mundo oculto aos olhos ordinários, mas que está ao mesmo tempo aí, latente, a qualquer momento. É físico, biólogo, escritor romântico, esotérico, desenhista. Não à toa, uma de suas metáforas favoritas é a do avião partindo e voltando, quando paramos nossas atividades naquele ato existencial puro de observar uma coisa cruzando o céu. Uma quadradinha é um OVNI em quadrinhos cruzando nosso cotidiano. (CIM)

11 – GENTLEMAN JIM (Jim, o gentleman) – Richard Briggs (Hamish Hamilton, 1980): Ok, Raymond Briggs é um dos grandes da Literatura infantil inglesa, chegando a assumir o papel de uma espécie de Roald Dahl britânico. Porém, nem todos conhecem sua obra em quadrinhos, e a dobradinha Gentleman Jim e When the wind blows estão entre seu trabalho mais significativo. Briggs introjeta aqui uma mistura de ingenuidade do indivíduo e perversidade social que chega a ser ultrajante. Como pode um quadrinho ser uma inocente alegoria infantil e ao mesmo tempo uma audaz sátira social?

Gentleman Jim conta a história de Jim Bloggs e sua esposa Hilda, cidadãos mentecaptos da working class britânica, ingênuos como jarros de flores. Jim lava banheiros públicos. Esta é sua profissão. Certo dia, ele decide mudar de emprego. Cogita ser soldado, cowboy, pintor, executivo. Ele decide que, bruto e iletrado, não possui instrução para exercer tais funções. Decidindo, por fim, que poderia ser espécie de “cavaleiro noturno” (herói encapuzado estilo Robin Hood), Jim vê sua empreitada fracassar ao esbarrar, a cada passo, em um empecilho moral, institucional ou burocrático, terminando preso ao cometer (meio que no estilo “Forrest Gump”) 14 delitos e voltando a lavar latrinas na cadeia. As ilustrações de Briggs são ternas, coloridas por airados lápis de cores, evocando o universo das ilustrações para crianças, próximo à “linha clara” de tradição franco-belga. O conteúdo, porém, aparentemente amenizado pela doçura dos protagonistas, é cruel com a imobilidade da classe trabalhadora, tolhida por barreiras invisíveis construídas pelas instituições sociais. Neste sentido, Briggs é brilhante. When the wind blows, sua HQ seguinte, vai colocar o mesmo casal ignóbil diante de uma guerra nuclear. The plot thickens! (CIM)

HELL AIN'T A BAD PLACE TO BE: LISTA DO MARCOS

Listas de melhores do ano me deixam ansioso. Saber que tem algo aparentemente acima da média – e ainda desconhecido para mim – por aí faz com que eu crie expectativas e mexa mundos e fundos para ter acesso ao tal material que teima em permanecer distante do alcance das minhas mãos. É assim com livros, discos, filmes, mas especialmente com gibis. E o problema aqui é potencializado pelo fato de que as Histórias em Quadrinhos são uma mídia relativamente barata e de simples produção. Compare com o custo, tempo e mão de obra empregada para fazer um filme, por exemplo. A diferença é abissal. Os gibis permitem que um autor crie, sozinho se for essa a opção, uma nova obra prima, que poderá surgir em um estúdio de desenho profissional ou em qualquer quartinho dos fundos. A máxima do “do it yourself” – mais comumente utilizada no ramo da música – parece ter sido criada sob medida para os quadrinistas. Assim, considerando que boa parte das obras de quadrinhos têm por característica uma produção sobretudo pulverizada, realizada conforme o empenho do autor em lançar aquela determinada publicação, torna-se praticamente impossível acompanhar tudo que está saindo, dada a relativa facilidade de gestação de novos quadrinhos. Por isso, lamento informar que, por mais que tentemos, meus caros, jamais conseguiremos ter acesso a 100 % do biscoito fino do quadrinho mundial, porque, neste exato momento, tem um quadrinista terminando um novo gibi que poderá ser o novo clássico imperdível. Só resta, portanto, nos conformarmos com o fato de que essa sensação de incompletude permanecerá, apesar dos pesares. Ciente disso, peço licença para apresentar minha lista de melhores de 2016 para os internautas (ansiosos ou não) de plantão. Então, sofram, curtam ou permaneçam indiferentes com a lista de alguns gibis que vocês talvez ainda não tenham tido a oportunidade de ler. Importante frisar que a relação não possui uma ordem crescente ou decrescente de preferência e que contém gibis lidos – mas não necessariamente lançados – em 2016. (MMA)

1 -GUERRAS SECRETAS #1-9 – Jonathan Hickman e Esad Ribic (Marvel/Panini, 2016): Tomei conhecimento da terceira encarnação do crossover Guerras alguns anos atrás, quando me deparei com a edição número 1. O que me chamou a atenção foi a quantidade de personagens “B” na capa de um gibi usado como ponta de lança de uma maxissérie com forte apelo comercial. Outra coisa que me atraiu foi a presença de Alex Ross como capista. Salvo em raríssimas ocasiões, ele não é o tipo de cara que entra em barca furada. E essa certamente não foi uma delas. Mais que tudo, a intrincada saga de Jonathan Hickman é uma ode de amor ao Universo Marvel. Depois de uns bons três anos lançando as bases do crossover nas revistas mensais da editora norte-americana, o escritor pôde, finalmente, materializar sua criação mais ambiciosa. E a palavra aqui não pode ser outra a não ser desbunde. Tem de tudo um pouco. Destruição de universos, zumbis, pancadaria generalizada e principalmente: interações bem sacadas entre personagens que nunca pensávamos que veríamos juntos. Thanos, Capitão Bretanha e Maximus são alguns dos participantes de uma trama que nos lembra, a todo momento, que a base de sustentação da “Casa das Ideias” não reside apenas nos medalhões. É claro que se trata de uma história em que os heróis têm de salvar o mundo contando com chances mínimas de êxito. Mas tudo é contado de modo tão saboroso, com utilização de personagens em situações tão bizarras quanto inusitadas, que vale a pena. Sim, teremos a presença obrigatória da Santíssima Trindade das Guerras Secretas, Homem Molecular, Dr. Destino e Beyonder(s), mas não se preocupe com isso. Ele só estão ali para honrar tradição do nome do gibi. Quanto ao enredo em si, não esquente a cabeça com seu aparente hermetismo. Caia de boca, sem medo de indigestão, nesse banquete preparado por e para marvetes hardcore. (MMA)

2 -TALCO DE VIDRO – Marcelo Quintanilha (Veneta, 2015): O que mais dizer sobre o gibi que sacramentou a entrada do niteroiense Marcelo Quintanilha no panteão dos monstros sagrados do quadrinho nacional? Muito já foi falado, inclusive AQUI na Raio Laser. Bem, ao invés de enumerar novamente os méritos desta graphic novel de tirar o chapéu, talvez seja mais interessante tentar compreender o que o seu lançamento significou. Para mim, Talco de vidro é o sinal dos tempos de que o quadrinho brasileiro independente, embora ainda longe de ser um fenômeno de vendas, já conseguiu amealhar um público cativo e fiel. Acho bastante difícil que os autores nacionais já possam viver exclusivamente do trabalho com quadrinhos, mas já deve ser reconfortante saber que o fruto de seu trabalho não será destinado ao ostracismo imediato como ocorria em épocas passadas. Agora sobre a HQ em si, creio que a melhor definição para expressar o que senti após a leitura seja a sensação de ter levado um chute no estômago. Quintanilha conseguiu construir uma história envolvente e enigmática que nos faz duvidar, a cada momento, se estamos diante da trama principal ou de um pano de fundo que só derrubará, no desfecho, todas as convicções que tínhamos. A sensação principal durante a leitura é de incômodo, como se algo não se encaixasse, numa espécie de mensagem subliminar que, impiedosamente, martela nossa mente.

A única certeza, aqui, são as incertezas. (MMA)

3 -MÁGICO VENTO – Gianfranco Manfredi e vários (Sergio Bonelli/Mythos Editora, 2002): 2016 foi o ano em que passei a dar mais atenção ao quadrinho italiano. E calhou que decidi começar pelo já clássico Mágico Vento, criado e escrito por Gianfranco Manfredi. Foi amor à primeira leitura. Belamente ilustrado – em geral – por grandes artistas do porte de Ivo Milazzo, Goran Parlov e Pasquale Frisenda, o fumetti

durou 131 edições, integralmente publicadas no Brasil. Na série, salta aos olhos a profundidade da pesquisa histórica realizada durante a elaboração do roteiro. Cada edição conta com ao menos uma página de texto com detalhes sobre o contexto histórico, personagens, fatos e lugares presentes na narrativa.

Não é mistério para ninguém que os italianos são obcecados pelo faroeste estadunidense. Mas o autor demonstra ter levado essa paixão às últimas consequências. Manfredi não economiza esforços para entregar ao leitor um gibi com doses maciças de realismo factual, meticulosamente investigado. Isso não quer dizer que não haja espaço para a ficção, muito pelo contrário. Amparado em bases sólidas de pesquisa, o autor se permite viajar pelos mitos americanos, seja ao dar vida a terríveis lendas e monstros do imaginário indígena, seja ao recriar fatos envolvendo pessoas que realmente existiram na segunda metade do século XIX. Localizado historicamente no pós Guerra Civil norte-americano, Mágico vento

conta a saga de Ned Ellis, soldado que, após um acidente, vira a casaca e passa a apoiar a causa indígena. Mas aqui não se trata do velho maniqueísmo do índio bonzinho contra o homem branco malvado. A palheta de cores do autor vai muito além do preto e do branco e contém, certamente, muito mais que cinquenta tons de cinza. Intrincado, envolvente, violento. Sejam bem vindos ao mundo de Mágico vento. (MMA)

4 -HABIBI – Craig Thompson (Cia das Letras, 2012): Craig Thompson já nos havia deixado em frangalhos com o novelão Retalhos, lançado no Brasil em 2009, mas agora ele resolveu apelar. Usando como pano de fundo a relação entre uma cortesã e um garoto fugitivo em um país muçulmano fictício, porém muito real, o autor constrói, em tons grandiloquentes - mas nunca pretensiosos – uma epopeia que promete sensibilizar até os corações mais embrutecidos. Habibi é puro sentimento e poesia. Utilizando-se das peculiaridades do idioma árabe, dos versos do Corão e da estética muçulmana, Thompson conseguiu gestar um visual único para sua HQ. E o gibi também impressiona pelo ritmo e fluidez. Há momentos em que não sabemos se é o argumento que orienta os desenhos ou o contrário. Mas não há motivos para se pensar nisso.

Habibi é mais emoção que racionalização. Sem delírios messiânicos, o autor faz um verdadeiro sobrevoo pela história da humanidade, mostrando como a desesperança dos tempos antigos ainda continua, infelizmente, bastante atual. Como um timoneiro, Thompson nos guia pelo melhor e pelo pior da alma humana, sem deixar, entretanto, que abandonemos a embarcação.

Sem entrar em spoilers, não posso deixar de mencionar a maldade que o autor faz com um dos protagonistas. Eis uma cena que ficará para sempre gravada na minha memória. É como diria Januário de Oliveira, ex-narrador esportivo: Crueeel! Muito cruel esse Sr. Thompson... (MMA)

5 -CHARLES MILLER: LES MOUETTES MEURENT À L'AUBE (As gaivotas morrem no alvorecer) - Jan Bucquoy e Jean-Louis Le Hir (Ansaldi Éditions, 1986): Qualquer semelhança com o pioneiro do futebol brasileiro é mera coincidência. O Charles Miller deste gibi é não tem quaisquer habilidades com os pés, nem ganha a vida dentro das quatro linhas. Funcionário de uma empresa de investigação particular, Miller é a personificação do detetive noir: irônico, sedutor e boêmio. Todos os elementos esperados de uma história com um personagem do tipo estão aqui. A femme fatale, o crime misterioso, o assassinato brutal. Fazendo uma análise fria, esta HQ não tem nada de especial, e tampouco se revela um divisor de águas nos quadrinhos do tipo romance policial. Coloquei ela nos meus dez mais em razão da eficiência dos autores em contar um história envolvente, repleta de suspense, que deixa os leitores salivando pela próxima edição, que jamais virá. Sim, este quadrinho teve vida curta e é filho único, mas não se preocupe. Aqui temos começo, meio e fim, como de praxe no mercado europeu. Nesta edição, Jan Bucquoy e Jean-Louis Le Hir conseguiram mostrar que histórias do gênero detetivesco, embora bastante popularizadas (especialmente na literatura franco-belga), ainda têm muita lenha para queimar. (MMA)

6 -THE HERO. VOLUMES 1 e 2 – David Rubín (Dark Horse, 2015): Neste reboot do mito de Héracles (leia mais sobre isso AQUI), David Rubin disseca o personagem sem dó nem piedade, não se importando se o sangue vai respingar no rosto do leitor. E a autópsia – embora o semideus ainda esteja vivo em nosso imaginário – do mito é realizada com bastante êxito. Utilizando-se de uma técnica narrativa dinâmica, que mistura mangá com Jack Kirby, o criador/escritor/desenhista, deu à luz um gibi peculiar pela sua intensidade e crueza. Certamente, se continuar a receber releituras tão inspiradas quanto esta, a lenda de Hércules continuará atraindo o interesse de velhas e novas gerações pelos séculos que virão. (MMA)

7 -XIII- W. Vance e J. Van Hamme (Dargaud/Panini, 2006): Nada é o que parece ser no gibi de W. Vance e J. Van Hamme. A história do homem amnésico que desperta com o numeral XIII tatuado acima de sua clavícula agradará aos fãs de histórias de espionagem ao brindá-los com altas doses de intriga internacional e reviravoltas. Pode-se dizer, com certo tom de maldade, que XIII é uma espécie de James Bond feito do jeito certo. Habilmente, o escritor J. Van Hamme vai costurando a sua teia de acontecimentos, que lançam muitas dúvidas sobre a real identidade do protagonista. XIII se vê, então, no centro de um sem número de conspirações, muitas delas relacionadas ao assassinato do presidente Kennedy. Abandonado à própria sorte, passa a ter contato com uma série de pessoas – amigos ou inimigos, não se sabe – que lhe fornecem dicas sobre seu passado. O problema é que tais flashbacks mais confundem que explicam. Fica sempre no ar se seriam informações autênticas ou apenas pistas falsas para convencer XIII, que - é claro - é um agente secreto altamente fodástico, recurso humano indispensável para qualquer grupo de inteligência que se preze. Uma pena que, no Brasil, ainda não tenha sido publicado o desfecho da história, sendo que falta APENAS UMA edição para fechar o ciclo da série original. Alô Panini, tende piedade de nós! (MMA)

8 - SANDMAN OVERTURE HC – Neil Gaiman e J.H. Williams III (DC/Vertigo, 2015): Após um hiato de dezessete anos do término da série original, Neil Gaiman volta para o personagem que o consagrou, afinal todos temos que pagar as contas, certo? Posso estar sendo ingênuo, mas não acho que seja o caso desta minissérie em 6 partes, que conta uma história do Mestre dos Sonhos ocorrida antes dos eventos mostrados em Sandman # 1, de1989. Por que acho isso? Simples. Dinheiro não deve ser problema para o escritor britânico. Sucesso editorial, é como se quase tudo que ele escrevesse já estivesse destinado a se tornar um novo filme ou série de TV. Sem falar na bolada que ele deve ter recebido da Marvel com a venda da personagem Angela, que ele conseguiu recuperar das garras de Todd McFarlane, após uma batalha judicial que se arrastou por séculos. Além disso, a aventura narrada nesta prequel já era pedra cantada há muito tempo, desde o lançamento de Sandman #1, em que Morpheus havia sido capturado após uma longa e debilitante jornada, aventura finalmente contada neste Overture. Enfim, Gaiman não precisaria voltar para o personagem se não quisesse, já que largou o dito cujo nos píncaros da glória. Um retorno extemporâneo, portanto, poderia deixar uma marca indesejada na carreira do escritor, que não tinha razão para retornar, a não ser que tivesse algo a contar. Dito e feito. E Gaiman não voltou de qualquer jeito. Trouxe consigo um ilustrador de mão cheia, o venerado J.H. Williams III, que já tinha botado pra quebrar em séries como Promethea e Seven Soldiers of Victory. Bem, o que dizer do gibi em si? Magia, pura magia. Sabe aquela sensação de voltar aos momentos mais preciosos da infância? É mais ou menos por aí. Ler Sandman Overture é como se pudéssemos, com a cabeça de hoje, voltar pro segundo grau e rever velhos amigos e conhecidos. É como comer o manjar dos deuses e suspirar fundo por saber que, a cada colherada, estamos chegando mais próximos de seu final. 

Amarrando algumas pontas soltas da série original e fazendo revelações surpreendentes, Gaiman conseguiu manter o padrão esperado para um título de prestígio mundial. E J.H. Williams III, que não é bobo nem nada, aproveitou para caprichar ainda mais na arte. Afinal, ao ser escalado para participar de projeto de tal envergadura, não podia fazer diferente. Habilidoso e inventivo como poucos, Williams torna-se, definitivamente, uma lenda viva das HQs. E aqui fica a resposta para a pergunta de como teria sido a série original se tivéssemos tido maior regularidade na qualidade dos artistas. Ainda mais genial. (MMA)

9 - FACE OCULTA.  VOLUME 1 – Gianfranco Manfredi e vários (Sergio Bonelli/Panini, 2016): Mais um quadrinho italiano no meu Top Ten. Puts, tenho que conhecer mais títulos da Sergio Bonelli. Ainda falta descobrir muita coisa e fico só salivando em pensar quando poderei realmente entrar de cabeça na grande variedade de opções publicadas pela editora. Para facilitar minha vida, alguns dos gibis vêm sendo publicados no Brasil com certa regularidade pela Mythos Editora. E as opções não param de crescer com a decisão da Panini de também lançar material italiano no Brasil. E o escolhido desta vez foi Face Oculta, de Gianfranco Manfredi, argumentista de Mágico Vento. Na verdade, Face Oculta já havia tido 2 edições lançadas no Brasil no final de 2012, mas a minissérie, de 14 números, havia sido interrompida. Em 2016 foi publicado um volume de 380 páginas, contendo as quatro primeiras histórias. Oremos para que, desta vez, o gibi seja publicado na íntegra. Como de costume, os fumettis da Bonelli primam pela profundidade da pesquisa histórica e aqui não é diferente. O enredo tem como contexto a colonização italiana na Etiópia e mistura fatos reais e fictícios para narrar acontecimentos envolvendo Ugo Pastore, filho de um representante comercial com interesses no continente africano. Questionador e inconformista, o jovem acaba indo parar na parte mais barra pesada da capital etíope, ocasião em que esbarra com uma espécie de libertador/messias do povo etíope, o tal Face Oculta do título.

As reais motivações e identidade deste último, entretanto, permanecerão um mistério. As repercussões deste encontro farão com que Pastore busque respostas em diferentes partes da Etiópia e da Itália do século XIX. (MMA)

10 - DREADSTAR: ODISSEIA DA METAMORFOSE – Jim Starlin (Devir, 2016): Dreadstar sempre foi um de meus personagens favoritos. Fui fisgado já na época da finada Epic Marvel, lançada no Brasil em 1985. Já sabia que Jim Starlin era o pica das galáxias quando o assunto eram sagas cósmicas, como ficou claro durante sua passagem por títulos como Capitão Marvel e Warlock. A diferença em Dreadstar, entretanto, era que o universo em que se passavam as aventuras foi todo criado por Starlin. Assim, ele podia fazer o que quisesse com todos seus brinquedinhos. Podia pirar geral sem ter de se submeter aos ditames de editores malas e do famigerado Comics Code. Lembrando aqui que a linha Epic Comics da Marvel – selo do qual o gibi do Dreadstar fazia parte - estava fora do alcance dos censores. Além disso, os direitos do personagem lhe pertenciam e se ele quisesse levar tudo para outra editora, como fez alguns anos mais tarde, não teria que dar satisfações para ninguém. Por todas estas razões, talvez tenhamos encontrado Starlin em seu auge. Livre das limitações da maioria dos criadores da época e com bagagem suficiente para criar seu universo independente, ele se sentiu livre para botar pra quebrar. E foi o que ele fez. Ciente de sua habilidade para construir belas epopeias espaciais, ele parece ter reservado o filé para a saga de Vanth Dreadstar. Até encerrar sua participação no gibi, após 40 números da série mensal e de algumas edições especiais, Starlin deixou um rico legado para os fãs do gênero que, na minha modesta opinião, não foi superado por nenhum outro escritor de quadrinhos. Mas bem, toda saga tem um começo e a gênese de Dreadstar está aqui, neste maravilhoso Odisséia da Metamorfose, que coleciona as primeiras aventuras do guerreiro das estrelas, publicadas originalmente em Epic Illustrated, revista de antologias da Marvel. Ouso dizer que neste gibi a arte de Starlin atingiu seu zênite. Buscando ultrapassar seus limites como desenhista, ele passou a fazer trabalhos coloridos sobre a arte em traço. E o resultado ficou lindo de doer. Em Odisseia da Metamorfose, Dreadstar é recrutado para lutar em um conflito espacial diante do qual não é possível permanecer indiferente. Starlin, veterano da guerra do Vietnã, utilizou o gibi para exorcizar seus demônios pessoais e retratar os horrores com os quais se deparou, sem medo de criticar as táticas militares norte-americanas. Numa guerra em que foi comum destruir vilas inteiras – como ocorreu no país asiático – sob a justificativa de que era a melhor forma de protegê-las do inimigo, Starlin pergunta o que poderia acontecer se a vila em questão fosse a própria galáxia. (MMA)

The Hero: o Héracles mitológico vai para o divã

por Marcos Maciel de Almeida

Era para ser só mais uma leitura rapidinha. Quando os dois volumes de The Hero caíram na minha mão, dei uma passada de olhos e pensei “ah, acabo isso aqui de um dia pro outro”. Ledo engano. Havia algo mais por trás da leveza dos desenhos e da fluidez das páginas. Aos poucos fui mergulhando numa história cuidadosamente concebida e ilustrada, que me capturou de um modo que há tempos não acontecia. Parei tudo e deixei para recomeçar outro dia, desta vez levando a sério a empreitada. E como valeu a pena.

O herói do título é o Héracles (Hércules) da mitologia grega. Famoso pela extraordinária força física e por suas fabulosas aventuras, o semideus ganha uma nova versão, concebida pelo espanhol David Rubín. O personagem é retomado com suas características clássicas, mas repaginado para os tempos modernos. Pode-se dizer que é uma versão descolada, sem os atributos negativos que este adjetivo possa trazer. 

Mas esta descrição é demasiado terrena. Héracles não está nem aí para ela. Ele paira acima de nosso vocabulário humano. Depois que nossa geração for embora, ele continuará no imaginário coletivo. Nós pereceremos. Ele permanecerá. Esta sensação de grandiosidade que o autor conseguiu introduzir na obra talvez seja um dos grandes méritos da HQ.

A dicotomia Herói x Héracles permeia toda a trama. Estamos diante do herói que abnegadamente tenta ajudar os fracos e oprimidos ou do filho de Zeus que apenas “bate o ponto” na função de herói para ajudar a propagar sua lenda? Quem veio antes, o herói ou o semideus? Este dilema Tostines não será facilmente resolvido. Não é à toa que temos diversas aparições dos super-heróis do universo DC volta e meia no gibi. Os últimos, calouros em nossa mitologia ocidental, aparecem para atormentar o protagonista, sempre que possível. São a lembrança constante de que, por mais forte que ele seja, não conseguirá escapar do destino que lhe foi traçado. E quiçá este seja o maior ponto fraco de todos os super-heróis. Embora eternos, sempre precisarão da presença dos humanos que os manterão vivos em sua imaginação. A gratidão e a admiração do público serão sempre o alimento indispensável para garantir sua imortalidade. Eis aqui novo dilema, que não conseguirá definir, de modo claro, quem inspira quem. E aqui não se trata de retroalimentação. É puro mutualismo. 

Durante a leitura me perguntei se faria sentido imaginar os atuais super-heróis como os titãs da era moderna. Digo isso porque quem mais poderia substituir as “criaturas divinas, dotadas de força incrível, que comandaram a Era Dourada (Golden Age)?” Sim, sei que forcei a barra, mas não deixa de ser simbólico que as Eras do Homem segundo a mitologia grega sejam batizadas de Eras de Ouro, Prata, Bronze e Heroica (!). Parece familiar, não?

Rubín sugere várias facetas para nos ajudar a compreender do que Héracles é feito. Hétero? Gay? Bi? Mutante? Herói? Ou apenas um playboy fanfarrão? No fim das contas, o que o autor quer dizer é que estes termos não têm a menor importância. Héracles está acima de rótulos humanos. O personagem é tão transcendente que não pode ser medido pela régua dos mortais, afinal ele é Héracles, filho de Zeus.  

Os elementos que construíram o gibi clássico do super-herói estão todos ali. O autor ticou todos os itens do checklist. O arqui-inimigo que sempre fracassará, a tragédia familiar que motivará o herói, a tensão homoerótica com o sidekick. Ah, e ele tem os seus buddies heroísticos, também, como não poderia deixar de ser. Aliás, a sequência com Teseu, que tem a presença do nêmesis Minotauro,é um dos grandes momentos do gibi. 

Iconoclasta, Rubín não tem pudores em dissecar seu protagonista. O autor corta fundo na carne do herói com um bisturi bem afiado e se livra dos órgãos que encontra, sem conseguir colocar tudo de volta, como um mecânico que, ao remontar o motor do veículo, percebe que há várias peças sobrando. E o que restou não pode simplesmente ser varrido para debaixo do tapete. Mas o prazer sádico do autor não termina aí. Ele não vai parar de revirar os restos (i)mortais da lenda enquanto eles não forem inteiramente deglutidos pelo leitor. 

E qual o melhor momento para desvendar quem é nosso herói? Quando ele não está sendo herói, é claro. Nos momentos em que ele larga o batente e tenta tirar uma folga como todo filho de Zeus. Só que estes instantes – nos quais as divindades mostram seu lado humano - não há espaço para a mera sugestão. Os bastidores mais íntimos do protagonista são revelados de forma nua e – frequentemente – brutal.

O clima de tensão da narrativa combinou muito bem com a arte aparentemente leve de Rubín. Mas não se engane aqui, meu amigo. A qualidade dos desenhos e das cores é nada menos que espetacular. Uma olhada rápida remete ao Samurai Jack de Genndy Tartakovsky - e outros desenhos do Cartoon Network -, passando pelo recém falecido – e genial – Darwyn Cooke, desembocando no rei Jack Kirby. E Rubín conseguiu misturar todos estas influências para se tornar um artista único. O resultado é de tirar o fôlego. Tem de tudo ali. Sequências psicodélicas, utilização de retícula, monstros infernais, plasticidade, diagramação inovadora, cenas de ação matadoras, etc. Rubín não economizou na criatividade. Esmerou-se na tarefa. E se saiu muito bem. 

Uma boa sacada do autor foi introduzir elementos de nossa modernidade na história. Sim, Héracles vai cumprir seus compromissos de herói, mas não deixará de dar umas voltinhas de moto ou curtir seu Ipod. 

Embora linear, contando a trajetória do herói da infância até a velhice, passando por capítulos que narram cada um dos doze trabalhos, a história permite perder-se em deliciosos devaneios. Estas quebras na narrativa, permeadas por sonhos e delírios, são mais um presente oferecido pelo autor. Nestas passagens ele abre as portas de outras realidades, nos convidando a ler o gibi dentro do gibi. E aqui faço um alerta: a viagem pode ser sem volta.

O mito de Héracles continuará inspirando muitas histórias nas diversas mídias do entretenimento. E Rubín, certamente, deu sua parcela de contribuição para a longevidade do mito em sua nova reencarnação, tornando-o ainda maior. 

Lançados originalmente na Espanha nos anos de 2011 e 2012, pela Astiberri Ediciones, os dois volumes da série foram publicados nos Estados Unidos pela DarkHorse em 2015. 

O silêncio à espreita: sobre o universo das HQs mudas

por Ciro Inácio Marcondes*

Em uma das tiras de quase gentil surrealismo publicadas por Rafael Sica em Ordinário (2010), vemos enfileirados horizontalmente quatro requadros muito parecidos entre si: trata-se da imagem de uma calçada. À esquerda, um homem está parado ao lado de uma placa. Ao fundo vemos outro homem, de chapéu, se aproximar, tendo um poste como ponto de fuga. A cada quadro, o homem de chapéu se aproxima mais. Porém, estranhamente, quando chegamos ao terceiro quadro da tira, notamos algo estranho. Na medida em que se aproxima de um primeiro plano do requadro, ao contrário do que mandariam as leis da perspectiva, o homem de chapéu não “cresce”, aos olhos do leitor e do outro personagem. Ele continua pequenininho. Quando finalmente passa pelo homem parado na frente do estabelecimento, o homem de chapéu continua minúsculo, para o espanto do primeiro e do leitor.

A despeito do nonsense da tira, fica evidente, quando analisamos outras tiras de Sica, que o quadrinista está elaborando algo sobre as convenções de representação das propriedades do espaço a partir de relações exclusivas entre as imagens, sem usar falas, letreiros, balões ou textos de quaisquer tipos. Vejamos: em outra tira, um personagem está sempre escondido atrás de elementos dos cenários (espaço); em outra, um personagem olha seu outro eu num reflexo na calçada e, de repente, mergulha nela e os dois somem; em ainda outra, a sombra de um personagem parado na calçada cresce desproporcionalmente até que sai da parede e passa a carregá-lo. Os exemplos são inúmeros, mas a sensação que temos é a de um derretimento completo das funções ordenadoras das coordenadas espaciais de uma narrativa em função de uma libertação das imagens para reformular estes mesmos espaços dentro de leis exclusivas das próprias imagens. Quer dizer: sem palavras para ancorá-las em um discurso simbólico, as imagens em sequência podem verter tempo e espaço numa coisa só, transformando a HQ em um meio de constante e interminável paradoxo.

Isso me faz lembrar que, ao contrário do cinema, em que o alcance do espaço é determinado pela passagem do tempo, nos quadrinhos o tempo é que é sugerido espacialmente, já que, sem uma cronometria dada, eles precisam dispor de inúmeros recursos (requadros, sarjetas, balões, ícones, letreiros, etc.) para impor um ritmo de leitura, em última instância sempre subjetivo. A duração, porém, para uma HQ, depende da qualidade do espaço, da ordem dos balões, dos arranjos dos requadros, de seus tamanhos, da proximidade entre eles. Em uma história em quadrinhos muda, entretanto, muitos destes marcadores temporais, como os balões e os letreiros, desaparecem, dando às imagens a oportunidade de representarem estes elementos segundo suas próprias estranhas contingências, gerando os paradoxos espaciais dos quadrinhos de Sica.

Ora, é muito difícil medir ou quantificar a extensão de interinfluência entre palavra e imagem em mídias mistas como os quadrinhos. Não se pode afirmar categoricamente que um ou outro dominam a percepção, ou que há uma relação de submissão, ou que um código concorre com o outro. Palavras são signos arbitrários, inteiramente conceituais, mas não deixam de ser imagens (especialmente em uma HQ) ou de produzir polissemia. Imagens, por sua vez, anticonceituais, pontuam um momento específico no tempo e no espaço, e revelam tudo e nada ao mesmo tempo sobre seu conteúdo. A imagem, já dizia Platão, é falsificação de uma falsificação, e deve-se desconfiar dela. Por outro lado, o ato de apreciar uma imagem depende de uma redução direta, uma reprodução dos próprios fenômenos da realidade, e neste caso não necessitamos de qualquer contexto para ela.

Para um filósofo como Bergson, todo o mundo é constituído de imagens, e, quando apreciamos a beleza de uma árvore, apreciamos tão-somente a sua imagem. E essa beleza reverbera no belo natural de Kant: agrada sem pedir qualquer coisa em troca.

Extraídas as palavras de uma história em quadrinhos muda sem palavras, qual é a imagem exata que resta? Quais são essas palavras extirpadas? Em uma excelente história publicada por Watson Portela em suas Paralelas nos anos 1980 (republicada pela Devir em 2015) chamada “Voo livre 9”, temos acesso a um mundo de fantasia futurista em que somos introduzidos a vários personagens com balões de pensamento em branco. De repente, temos acesso a um casal cujos mesmo balões são preenchidos por pedaços de frases incompletas, mas que podemos perceber, pela seleção de palavras, que se tratam se pensamentos politicamente subversivos. Eles passam a se expressar por balões de fala, nos mesmos termos, cada vez mais entusiasmadamente. De repente, seus balões ficam pretos, eles são fuzilados e, no último requadro da história, os jovens heróis jazem no chão enquanto o resto da população segue a vida com seus pensamentos em branco.

Esta história é uma clara alegoria à perda da liberdade de expressão e a sociedades fascistas, mas o que nos interessa aqui é precisamente uma redução cada vez maior do campo da palavra, em uma HQ praticamente muda, a partir de seu ícone mais representativo, o balão. Ora, aqui o balão é restringido ao seu potencial imagético. Um balão em branco, em preto ou com falas desconexas perde o primado comunicacional do discurso simbólico para se misturar ao fluxo constante e metamórfico do código das imagens. Ao descer um grau na capacidade comunicativa do balão, transformando-o em pura imagem, Watson Portela está se aproximando daquilo que Moebius realizou, de maneira pioneira, com Arzach entre 1975 e 1976. O famoso quadrinista francês, neste caso, ao publicar quatro histórias (quase) sem falas, desenvolvidas no modo de “escrita automática” (ou seja: inventando os enredos na medida em que desenhava), fez escola ao apresentar pequenos fios narrativos sem contexto, mas com elementos visuais comuns, que libertam o leitor para uma leitura puramente erótica (no sentido da volúpia do olhar), de puro deleite visual, dos quadrinhos. Associado, obviamente, ao surrealismo e ao primado de uma razão onírica, o que Moebius fez foi encaminhar as imagens para se modelarem em si próprias, como em um jogo estético de rei Midas em que cada imagem, ao tocar qualquer coisa, a transforma também em imagem.

Em Arzach, porém, assim como em “Voo livre 9”, há um jogo que inclui o “rebaixamento” da palavra (retirada de seu “pedestal conceitual”) a um patamar icônico, visual. Moebius inicia cada uma das quatro histórias de Arzach com a própria palavra “Arzach” inserida mais ou menos dentro do campo diegético, ou seja, dentro do universo que aquela ficção pretende representar. E mais: a cada versão, ele grafa a palavra diferentemente (“Harzak”, por exemplo). A palavra “Arzach”, como é sabido, não significa nada. Assim como Watson Portela esvazia os balões, Moebius aqui faz questão de esvaziar toda e qualquer palavra, transformando-a em signo vazio, ou melhor, signo puro. Após a quarta (mais delirante e fragmentária) história, finalmente, no último quadro, um balão de fala é inserido e um personagem profere, pela primeira vez, uma palavra, que não poderia ser outra: “Arzach” ressurge, então, no contexto de que a palavra só pode ser proferida após passar pelo caos desordenado da pura narrativa imagética.

Uma história em quadrinhos muda pode ser, portanto, um desdobramento das possibilidades espaciais do meio (Sica), um fluxo alucinatório de imagens livres (Moebius), e até uma reflexão sobre o próprio caráter icônico da palavra (Portela). O modo como imagens desancoradas das palavras atuam em série está, geralmente, dentro das possibilidades daquilo que o teórico Thierry Groensteen chamou de artrologia, ou seja, a maneira com que as imagens nos requadros de uma HQ se solidarizam e se reúnem em um jogo de repetições e afecções entre estas mesmas imagens. Sem a palavra para organizar a engenharia destas imagens que declinam umas nas outras, uma HQ se torna um campo onde figuras de linguagem típicas da poesia se desenrolam em terreno virgem, fazendo destas histórias explorações agudas de formas apenas pontualmente utilizadas em quadrinhos falados. São rimas visuais, metonímias, aliterações. O quadrinho mudo se torna não apenas campo da imagem e dos fenômenos que se desdobram nela, mas também dos caminhos que a linguagem toma quando totalmente desamarrada do simbólico. Cabe ver dois casos e suas mutações:

Metonímia

O sistema (1996), de Peter Kuper, tornou-se um clássico do quadrinho mudo por elaborar com perfeição a fórmula do contato metonímico. Aqui, dezenas de personagens diferentes (um mendigo, uma stripper, um velho detetive, um policial corrupto, um skatista, um empresário, entre muitos outros) têm suas histórias entrecruzadas por pequenos detalhes visuais que vão se encontrando e se confundindo na medida em que percebemos, no final das contas, que a história a ser contada é a de todo um sistema socioeconômico que envolve todos os aspectos da realidade: de uma pichação na parede às notas de dinheiro se esvaindo para todos os lados, até a semelhança física entre um homem e um trem de metrô, todo o mundo visual de O sistema se submete à engenharia invisível que constrói nosso campo de imagens, ao mesmo tempo em que discursa sobre os filigranas das relações de poder entre as pessoas. É como se Kuper pensasse que a interface visual do mundo é equivalente à interface socioeconômica, e o sistema de imagens que ele constrói por meio da metonímia se replica, de maneira fractal, em tudo o que nos cerca.

A metonímia é a figurada generalização (o famoso “parte pelo todo”), e não surpreende que um recurso assim gere histórias de grande amplitude interpretativa, como é o caso da obra de Kuper. De alguma forma, o encadeamento narrativo por meio destes pontos nodais (as metonímias) fortalece o engenho narrativo entre imagens, ao contrário do fluxo psicótico proposto por Moebius em Arzach. Porém, mesmo estando em lados opostos no espectro da artrologia, Arzach e O sistema, por serem HQs mudas, compartilham o gosto pela ambição do altamente generalizante, daquilo que envolve o enorme raio de atuação das imagens, da incapacidade de invadirmos o mundo dos personagens em suas falas e pensamentos. Temos de nos contentar, em ambos os casos, com a drástica ambiguidade das imagens.

Uma abordagem ligeiramente diferente da metonímia no quadrinho mudo ocorre em 73304-23-4153-6-96-8, de Thomas Ott (2008). De verniz expressionista e possivelmente influenciada por Kuper, esta HQ conta a história absurda de um homem que toma contato com um número (o do título) que passa a aparecer, em sua vida, sempre na mesma sequência, de maneira a se tornar previsível. Soturna, a HQ utiliza os números da série como pontos de contato metonímico que vão empurrando, ao mesmo tempo, o leitor e seu protagonista a uma jornada de ambição, sexo e loucura. A ordem irracional dos números acaba se aproveitando da vasta polissemia das imagens para instaurar sua própria lógica obtusa. Diferentemente de O sistema, em que a aleatoriedade parece pertencer a algum algorítimo que programa a realidade (como se fosse um caos organizado), em 73304-23-4153-6-96-8 a aleatoriedade é a única função a que os personagens se submetem, levando a um desfecho quase que naturalmente mergulhado no surrealismo. Mais uma vez, porém, diferente do surrealismo automático de Moebius, Thomas Ott cria seu universo de pesadelo a partir de uma programação perturbada, de uma metonímia disfuncional e desgarrada. Neste caso, o ponto de contato entre elementos imagéticos semelhantes (os números) se torna o único dispositivo gráfico que impulsiona a história para frente, levando a metonímia a um esvaziamento quase místico (diria jungiano), tal qual a robusta apropriação da palavra pelas imagens em Arzach.

Aliteração

Em Ordinário, Rafael Sica não apenas se vale de praticamente todos os recursos citados (sempre de maneira econômica e otimizada), mas faz questão de que cada tira seja um modelo para a própria aplicação do recurso. Sua produção de alguma forma ecoa nas longínquas tiras experimentais Polly and her Pals ou Gasoline Alley, que não raro realizavam séries mudas. A aliteração ou reprise, por exemplo, aparece em uma tira de Sica com quatro requadros em que vemos um mesmo cara solitário sentado, na mesma posição e com idênticas feições, em quatro cenários diferentes: um bar, uma mesa na cozinha, uma festa no escritório, um jardim de infância. A repetição, característica da aliteração, neste caso, não ocorre no cenário (como é o caso da maioria das aliterações em HQ), mas apenas no personagem, que, como um tropo visual desencaixado de contexto, vai sendo inserido em ambientes muito diferentes para demonstrar sua inexorável solidão.

E é o aproveitamento destes tropos visuais que faz uma HQ muda ser tão afeita a este recurso, já que, quando há palavras, elas podem também cumprir a função invisível, de preencher os espaços não-visualizados (extra-campo), da sarjeta. Assim, a HQ muda parece precisar mapear mais o espaço, tateá-lo com mais cuidado, geralmente com a intenção de não provocar rupturas totalmente ilógicas ou violentas. Mesmo assim, algo radical como Arzach não possui esta preocupação. Em sua última história os quadros já surgem como praticamente aleatórios, mas isso se dá devido à exploração do caráter inconclusivo das imagens em si. Quadrinhos mais detalhistas como O sistema, 73304-23-4153-6-96-8 ou Ordinário precisam se valer mais deste recurso para que a produção de sentido seja possível.

A utilização da aliteração pode ser pontual, portanto, no sentido de atomizar o tempo de percepção das ações, como ocorre frequentemente com as HQs mudas de Gustavo Duarte. Na segunda página de (2009), vemos três requadros de seu protagonista, em contracampo, sentado em frente à TV. Os três requadros são praticamente idênticos (deflagrando a aliteração), com pequenas variações nas expressões e movimentos do personagem. Percebemos suas reações à TV e à passagem do tempo, indeterminada, mas bem enquadrada pela aliteração. Se, na tira de Sica, o que muda é o cenário e longos períodos de tempo são sugeridos entre os quadros (e até certa atemporalidade), no caso de o que muda é justamente o personagem (mantendo-se estático o cenário), com sutileza o suficiente para percebermos que a passagem temporal foi mínima. São usos, portanto, inversos de um mesmo recurso, provocando efeitos totalmente opostos.

Uma HQ pode ser baseada praticamente inteira na aliteração. Em 2009 o quadrinista australiano Nathan Jurevicius lançou a versão em quadrinhos do game Scarygirl, e, por trás das páginas psicodélicas ilustradas digitalmente, o que parece ser um exercício estéril de adaptação da funcionalidade do jogo se transforma, na verdade, em um fértil exercício de aliteração.

Scarygirl é praticamente inteiro baseado neste recurso, tendo páginas e páginas repletas de micro-ações detalhadas em minúcias de ínfima temporalidade. Neste caso, mais do que nunca, o uso de uma abordagem espacial meticulosa somado à precisa inserção da sarjeta leva a um controle do tempo que dá conta de intervalos muito pequenos, mas não perde a “beleza natural” das imagens. Engenhosamente narrativa, esta HQ muda é a prova de que a extração da palavra nos quadrinhos pode levar tanto a uma obsessão com a repetição como única solução para o ato de narrar, quanto a uma dissolução deste modelo. A aliteração pode ser usada para ordenar o campo das imagens puras ou para escancarar completamente sua incapacidade de ordenação.

Não à toa, Scarygirl faz, assim como “Voo livre 9”, uso intenso da iconização do balão. Sonhos, diálogos e pensamentos da garotinha do pântano e seus amigos são representados por outras imagens que aparecem dentro dos balões. Neste caso, o recurso não é tão arrojado quanto na HQ de Portela, mas exemplifica bem o metamorfosear das imagens em si próprias. A evasão ao sonho (imagem de um mundo dentro do nosso) não é incomum dentro do mundo das HQs mudas.

Pinóquio (2011), de Winshluss, faz uso tão intenso da iconização dos balões que contextos inteiros, de incrível complexidade, são mostrados dentro de balões gigantes que ocupam lindas splash pages.

Por fim, como conclusão, a história que talvez seja a obra definitiva de Berardi e Milazzo – a investida de Ken Parker na HQ muda –  “Os cervos” (1984), pode servir de guarda-chuva para todas as possibilidades mencionadas. Aqui, sem palavras, vislumbramos uma paisagem gelada e inóspita em que o herói do fumetti, para sobreviver, acerta a perna de um cervo com um tiro. Com a aproximação dos filhotes desta mãe agora desguarnecida, Ken Parker, tomado pelo sentimento da pena, resolve passar semanas no ambiente selvagem com os animais para curar o animal que havia abatido. Berardi e Milazzo não apenas constroem um ambiente mudo em que a paisagem gelada, em guache, se torna tônica dominante, como transformam o recurso da aliteração em figura transcendental que reitera a eternidade da luta pela sobrevivência. As paisagens brancas são repetidas, os atos se tornam ritualísticos, o espaço na HQ parece uma eterna rima de si mesmo. A imagem acaba, então, se transformando em valise para o caçador primordial, do paleolítico, como demonstram as pinturas em Lascaux, Chauvet e Altamira, as primeiras histórias em quadrinhos mudas.

A metonímia também aparece amalgamada neste processo, quando cada animal, cada ação e cada aspecto do cenário se torna ponto nodal para o prosseguimento desta saga íntima de infinita precedência. Como Moebius, mas austero e sem a desviante lisérgica, os autores italianos projetam nesta história um dispositivo fractal que nos leva ao passado e ao futuro, num eterno retorno da imagem primordial. Nem mais aliteração ou metonímia, a imagem da HQ muda aqui se transforma, enfim, na figura de linguagem mestra, mãe de toda imagem: a metáfora.        

*Artigo originalmente publicado na Revista Antílope Nº 2

A trajetória da imagem de “Conan, o Bárbaro” em mídias diversas: da literatura pulp até os quadrinhos Marvel dos anos 70

por Marco Antonio Collares

A imagem de Conan na Weird Tales dos anos 1930

O personagem Conan foi publicado na revista pulpWeird Tales (Contos Estranhos) nos anos 1930. A revista normalmente publicava contos de detetives, de fantasia, terror, ocultismo, ficção científica, western e/ou suspense, possuindo um padrão de capa bastante característico se consideramos os tipos de narrativas em seu interior ou mesmo seu publico leitor, normalmente formado por homens jovens.

Narrativas com temas de ocultismo temperado com forte conteúdo sexual caracterizavam a maior parte dos contos da Weird Tales desde sua origem em março de 1923, possuindo escritores do porte de Robert E. Howard, famoso pelo subgênero literário conhecido como Sword and Sorcery, além de H.P Lovecraft, Robert Bloch e Clark Ashton Smith, todos eles com seus contos contra culturais sobre seitas arcanas secretas, mistérios míticos ou mesmo sobre criaturas demoníacas hibernando em lugares ermos da Terra, oriundas de mundos interiores ou extraterrestres.

A referida revista não era única no mercado estadunidense da época, concorrendo com diversas outras publicações pulps do porte de Amazing, Starling Stories, Thrilling Wonder Stories, Argosy, Battle Stories, Spicy Detetives Stories, Astouding Science Fiction, depois Ghost Stories, Tales of Magic and Mistery, Strange Tales of Mistery and Terror, entre outras, todas contendo contos enviados por autores freelancers ou mesmo fãs de narrativas regadas a um pseudo-realismo mesclado a temas de mistério, ocultismo, suspense, terror, ficção científica e fantasia.

Os contos pulps, ainda que considerados sinônimos de literatura de baixa qualidade entre os críticos literários da época, tiveram relativo sucesso no entre guerras e no pós Segunda Guerra Mundial, mais especificamente entre os anos de 1920-1950, principalmente diante de um público leitor masculino sedento por escapismo fantástico em meio à onda de violência urbana instigada pelo gangsterismo, pelo sentimento de crise da época da Grande Depressão, bem como pelos ultranacionalismos e totalitarismos de toda a espécie.

Esses contos ora concorreram com as primeiras tiras jornalísticas dos super-heróis, ora influenciaram as narrativas desses personagens fantásticos nas chamadas comic books, em seus momentos iniciais de veiculação e consolidação. Fora o peso que tiveram na carreira de nomes da literatura sci-fi do porte de Lester Dent, Isaac Asimov e Ray Bradbury.

As capas da Weird Tales, principalmente as com ilustrações de Margareth Brundage, chamavam a atenção dos leitores e críticos, sendo normalmente coloridas, padronizadas e com brochuras coladas de papelão, contendo temas apelativos de protagonistas masculinos ao lado de “mulheres sensuais”, normalmente em perigo frente a forças sobrenaturais, extraterrestres ou mesmo diante de monstros do imaginário mítico da literatura oitocentista.

Em primeiro plano normalmente era representado um herói masculino enfrentando alguma criatura do mundo sobrenatural para salvar alguma mulher em perigo. Isso quando a mulher não estava sozinha na capa, amarrada à espera de algum ritual arcano com traços de sadismo masculino. Se as publicações eram simples e de baixa qualidade gráfica, os editores esperavam cativar os leitores com capas impactantes e surreais, munidas de terror e suspense do oculto.

Destaque para dois fatos interessantes referentes às ilustrações de Brundage na Weird Tales. O primeiro vincula-se às críticas que seus desenhos sofreram de leitores ou mesmo de integrantes dos movimentos feministas da época, como se as imagens representassem as mulheres como meros objetos da degustação voyeur masculina. O segundo relaciona-se às ações do prefeito de New York da época, Fiorello La Guardia, na tentativa de impedir novas publicações das imagens da ilustradora por puro moralismo diletante, condicionando a um desfile de ilustrações posteriores de cunho ocultista ou mesmo de fantasia regada a violência extremada.

O primeiro conto literário do bárbaro cimério foi publicado em dezembro de 1932, denominando-se “The Phoenix on The Sword”, e foi apenas mais um dos contos daquela edição, não ganhando sequer uma ilustração de capa, visto que o editor da revista, Farnsworth Wright, apesar de ter visto “pontos de verdadeira excelência no conto”, não o considerava suficientemente bom para destacá-lo. A primeira ilustração de um conto de Conan data somente de junho de 1933, com o conto intitulado “Black Colossus”, sendo que Conan sequer é mostrado na capa.

Chama a atenção na imagem acima o tema tradicional das capas da Weird Tales e, especificamente, das ilustrações de Brundage. Trata-se da imagem de uma jovem nua aos pés da estátua de um homem barbado que não difere muito de qualquer estátua em estilo clássico de um deus pagão ou herói grego do Mundo Antigo. O mundo meta-histórico de fantasia criado por Howard chamava-se Era Hiboriana e mesclava aspectos culturais, políticos, mitológicos e sociais das civilizações e sociedades dos períodos históricos que convencionamos denominar de Antiguidade e Idade Média, ainda que a ilustração de capa em si não tivesse vinculação direta com o texto publicado no interior da revista.

A primeira vez que Conan foi retratado preponderantemente na capa da Weird Tales merece destaque, principalmente porque a ilustração muito difere da imagem que o público em geral, deveras influenciado pela produção cinematográfica de 1982, estrelada pelo fisiculturista Schwarzeeneger, possui do personagem. Trata-se do conto “Queen of the Black Coast”, publicado em agosto de 1934, sendo um dos contos literários howardianos mais cultuados e republicados de todos os tempos devido ao par romântico entre o bárbaro e a capitã pirata Bêlit, abraçada a Conan na ilustração de Brundage.

A narrativa no interior da revista trata inicialmente do encontro de Conan com Bêlit no litoral do reino fictício de Argos e de como o bárbaro passou a se aventurar em seu navio por quatro anos. Chama nossa atenção a imagem de Conan, representado como um homem mais velho, segurando nos braços uma indefesa Bêlit diante de uma criatura humanoide munida de garras e asas. Novamente o tema tradicional do protagonista protegendo uma linda mulher em perigo com vestes sensuais está presente e novamente a capa não se relaciona diretamente com a narrativa em questão. Isso se deve pelo fato desse tipo de capas serem tradicionais na literatura pulp, meio que um padrão artístico e estético, além de serem encomendadas sem que o ilustrador tivesse conhecimento do teor do conto em seus detalhes.

No supracitado conto, Conan é obrigado a fugir de autoridades argorianas, aportando em um navio ancorado de um comerciante qualquer, logo tomando parte entre seus tripulantes. Não muito tempo depois, o navio é atacado pelos piratas de Bêlit e Conan, após mostrar habilidades em espada e força quase sobrenatural no enfrentamento dos mesmos, torna-se mesmo um tripulante do navio comandado pela mulher, tema, aliás, bastante usual em narrativas posteriores do personagem em diversas mídias.

Apesar do relacionamento de Conan e Bêlit possuir uma natureza amorosa e afetuosa ao longo da maior parte do conto, existe certo teor de sadismo da parte dele em relação a ela, ainda que Bêlit seja tomada por Howard como uma mulher forte, selvagem, imponente e altiva. Podemos encontrar um exemplo de como Bêlit é descrita no conto através das palavras do timoneiro do navio mercante que Conan encontrou ao início da aventura. Vejamos: "A mulher (Bêlit) é a mais selvagem e demoníaca que já pisou nesse mundo. A menos que eu tenha lido errado os sinais, foram os carniceiros dela que destruíram aquela vila na baía. Espero vê-la um dia enforcada num mastro bem alto! Chamam-na de Rainha da Costa Negra. É uma mulher shemita que lidera bandoleiros negros. Eles atacam e saqueiam os barcos que navegam por aqui, e já mandaram muitos navegantes e comerciantes para o fundo do mar".

A descrição de Bêlit é, portanto, de uma mulher forte e selvagem, uma saqueadora que vivia pelas armas, tal como o próprio Conan. Chama nossa atenção, porém, o fato de a capa da edição da Weird Tales desvelar a imagem de uma mulher extremamente frágil nos braços do bárbaro, talvez devido à presença do sobrenatural frente aos dois personagens, igualmente tratado no conto, ou talvez, tal como mencionado mais acima, como uma mera ilustração usual e tradicional de Brundage e da Weird Tales.

Mesmo que as características das capas da revista ajudem a explicar a ilustração da frágil Bêlit nos braços de Conan, não é descabido pensar aqui nas considerações de Judith Butler e sua ênfase no discurso de construção de gênero ser concebido a partir de matizes sociais e culturais definidos por pares binários entre homem/forte/racional e mulher/frágil/sentimental. Em outras palavras, na caracterização do ser masculino, pensando-se exclusivamente na imagem, Conan está em posição de protetor da mulher, conferindo a ideia de que o ser feminino deve ser protegido, caracterizando aqui não somente um padrão visual de capa, mas igualmente um discurso cultural sobre gênero.

Uma imagem que, em nossa opinião, agencia tal discurso de gênero. Conan igualmente aparece na imagem em uma posição defensiva, com uma espécie de adaga na mão direita, colocado como protetor de Bêlit, ainda que sua imagem seja muito distante da imagem selvagem de belicosidade das representações posteriores, seja nos quadrinhos e no cinema.

No máximo, o estado de barbárie de Conan, tão exaltado nos contos literários howardianos, transpareça pelos trajes que ele se utiliza na imagem, um estereótipo clássico que aproxima o personagem de Tarzan, de Edgar Rice Borroughs, uma das muitas influências literárias do escritor texano. Na capa da Weird Tales, Conan parece ser mais a imagem do “bom selvagem” do iluminista Jean Jacques Rousseau do que do bárbaro musculoso e violento das ilustrações mais famosas dos quadrinhos ou de outras mídias visuais mais recentes.

Pela descrição do próprio criador, Conan muito difere do homem representado nesta capa da Weird Tales, sendo normalmente descrito como, “um bárbaro selvagem musculoso, com a pele bronzeada, os olhos azuis e todo o corpo e rosto marcado por cicatrizes”. Além disso, Howard fez questão de enfatizar que o estágio de barbárie em seus contos muito diferia do teor dado por Rousseau em sua concepção filosófica de “bom selvagem”, como pode ser expresso pela passagem de uma carta do autor texano logo abaixo:

"Não tenho a visão idílica do bárbaro – até onde pude aprender, trata-se de uma condição sombria, sangrenta, feroz e impiedosa. Não tenho paciência para a representação de um bárbaro de qualquer raça como uma criança cheia de dignidade, feita á imagem de Deus na natureza, dotada de uma estranha sabedoria e falando frases sonoras e bem enunciadas".

Não é descabido pensar na ideia tradicional de uma humanidade desvelada na imagem da Weird Tales, visto que em Conan transparece um ar de impotência e mortalidade ante uma força monstruosa do mundo sobrenatural. Existe na imagem um padrão de suspense que é típico das capas pulps, um padrão que coloca Conan e sua aparentemente frágil companheira como meras caças de alguma criatura dos reinos inferiores, impactando o leitor pela constante presença do tema de sobrenatural nestes tipos de contos.

Apesar da barbárie em Howard muito diferir da visão de Rousseau, Conan é tomado na imagem da revista como um “bom selvagem” masculino e protetor de uma inocente e até convencional e frágil mulher, Bêlit (enquanto um arquétipo do gênero feminino), sem o teor belicista que o caracteriza nas representações posteriores, evidenciando uma imagem bastante distinta da descrição de sua figura por Howard, porém não menos interessante dos pontos de vista histórico e cultural.

O Conan das capas dos anos 1940-1960, incluindo as ilustrações de Frank Frazetta

Entre as décadas de 1940/1960, três escritores, Lyon Sprague de Camp, Lin Carter e Bjorn Nyberg republicaram diversas vezes e em momentos diferentes, os contos originais de Conan, reeditando outros tantos contos inacabados e até substituindo as tramas originais por narrativas próprias, muitas vezes até se utilizando dos contos de Howard sobre outros personagens para uma adaptação das aventuras do bárbaro cimério.

Esse fato ocasionou dois movimentos distintos, porém, interligados: em primeiro lugar, uma primeira popularização de Conan. Em segundo, uma espécie de movimento “purista” dos fãs de Howard, que defendiam publicações dos contos tais como foram publicados originalmente, questionando assim os pastiches literários dos mencionados escritores.

Antes deles, outro fã de Howard chamado Glenn Lord havia conhecido os contos literários howardianos originais na publicação Skull-Face and Others, de 1946,comprando os direitos sobre diversos contos inacabados e mantendo o legado cultural do escritor texano. De certa forma, Glenn Lord é visto como um dos grandes expoentes a popularizar Conan após a morte de seu criador, sendo um dos primeiros a efetuar uma compilação de relatos e correspondências sobre o escritor.

Trata-se da bio-bibliografia intitulada The Last Celt: A Bio-Bibliography of Robert Ervin Howard, considerada uma das mais completas existentes, de 1976. O livro de Lord, publicado pela D.M. Grant contém diversos ensaios e entrevistas de pessoas que conheceram pessoalmente Howard, escritores conhecidos da época cujos trabalhos influenciaram o texano e outros diversos estudiosos de seu corpus narrativo, além de excertos do autor. A obra contém também cartas raras, sinopses, fragmentos de histórias e fotos relacionadas à vida do escritor. A segunda metade do livro é dedicada a uma bibliografia extremamente bem organizada e completa de grande parte da ficção pulp de Howard, suas poesias, ensaios e outros trabalhos catalogados sobre sua vida e obra até dezembro de 1973.

O fato é que todos esses autores mantiveram o personagem vinculado à literatura, convocando artistas

 para ilustrar as capas das revistas ou livros de contos do bárbaro, fossem tais contos republicações daqueles primeiros escritos de Howard (dezessete publicados em vida, mais quatro após sua morte), fossem sinopses e contos inacabados que posteriormente eram finalizados por outros escritores.

As capas elencadas chamam a atenção pelos mais variados motivos. Todas possuem o nome de Howard destacado, não somente em função dos direitos autorais a seus familiares, mas igualmente em função de seu nome possuir popularidade como um renomado escritor de fantasia. Podemos notar também que o nome de Sprague de Camp aparece na publicação intitulada Tales of Conan, de 1955, como se ele fosse uma espécie de segundo criador do bárbaro.

De fato a figura de Lyon Sprague de Camp é controversa entre especialistas e fãs do personagem Conan. Ele escreveu diversas narrativas e pastiches sobre Conan, criando novos personagens e até outras cidades, reinos, sociedades e civilizações da Era Hiboriana, utilizando-se das viagens que fazia ao Oriente Médio ou outros tantos lugares antigos e distantes para uma descrição mais pormenorizada de reinos e civilizações do mundo fictício howardiano.

Sprague de Camp é também o responsável pela biografia mais famosa e popular sobre o escritor texano, sendo, no entanto. a mais criticada pelos especialistas e fãs. Trata-se da obra Dark Valley Destiny: The Life of Robert E. Howard, escrita por ele e sua esposa, Catherine, e publicada em 1983. O autor deteve por muitos anos os direitos autorais sobre os contos literários originais de Conan, sendo um daqueles escritores que se tornaram uma das maiores referências sobre o personagem ou mesmo sobre o escritor, ao mesmo tempo em que passou a ser criticado e até odiado pelos chamados fãs puristas de Howard.

A biografia em questão possui sérios problemas de qualidade e de seriedade em razão dos diversos juízos de valor carregados sobre o caráter, a psiquê, a personalidade e a conduta do escritor texano, com muitas inferências completamente destituídas de quaisquer evidências ou qualquer apresentação de documentação histórica mais criteriosa. Além disso, deve-se destacar o teor acusativo das críticas de Sprague de Camp em torno dos diversos contos literários escritos por Howard, em uma espécie de autopromoção às custas da obra do escritor texano, como se Conan devesse mais a ele por ser um ícone da cultura popular do que a seu próprio criador.

As capas em questão são interessantes pela forma como Conan foi retratado, normalmente vergando trajes e armaduras que não diferem muito das placas dos centuriões romanos do mundo antigo ou dos peitorais, sandálias e elmos dos antigos soldados-cidadãos hoplitas da Grécia Clássica dos séculos V e IV A.C. Os cabelos do bárbaro são mantidos pelos ombros ou mesmo curtos, o que difere da descrição howardiana que traçava cabelos mais compridos. Da mesma forma, os semblantes carregam um ar sisudo ou um sorriso irônico e imponente, o que difere da forma como Conan aparece na Weird Tales, normalmente com um teor de melancolia ou até com a face carregada de temores instintivos diante da presença do sobrenatural.

Esse tema, aliás, não aparece nas capas elencadas logo acima, significando a saída de cena do gênero terror e ocultismo, típicos dos contos pulps. Com tais capas, temos a vinculação do bárbaro a temas vinculados ao cinema épico hollywoodiano da época, com filmes do porte de Ben-Hur, de 1959 ou Spartacus, de 1960. Conan é assim transfigurado de um quarentão rústico semelhante ao personagem Tarzan em um jovem imponente vergando armaduras tradicionais em estilo clássico e cinematográfico.

Spartacus com Kirk "100 anos" Douglas

Agora, sem sombra de dúvida foi a arte do ilustrador e quadrinista Frank Frazetta que primeiramente impulsionou a imagem que temos hoje em dia sobre Conan. Frazetta se tornou conhecido a partir dos anos 1960 como ilustrador de capas de livros, principalmente de reedições de contos ou novelas de Tarzan e mesmo de Conan. Antes disso, ele havia sido ilustrador anônimo de histórias em quadrinhos de renome, tais como Flash Gordon ou Ferdinando (Li'lAbner), famoso título criado nos anos 1930 pelo brilhante roteirista e argumentista estadunidense Al Capp, trabalhando nos desenhos da família de Brejo Seco por nove anos, entre 1953 e 1962.

O quadrinho Li'l Abner (Ferdinando) desenhado por Frank Frazetta

As ilustrações de Frazetta para as capas de livros de contos de Conan são as mais cultuadas entre os fãs do bárbaro, algumas delas sendo comumente vendidas por somas vultosas para colecionadores. Seu estilo possui uma tonalidade quase barroca, situando Conan como um bárbaro celta bretão, tal como descrito por Howard nos contos literários originais.

Não se pode esquecer que Howard descrevia os povos de sua Era Hiboriana a partir de modelos de povos, comunidades e civilizações existentes de nossa história, sendo os chamados cimérios, povo fictício do qual Conan fazia parte no corpus literário howardiano, equivalentes aos celtas bretões de uma Inglaterra pré-romana.

As capas de Frazetta foram a principal marca dos vários livros de contos publicados a partir do ano de 1966 pela editora Lancer Press, fossem tais contos republicações dos vinte e um contos originais finalizados por Howard, fossem os escritos por Sprague de Camp e Carter. Os livros normalmente continham introduções desses escritores sobre a Era Hiboriana, cartas de Howard dos anos 1930, novos mapas e cidades do mundo fictício do bárbaro, pastiches inacabados de Howard sobre Conan ou mesmo sobre algum outro personagem do texano, todos finalizados ou adaptados para que se tornassem novos contos de Conan.

O desenho de Frazetta coloca Conan como um bárbaro mais belicoso, altivo e ameaçador se comparado à figura das capas dos anos 1930 e mesmo a dos anos 1940/1950. Conan também deixa de ser o bárbaro com ar civilizado das capas anteriores da editora Gnome Press, para se tornar eminentemente fora dos padrões dos homens civilizados, normalmente vergando armas brancas respingando sangue e com o torço desnudo na maior parte do tempo.

Sua postura é comumente de ataque, mesmo cercado por inimigos em número maior ou mesmo por monstros saídos do mundo sobrenatural, o que difere das capas dos contos dos anos 1930, que o colocavam em uma posição defensiva. Também aqui se encontra o tema da guerra épica e brutal, de uma incansável vida de conflitos, como se a guerra fizesse parte de seu ser não-civilizado. A ideia de barbárie aqui é menos óbvia e menos idealizada, afastando Conan de qualquer imagem de “bom selvagem” de Rousseau.

Frazetta capturou muito do texto howardiano em suas pinturas e ilustrações de capa, utilizando-se de elementos fantásticos mesclados à aventura, ao realismo, à guerra épica e ao apelo sobrenatural. Este elemento sobrenatural não era somente algo a ser temido, mas combatido a ferro e fogo pelas mãos de um bárbaro quase bestial, ainda que nada sugira tratar-se de alguém destituído de inteligência ou de comedimento fora da ação e do combate.

Os temas de capa de Frazetta sugerem uma selvageria quase que necessária frente a ameaças impossíveis de serem ultrapassadas por homens civilizados (um tema fundamental nos contos originais). A passagem que se segue evidencia tal postura, sendo uma das mais célebres do corpus literário howardiano, uma fala proferida por Conan no conto "Queen of the black coast":

"Já conheci muitos deuses. Quem nega a sua existência é um cego, assim como aquele que confia demais neles. Não me importo com o que existe além da morte. Tanto pode ser a escuridão em que acreditam os céticos nemédios, o reino de gelo e nuvens onde vive Crom, as planícies geladas e os corredores fechados do Valhalla nos quais crê o povo de Nordheim. Eu não sei e não me importo. Preciso viver intensamente enquanto posso. Quero experimentar os ricos sucos da carne vermelha e o vinho picante, o aperto quente dos braços brancos como marfim, a loucura do triunfo da batalha, quando as lâminas azuladas queimam e se tingem de vermelho. Isso basta para me alegrar. Que os mestres, os sacerdotes e os filósofos meditem sobre as questões da realidade e da ilusão! De uma coisa eu sei. Se a vida é uma ilusão, também sou uma: a ilusão é real para mim. Eu vivo, estou cheio de vida, eu amo, eu mato, eu sou feliz assim".

O enunciado é esclarecedor sobre o personagem Conan na visão de Howard, demonstrando, em nossa opinião, o teor da leitura de Frazetta para esboçar suas ilustrações do bárbaro cimério, ainda que a belicosidade das imagens tenha condicionado a outras tantas interpretações posteriores. Conan vivia intensamente, matava intensamente, mas não deixava de se perguntar sobre as coisas do mundo, da realidade e do pós-morte. Conan aceitava viver plenamente no campo de batalha, em meio a perigos constantes, sendo feliz desta forma e aceitando tal plenitude intensamente, sem se culpar ou recuar diante das ameaças do mundo sobrenatural.

O clamor da batalha era algo esperado e até aclamado em seu ser e as capas de Frazetta captaram essa personalidade forte e selvagem, ainda que de uma sabedoria de vida peculiar. As imagens de capa de Frazetta beberam dessa rica fonte literária do gênero da fantasia, mas traduziram de forma suis generis

essa fonte de modo a tornar tal imagem um padrão, tanto nos quadrinhos como em outras mídias visuais. As imagens agenciaram toda uma gama de outras ilustrações que mais tarde seriam a tônica do personagem nas mídias como um todo.

Aliás, em um texto introdutório de uma narrativa de quadrinhos dos anos 1980, Glenn Lord reiterou que Frazetta teve um papel ainda mais ativo na construção da imagem de Conan perante a cultura midiática como um todo do que todos os escritores de contos dos anos posteriores à década de 1930.

Novamente, nosso enfoque precisa reiterar alguns pontos. A visão de barbárie nas ilustrações de capas de Frazetta sobre Conan, extraída de passagens da literatura howardiana, é bastante específica e não deve ser tomada como mera expressão genérica de visões de mundo sobre a barbárie como um todo, ainda que exista uma visão comum ou múltiplas visões que podem ser mensuradas em um estudo acadêmico. As palavras de Peter Burke sobre a “leitura de uma imagem enquanto um mero reflexo ou instantâneo fotográfico da realidade acabar conduzindo a uma interpretação errônea” são relevantes para compreendermos o papel do ilustrador na própria construção dessa imagem.

Muito mais do que expressar visões gerais da sociedade sobre a barbárie, as capas de Frazetta

 ajudaram a estabelecer e/ou mesmo a consolidar essa imagem específica, vinculando Conan ao bárbaro por excelência e a condutas tomadas como típicas de um bárbaro. Selvageria e sanguinolência se tornaram cada vez mais sinônimo de barbárie e nos parece que essas imagens contribuíram para isso, ainda que com certas doses de idealizações do ser bárbaro.

Se, nos anos 1930, a imagem de Conan o aproximava do “bom selvagem” protetor da pureza humana e de mulheres em perigo, pelo menos como imagem de capa da Weird Tales, nos anos 1960 essa imagem se transformou. O Conan de Frazetta se tornaria a base visual do Conan e da própria barbárie que seriam difundidas nas histórias em quadrinhos das décadas seguintes, responsáveis por iniciar a consolidar o personagem como um ícone da cultura popular do século XX.

O Conan da Marvel Comics dos anos 1970-1980: entre Windsor-Smith e John Buscema

Em 1970, a empresa Marvel Comics pagou uma licença de dois mil dólares por edição para publicar narrativas de Conan, dividindo suas tramas em dois tipos de formatos voltados para públicos diferentes. A publicação em estilo magazine intitulada, The savage sword of Conan, de 1974, era voltada para um público um pouco mais adulto, enquanto que o público infanto-juvenil tinha outra revista, anterior àquela e em estilo comics, publicada a partir de outubro de 1970, denominada simplesmente de Conan, the barbarian, com tramas mais simples e com menos teor de violência ou apelo sexual.

O responsável por trazer o bárbaro para a empresa do ramo de quadrinhos que mais crescia nos EUA foi o escritor/editor Roy Thomas, que se manteve à frente do personagem nas duas publicações por longos anos. As palavras de Thomas sobre o assunto demonstram que as capas de Frazetta dos contos republicados de Howard ou mesmo aqueles criados por Sprague de Camp e Lin Carter eram mais famosas do que os próprios contos literários originais howardianos, pelo menos entre aqueles do ramo de quadrinhos da época. Vejamos o excerto que se segue:

"Eu era editor associado na época, e as pessoas me enviavam todas essas cartas de leitores que diziam que nós deveríamos trazer personagens dos livros para os quadrinhos. Havia quatro coisas que continuavam chegando: uma era o Conan, de Robert Howard, ou algo do gênero – Howard era o autor mais mencionado. As outras três eram Tolkien (autor de o Senhor dos Anéis), Doc Savage (personagem da literatura pulp dos anos 1930) e Edgar Rice Burroughs, com coisas como Tarzan e John Carter of Mars. Nós tentamos todos eles e acabamos conseguindo todos, menos Tolkien. Eu preparei um memorando para o editor Martin Goodman dizendo por que deveríamos licenciar um personagem – não me lembro porque simplesmente não criamos um novo. Acho que Lee (Stan Lee, o criador da maior parte dos super heróis da empresa, tais como Homem-Aranha, Hulk e Quarteto Fantástico) não sabia ao certo o que era Espada e Feitiçaria e eu mesmo não havia lido o suficiente na época. Eu não tinha lido muito de Howard, havia apenas comprado alguns de seus livros por causa das capas de Frazetta, mas nunca os havia lido de fato."

Ao ser quadrinizado pela Marvel, Conan se popularizou, iniciando sua consolidação como um personagem icônico do século XX, ao mesmo tempo em que se tornou o modelo de todo um gênero de fantasia, influenciando outras tantas mídias, suportes e narrativas fantásticas semelhantes. Não devemos esquecer, aliás, que os estudos sobre cultura visual partem da premissa da necessidade de compreensão da produção, circulação e consumo de imagens, tal como estabelecido por Nicolas Mirzoeff com seu conceito de “mundo como imagem”. A esse propósito, o pesquisador Ulpiano Bezerra de Meneses reitera a necessidade em se “retraçar a biografia, a carreira e a trajetória das imagens”.

Saído da literatura pulp e difundido nos anos 1960 nas capas dos livros de contos com ilustrações de Frank Frazetta, Conan chegou pela primeira vez aos quadrinhos pelas mãos de um jovem desenhista, desconhecido na época, chamado Barry Windsor-Smith, que concebeu um Conan “muito ágil, esguio e com cabelos compridos à moda glam rock”. Vejamos a primeira capa de Conan, Tne Barbarian, com o traço do referido desenhista:

É difícil não perceber na capa o padrão tradicional das pulps, com um Conan em primeiro plano rodeado de inimigos, portando uma espada e tendo uma mulher em apuros a seus pés, uma marca presente nas capas do bárbaro desde os anos 1930. Aliás, os estudos em cultura visual igualmente reiteram a importância de captarmos reminiscências de média e longa duração histórica em imagens específicas, tal como elucidado por Ulpiano Meneses.

Além disso, é preciso não esquecer o importante conceito de “iconosfera”, tratado pelo mesmo estudioso, que pode ser traduzido como o conjunto de imagens socialmente veiculadas e disponíveis em dado contexto histórico. Observando a primeira capa de Conan sob o traço de Windsor-Smith, é possível observar o estilo dinâmico característico dos quadrinhos de super-heróis Marvel da época. No caso da capa acima, não muito diferente do estilo estético do inigualável Jack Kirby, considerado o maior ilustrador da Marvel de todos os tempos e que fez escola no mundo das comics.

A capa de Conan, The Barbarian nº 1 em muito se assemelha a outras capas de super-heróis Marvel dos anos 1970, especificamente aquelas que traziam personagens mitológicos e/ou de fantasia, reforçando a ideia de iconosfera, mencionada acima. Segue abaixo um exemplo do personagem mitológico, Thor, pelo estonteante “pincel” de Kirby:

O personagem aqui, tal como o Conan da capa anterior, evoca desespero e fúria ante uma horda que o cerca, com balões de chamada para os leitores não muito diferentes das chamadas em recordatórias da capa do bárbaro cimério. O estilo ação-para-ação, muito comum no traço de Kirby e outros artistas da Marvel, da maneira como é apontado por Scott McCloud, está presente na capa e na narrativa em arte sequencial do interior de ambas as revistas.

Estamos sugerindo com isso que da mesma forma que as capas pulps dos anos 1930 seguiam seu próprio modelo, ou seja, seus padrões estéticos e artísticos de acordo com imagens disponíveis de seu contexto ou mesmo de seu suporte midiático específico, as capas do cimério nos quadrinhos dos anos 1970 igualmente seguiram seus respectivos padrões estéticos, históricos e midiáticos.

O ar belicoso de Frazetta está igualmente acentuado na imagem de capa de Conan, com um bárbaro igualmente cercado por hordas inimigas, incluindo seres bestiais do mundo sobrenatural. O rosto estampado de fúria e terror também mimetiza em parte a arte de Kirby e mesmo de Frazetta, no último caso, adaptada para as narrativas dos quadrinhos. O tom épico belicista na capa de Conan é um tanto distinto das capas dos anos 1940/1950 e bastante aproximado ao das capas da Lancer Press dos anos 1960, só que agora com tons mais vivos, típicos das publicações de quadrinhos Marvel.

A quadrinização de Conan na editora estadunidense deve-se a diversos fatores, sendo alguns deles bastante pontuais. Um deles relaciona-se ao direcionamento corporativo da Marvel, que, no final da década de 1960 e início da década seguinte, estava ampliando seu público leitor e seus preços de capa, envolvendo leitores universitários que cresceram lendo quadrinhos de super-heróis e que agora possuíam condições financeiras de bancar coleções mensais mais sofisticadas.

Além disso, havia uma nova geração de profissionais tomando conta do mercado de quadrinhos da indústria cultural nos EUA, jovens talentosos intelectualizados que igualmente cresceram lendo quadrinhos e que agora queriam explorar o universo do realismo emocional através de dilemas sociais ou mesmo mediante o cotidiano das lutas das minorias pelos direitos civis, tudo isso mesclado ao escapismo lúdico idealizado dos quadrinhos Marvel.

Muitos desses jovens quadrinistas eram verdadeiros apologistas das grandes editoras e de seus icônicos personagens, levando a profissão quase que como um credo de fãs desses respectivos personagens. Talentosos artistas do porte do já mencionado Thomas, além de Dennis O’Neil, Chris Claremont, John Byrne, Frank Miller, Jim Starlin, dentre outros, ampliaram os limites dos quadrinhos da indústria cultural, em comunhão com a energia cultural dos anos 1970, embebida de autocrítica, eminentemente antiautoritária e que degustava filmes hollywoodianos anti-establishment do porte de O Poderoso Chefão, Perseguidor Implacável, Desejo de Matar, Taxi Driver e Perdidos na Noite.

Taxi Driver: Nova Hollywood

Tais autores e quadrinistas, além de elevar os questionamentos sociais dos quadrinhos da indústria cultural, buscando temas polêmicos como o uso e o tráfico de drogas, a violência urbana e doméstica, o racismo, a guerra do Vietnã, o alcoolismo, a metalinguagem e o sexismo, igualmente trouxeram aspectos e temas dos quadrinhos de terror, fantasia, ficção e de detetives dos anos 1930, muitos dos quais influenciados pela própria literatura pulp.

Conan foi quadrinizado ao lado de outros personagens pulps do porte de The Shadow, de Edgar Rice Borroughs, adaptado por Len Wein e Michael Kaluta; Doc Savage, de Lester Dent; e o próprio Tarzan, que na Marvel foi adaptado pelo mesmo Roy Thomas, ao mesmo tempo em que era criado um herói inspirado nele chamado Ka-Zar.

Os quadrinhos da indústria cultural viviam um momento de complexificação de seus temas e estilos diante das exigências de um público leitor mais sofisticado e com maior poder aquisitivo e as primeiras adaptações de Conan não podem ser desvinculadas de todos esses fatores. Ainda sim, a revista Conan, the barbarian era bastante leve e lúdica diante desse movimento com toques realistas regados a violência, suspense e terror, não dando conta das novas demandas dos leitores um pouco mais velhos.

As exigências desse público, os interesses corporativos da Marvel em ampliar as vendas e o próprio culto de Roy Thomas ao traço de Frazetta em Conan levaram-no a se unir ao talentoso ilustrador John Buscema em outra publicação sobre o bárbaro, dessa vez em preto e branco e com um tom mais pesado, muito próximo ao da literatura pulp howardiana.

Buscema

Tratava-se do já mencionado título Savage sword of Conan, publicado a partir de 1974, possuindo o traço mais marcante do bárbaro nas histórias em quadrinhos, aquele do inigualável ilustrador John Buscema, famoso quadrinista que até então era responsável pela arte de personagens icônicos da Marvel do porte de Thor, Vingadores e Surfista Prateado. Buscema tornou-se o ilustrador de Conan nos dois títulos mensais da editora, porém, na revista em preto e branco chegou ao auge criativo, aproveitando-se do jogo de luz e sombras para consolidar um Conan mais robusto e viril, quase que uma representação de um verdadeiro “titã de bronze”, como constantemente era descrito por Howard nos contos literários originais.

A Marvel já tentara adaptar o personagem em narrativas mais adultas e em formato magazine preto e branco, como o exemplo da publicação intitulada Savage tales, de 1971, mas foi na publicação de 1974 que Thomas e Buscema encontraram o tom ideal do personagem nos quadrinhos, começando por adaptar os contos originais de Howard, usando, inclusive enunciados inteiros extraídos desses respectivos contos. Mesmo quando as narrativas eram inovadoras, elas continham o tom howardiano, seja em razão da ausência de uma cronologia para as aventuras do cimério, seja pela presença do tema da oposição entre civilização e barbárie que caracterizavam as primeiras narrativas.

O diferencial das narrativas em quadrinhos de Thomas e Buscema vincula-se ao tom mais desafiador das tramas em termos de ação e emoção, narrativas mais aventureiras a explorar os limites físicos do personagem, muitas delas munidas de valores importantes para os jovens rebeldes da geração 1970. Podemos destacar aqui a defesa do indivíduo e das liberdades individuais contra autoridades instituídas por coletivos específicos (Exército, Igreja e Estado, por exemplo), quase que a epopeia de um espírito juvenil livre e eminentemente belicoso a se desvincular das amarras sociais existentes, o que, em nossa sociedade, seriam vistas como criações dos adultos e progenitores dos jovens leitores.

As imagens de Conan ilustradas por Buscema expressam o apelo da liberdade individual de um bárbaro em relação às normas sociais das civilizações de seu mundo ficcional. O personagem aparenta ser um bloco sólido de pura selvageria, liberdade, ar sisudo, força física e mental, uma resistência sem igual diante das agruras da vida e da luta pela sobrevivência nas fronteiras mais distantes da civilização, normalmente rodeado pelas mesmas mulheres que constantemente necessitavam de sua proteção nas capas pulps dos anos 1930.

Novamente a questão de gênero está presente, definindo-se as imagens por pares binários: o ser masculino protetor como a antítese do ser feminino a ser protegido, o ser bárbaro selvagem e instintivo como a antítese do ser civilizado, normalmente tomado nos contos e nas HQs como eminentemente ganancioso e decadente, tema usual nos contos literários, mas que nas imagens de Buscema ganham contornos extremos. O traço em preto e branco produz uma silhueta sombria que confere a Conan a melancolia e a selvageria dos contos literários originais howardianos sem, no entanto, transparecer que sua figura pereceria perante quaisquer obstáculos, incluindo aqueles advindos do mundo sobrenatural.

O traço de Buscema eleva Conan a um homem situado para além da fronteira das normas existentes, estando às margens da civilização. Trata-se da representação visual de um espírito livre que não se desdobra frente a quaisquer problemas a serem enfrentados. Além disso, seu porte físico se torna ainda mais avantajado do que o ágil e esguio Conan do traço de Barry Windsor-Smith, mais próximo aqui ao traço de Frank Frazetta.

A título de informação, podemos retraçar as características físicas dos super-heróis e as influências existentes no esboço dessas respectivas características.

Entre os anos 1930-1950, os super-heróis tiveram suas imagensassociadas aos homens fortes dos circos, com seus portes físicos em blocosólido e seus colants multicoloridos,o que influenciou a anatomia física e os uniformes dos personagens da chamada “Erade Ouro” dos quadrinhos

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Em meados da década de 1950 e, depois, ao longo da década de 1960, que compreende o início da chamada “Era de Prata” das comics, os super-heróis se tornaram fisicamente menos robustos, mais ágeis, esguios, com portes físicos mais definidos, muitas vezes mimetizando os atletas olímpicos de corrida de curta distância ou os astronautas da corrida espacial, quando não o homem comum, visto que aspectos de realismo começaram a fazer parte das narrativas em quadrinhos do gênero.

Os anos 1970-1980 trouxeram de volta as idealizações físicas dos personagens de quadrinhos de super-heróis, agora com a influência marcante dos fisiculturistas (pelos menos em relação aos homens, visto que as mulheres normalmente eram retratadas com portes físicos de modelos famosas ou mesmo de atrizes de Hollywood). Não se pode, portanto, deixar de associar a imagem de Conan de narrativas de quadrinhos pós anos 1970 dessa estética específica, visto que sua quadrinização ocorreu em uma empresa especializada em super-heróis, sendo efetuada por artistas que faziam parte desse gênero específico de quadrinhos e que eram influenciados pelas características artísticas, estéticas e históricas do referido gênero e do suporte midiático em questão.

Lou Ferrigno (dir.): nos 1970's

Lembremos também que o auge do fisiculturismo se deu no mesmo contexto de lançamento das primeiras revistas em quadrinhos de Conan, mais especificamente no final dos anos 1960 e durante a década de 1970 como um todo. Nesse momento, figuras como Arnold Schwarzenegger, Lou Ferrigno e Frank Columbus apareciam costumeiramente em capas de revistas especializadas sobre fisiculturismo, revistas essas situadas nas prateleiras das bancas de revistas não muito distantes das comics books.

O fisiculturismo começou a ser visto na televisão, em eventos beneficentes para estimular as atividades físicas ou até como recuperação de presidiários, aparecendo igualmente em filmes-documentários sobre o esporte, como é o caso do reconhecido filme-documentário Pumping iron, veiculado em 1975.

Para muitos estudiosos do assunto, esta foi a chamada “Época de Ouro” dos torneios de fisiculturismo, dentre os quais, o Mister Universo, torneio com atletas amadores e o Mister Olympia, eminentemente profissional e deveras conceituado entre os atletas mais renomados do esporte até os dias de hoje. Esses torneios tornaram o fisiculturismo quase que um padrão cultural corporal mercadológico ansiado por muitos jovens, principalmente no final dos anos 1970 e a partir da década de 1980 em diante.

Não é a toa que o primeiro filme de Conan foi estrelado pelo mais cultuado fisiculturista da época, e, segundo muitos especialistas, o maior nome do esporte da história, atleta esse que em termos de porte físico e definição corporal muito se parece com o bloco sólido de massa muscular desenhado por John Buscema nas revistas em estilo magazine, como The savage sword of Conan.

Não podemos deixar de comentar também que a magazine em preto e branco lançada em 1974 não precisou se adequar à autocensura do famigerado Código de Ética dos Quadrinhos (Comics Code Authority), criado pelas próprias editoras em 1954. A criação desse mecanismo de autocensura ocorreu devido a perseguições que as comic books sofreram nos EUA na década de 1950, seja em razão da paranoia anticomunista insuflada pelo macarthismo, seja em função da influência nefasta da obra The seduction of the innocent, do psiquiatra alemão Fredric Wertham, que relacionou de forma imprudente e carente de qualquer validação o problema da delinquência juvenil com a leitura de quadrinhos, principalmente aquelas narrativas de terror, super-heróis e fantasia.

As grandes editoras estadunidenses procuraram se colocar de fora dos “holofotes” do Estado e de sansões regulatórias que pudessem impedir ou limitar a distribuição e, consequentemente, as vendas de seus quadrinhos. Para tais motivos, as grandes editoras criaram um código de ética próprio que literalmente autocensurava diversos aspectos das publicações em estilo comics, proibindo temas diversos e coibindo a liberdade criativa dos argumentistas e ilustradores do respectivo suporte midiático.

Não fazendo parte desse esquema de autocensura, muito em função do tipo de publicação em estilo magazine em preto e branco, do direcionamento ao público leitor e também devido ao contexto dos anos 1970, no qual artistas e editores cada vez mais não aceitavam o enquadramento das normas limitantes do código, as narrativas de Conan em Savage sword of Conan veicularam diversas liberdades criativas e imagéticas, sem quaisquer “freios”. Com isso, a revista apresentou cenas de violência explícita e certo teor sexual, concedendo liberdade criativa que a publicação em estilo comics de Conan não possuía por estar subordinada ao supracitado código.

As capas da revista The savage sword of Conan seguiam em parte o padrão das pulps dos anos 1930 e igualmente das capas de livros de contos da Lancer Press dos anos 1960. Tratam-se de capas coloridas, desenhadas por diversos artistas convidados, que normalmente colocavam em cena um musculoso Conan em estilo John Buscema com alguma linda mulher seminua a seus pés. Artistas do porte de Boris Valejo, Earl Norem, Dan Adkins, dentre outros, captaram as ilustrações típicas das HQs de seu contexto e mesclaram-nas aos temas tradicionais das capas pulps dos anos 1930.

O musculoso Conan era cada vez mais o típico fisiculturista temerário com alguma arma branca em mãos vertendo sangue, sempre pronto para enfrentar algum monstro genérico saído do mundo sobrenatural. Normalmente ao seu lado há uma linda mulher em perigo, remetendo diretamente às capas pulps, mas com a arte adaptada ao estilo Marvel de uma publicação magazine sem as censuras.

Na maioria das vezes, as capas não tinham qualquer relação com a narrativa em arte sequencial do interior da revista, demonstrando o apelo da imagem para além da própria narrativa em termos de veiculação e vendagem. Além disso, cada um dos artistas convidados emprestava seu estilo a um padrão pré-estabelecido e deveras apelativo para o público jovem masculino, sedento por tramas com poucos freios em termos de violência, liberdade e sexualidade, o que propiciou sucesso imediato de vendas da referida publicação.

Nos quadrinhos não existia mais a imagem daquele Conan quarentão da Weird Tales dos anos 1930, o bárbaro mimetizado na figura de Tarzan com doses de “filosofia rousseauniana”, colocado usualmente em uma posição defensiva e até existencial diante de alguma criatura bestial ou mitológica.

Nos quadrinhos Marvel da revista Savage sword of Conan observa-se a imagem que se consolidou na cultura midiática industrial como um todo: a imagem de um homem violento, sanguinolento e temerário, munido de armas brancas vertendo sangue e que se colocava em posição de ataque frente a qualquer desafio, fosse um desafio humano ou sobre-humano. Faltava apenas o cinema para consolidar essa imagem do bárbaro cimério e da barbárie como um todo, o que ocorreu em 1982 com o primeiro filme de Conan.

CCXP 2016: Medo e delírio em SP

por Marcos Maciel de Almeida

Após 2 edições finalmente consegui dar um pulo na Meca da diversão e do entretenimento nerd nacional. Meu objetivo era saciar a curiosidade e saber se o evento era tudo isso mesmo. Posso dizer que o resultado, no geral, foi bastante positivo.

Nos corredores da CCXP 2016

Já sabia - e pude confirmar - que, em convenções deste porte, é imprescindível focar nas atividades que realmente interessam, já que há enormes chances de ficar hipnotizado por atrações secundárias. E, quando isso acontece, a frustração pode bater forte, ao se perceber que o que realmente se queria fazer ficou para um depois que jamais chegará. Tendo isso em mente, saí à caça do que me importava: comprar revistas atrasadas da série Mágico Vento, da editora italiana Bonelli, publicada no Brasil pela Mythos. A empreitada foi um sucesso, talvez até grande demais. Eu, que só tinha cerca de 30 números deste fumetti, encontrei mais de 80 revistas que não possuía dando sopa por lá. Chegou um ponto em que estava torcendo para não encontrar mais nada, para que o bolso parasse de reclamar.

Mundo CCXP

Com a sensação de ter cumprido a primeira "obrigação", resolvi partir para a fase dois: obter autógrafos de meus quadrinistas favoritos. Autógrafos? Sim, autógrafos. Ainda fiquei pensando se valeria a pena perder tempo com isso, já que, na prática, um autógrafo não é muito mais que uma assinatura num pedaço de papel. Mas basta chegar perto da data do evento que meu espírito de fanboy renasce freneticamente. Com a experiência adquirida do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) 2015, resolvi levar apenas edições finas, para não abarrotar ainda mais minha mochila.

Alan Davis, Simon Bisley, Bill Sienkiewicz e Jae Lee, here I go.

Todos foram bastante simpáticos, com exceção do primeiro, que se recusava a tirar fotos e autografar caso não houvesse contrapartida$. O encontro com Jae Lee também fugiu à normalidade. Foi muito esquisito esbarrar com um de meus maiores ídolos, um cara que – para mim – não deve nada para qualquer dos medalhões modernos dos quadrinhos, ali sozinho, sem filas nem nada. Fiquei tão atônito que não consegui articular uma conversa que fizesse um mínimo de sentido. Ele foi tão gente boa e simples que foi difícil acreditar que era ele mesmo. Era por demais humano. Era por demais terreno. Foi triste constatar que o público da convenção dava mais bola para o trailer das novas atrações de Hollywood e para o Trono de Ferro de Game of Thrones (nada contra, ok?) que para o desenhista bochechudo de ascendência sul-coreana.

Jae Lee e fã babão

Uma coisa que me chama a atenção neste tipo de encontro é que, por mais que tente, não consigo ficar bem informado sobre quem é quem nos quadrinhos atuais. Devido à própria natureza, a nona arte é, antes de tudo, individual e pessoal. Graças ao relativo baixo custo de produção e consequente grande poder de difusão desta mídia, é praticamente impossível prestar atenção em tudo que está saindo e saber quem são as novas estrelas ascendentes. Mesmo assim, não canso de me surpreender com a grande quantidade de criadores famosos– para os outros, mas não para mim ainda - presentes no evento.

Com as fotos devidamente registradas e os gibis autografados, parti para os painéis. Teve muita coisa boa no último dia: aula de desenho com Alan Davis, revisão da trajetória do Peter Kuper, debate sobre etnia nos quadrinhos. Em resumo, deu para fazer de tudo um pouco e ir embora com a sensação de dever cumprido. Quer dizer, tudo um pouco não. Havia áreas "proibidas", como a região dos cinemas, em que os fãs se digladiavam para tentar ver um pouquinho de atores (?) como Vin Diesel, e um carinha ou outro da série Harry Potter. Estes territórios, inexpugnáveis, eram o habitat natural do fã primordial deste tipo de convenção, o nerd de ocasião. Conversando com várias pessoas que pretendiam ir à CCXP, percebi que muitos nem sabiam o que queriam ver. O importante era estar lá para ver, ser visto e, claro, angariar uns "likes" no facebook.

Debate

Masterclass com Alan Davis

Não chegarei ao extremo de fazer coro com o mestre Alan Moore que, recentemente, afirmou que gostava dos quadrinhos quando ninguém gostava deles, mas parece-me claro que a existência da Legião dos Fãs de Última Hora não pode ser ignorada. Este fato não é necessariamente ruim, visto que, na essência, o que ainda movimenta a indústria nerd é o rico dinheirinho dos aficionados, sejam eles hardcore ou novatos. Mas faz sentido gastar uma dinheirama numa estátua do Sandman se você nunca leu um gibi dele? Meu ponto é que essas comiccons da vida surgiram a partir de encontros de fãs de HQ, arte que nem sempre recebe o devido carinho neste tipo de evento (alô San Diego ComicCon!).

Bonecos e estátuas fizeram a "alegria" dos fãs

Diante da quantidade de pessoas numa convenção desta magnitude, fator que dificulta a realização de atividades tão banais quanto caminhar, sou forçado a fazer a seguinte pergunta: quem tem mais direito a frequentar este tipo de convenção: os fãs de verdade que formaram o substrato sob o qual foi erguida essa Disneylândia gibizística ou os recém convertidos que gastam somas estratosféricas em camisetas, bonecos, filmes e assemelhados? Em outras palavras, quem merece o tapete vermelho? Os fãs "roots" que estavam lá antes do "Faça-se a luz!" ou a massa endinheirada ávida por lotar o evento? Seja qual for a resposta, somente aqueles com maior disposição para enfrentar a maratona sobreviverão. O vilão Apocalipse dos X-men pode começar a sua seleção dos mais fortes ao final do quarto dia de CCXP.

Boiada, multidão zumbi, autômatos. Chame do quiser, mas os deslocamentos do público até a chegada ao portão da convenção me lembraram muito o manejo de seres descerebrados. Abre uma cancela aqui, afasta uma grade acolá. E assim a massa vai sendo tocada. Condicionados para chegar à convenção ao raiar do dia e marchar incansavelmente até a próxima atração não é comportamento diferente daquele das coletividades acima mencionadas. Aliás, que tal fazer um filme zumbi numa comiccon da vida, hein? Alô George Romero!

Admirável gado novo

Ano passado, meu amigo e guru quadrinístico Lima Neto escreveu uma resenha intitulada

Três dias em Hicksville: cobertura do FIQ!

 Ali ele estabeleceu um vínculo entre os frequentadores do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), realizado bienalmente em Belo Horizonte, com os habitantes da cidade fictícia de Hicksville, na qual todas as pessoas possuem – em maior ou menor medida – vínculos pessoais ou profissionais com os quadrinhos. Como já deve ter ficado evidente até aqui, este não é o caso da CCXP. Nesta convenção, os últimos habitantes de Hicksville lutam pela sobrevivência, encarando a barra de enfrentar um apocalipse zumbi. Tentando encontrar refúgio nas lojas que ainda vendem quadrinhos, verdadeiras fortalezas/santuários que os protegem da loucura que assola os corredores, eles buscam explicações racionais para uma realidade na qual imperam instinto e consumismo sem controle.

Fã descerebrado e Bill Sienkiewicz

Rafael Coutinho e Gabriel Góes expandem os quadrinhos em Brasília

Yes! Entre os dias 27 e 30 de outubro, Rafael Coutinho desembarca em Brasília junto ao parça (brasiliense) Gabriel Góes para realizar, no Espaço Cult, a "Oficina de Desenho e Narrativa para Quadrinhos", que eles já haviam realizado com sucesso em Sampa e outras cidades. Para quem não habita o planeta quadrinho há algum tempo, Coutinho, filho de Laerte, realizou "Cachalote" (com Daniel Galera) e "O beijo adolescente", dois dos trabalhos mais significativos das HQs brasileiras nos últimos tempos. Além disso criou o selo Narval, responsável por desaguar os autores mais instigantes da nova geração de quadrinistas brasileiros. Já Góes, figura muito conhecida em Brasília (e não só), tem em seu currículo as prestigiadas revistas "Samba" e "Kowalski", além de muitos trabalhos autorais e duas elogiadas adaptações de Nelson Rodrigues junto a Arnaldo Branco.

Esta Oficina promete ser um grande estímulo ao quadrinista brasiliense e uma chance para dar aquela velha "movimentada na cena". Participe! As matrículas podem ser realizadas online aqui.

Sobre a Oficina: OFICINA DE DESENHO E NARRATIVA PARA QUADRINHOS

Com Rafael Coutinho e Gabriel Góes

O Espaço Cult realiza entre 27 e 30 de outubro o curso Oficina de Desenho e Narrativa, que promove um entendimento diferenciado da produção de histórias em quadrinhos. Os alunos serão estimulados a deixar de lado conceitos pré-estabelecidos, como a obrigatoriedade de um desenho virtuoso ou a necessidade de histórias lineares com começo, meio e fim. Ao invés disso, o foco dos professores – o brasiliense Gabriel Góes e o paulistano Rafael Coutinho – será na compreensão dos sentidos, daquilo que nos emociona como autor e leitor. O que, por exemplo, prende nossa atenção numa conversa entre amigos? Ou na observação de uma cena cotidiana que assistimos em casa, no trabalho ou na rua? Que sequência de imagens nos encanta, surpreende ou até mesmo repele? A partir dessas reflexões, serão promovidos exercícios de histórias curtas com enfoque na construção de enredos, percepção de ritmo, diálogos e no uso das imagens.

Sobre os professores:

Rafael Coutinho é editor, artista plástico e quadrinista. Filho do também quadrinista Laerte, nascido em São Paulo em 1980, formou-se em Artes Plásticas pela UNESP em 2004. Dono da Editora Narval, fundada por ele em 2010, publicou mais de vinte títulos. Como autor, é conhecido pela graphic novel Cachalote (Quadrinhos na Cia – 2010), pela série em quadrinhos O beijo adolescente (Ed. Cachalote) e pelas ilustrações de recente adaptação de As aventuras do Barão de Munchausen (Cosac Naify – 2014).

cargocollective.com/rafaelcoutinhoartbr

Gabriel Góes é ilustrador, quadrinista e artista plástico. Suas ilustrações foram publicadas em jornais e revistas. É coautor, entre outros projetos, das revistas SAMBA, Kowalski e F A B I O. Adaptou para os quadrinhos, com roteiros de Arnaldo Branco, O beijo no asfalto e Vestido de noiva, obras de Nelson Rodrigues.

www.flickr.com/photos/7childrensbar

CAVALEIRO DAS TREVAS III, LIVRO DOIS: LEITURA PARA “NÚMERO 2” – 2º ensaio

por Márcio Jr.

A esmagadora maioria dos gibis mensais norte-americanos possui 22 páginas de quadrinhos propriamente ditos. Estamos, obviamente, falando de mainstream, comic books, super-heróis. Existem algumas justificativas para isso. A mais comum é que se o desenhista produzir uma página por dia, ao final do mês, descontando os finais de semana, ele terá feito um gibi inteiro. Faz sentido.

Minha tese, porém, é outra. Um gibi de 22 páginas corresponde exatamente ao tempo que se gasta numa ida ao banheiro para executar o glorioso “número 2”. A não ser que o roteirista seja o verborrágico Chris Claremont.

Você chega, abaixa as calças e senta no trono da privacidade absoluta – ou quase, no caso de ter filhos pequenos em casa. Ali, trabalho sujo e leitura ligeira andam de mãos dadas, numa simultaneidade que remete ao nado sincronizado. Movimentos peristálticos e satisfação mental. 22 páginas depois, missão cumprida. Missão dupla, diga-se de passagem. O gibi foi devorado do começo ao fim, sem sobras indesejáveis para momentos posteriores. E o estado da matéria no forévis ainda não se petrificou a ponto de exigir uma ducha. Todos saem ganhando.

Gibi de super-herói é, definitivamente, leitura de banheiro.

Batman: O Cavaleiro das Trevas, não.

A empreitada original de Frank Miller na mini-série de 1986 estava longe de ser leitura ligeira. Havia tramas e subtramas, overdose de informação, sofisticação gráfica e narrativa acachapante – além de cada edição ter praticamente o dobro de páginas de um comic book usual. Ou seja, torrar O Cavaleiro das Trevas no banheiro equivaleria a tomar um vinho de boa safra acompanhado de Cheetos para degustação. Algo seria fatalmente desperdiçado.

Não se trata aqui de dizer que literatura de banheiro tenha obrigatoriamente qualidade inferior. Taxionomias da modernidade não me parecem muito apropriadas para lidar com o tema. Li muitos contos de Bukowski confinado entre paredes azulejadas. O vampiro Dalton Trevisan parece talhar suas sintéticas obras-primas para estes ambientes ecoantes. Enfim, o que está em questão no W.C. é a equação que articula as seguintes variáveis: tempo, conteúdo passível de ser integralmente consumido neste tempo, fisiologia e higiene. Nada mais sacal que parar a leitura no meio de um parágrafo – ou entre dois quadros de uma HQ.

O Livro Dois de Cavaleiro das Trevas III: A Raça Superior tem 28 páginas, mas cabe direitinho na latrina. Ao contrário da seminal e inovadora série feita por Miller no século passado, é um gibi muito parecido com outros tantos que circulam atualmente. Fácil ler numa sentada.

Carrie Kelley, a Robin, está presa. No Livro Um, havia sido pega usando o manto do morcego. A edição é praticamente sobre sua espetacular fuga das garras da polícia de Gotham. Nem tão espetacular assim, a bem da verdade.

Frank Miller sempre foi um quadrinista com alma de cineasta. Seu storytelling – dos mais vigorosos que as HQs já deram à luz – tem esse componente cinemático no DNA. Invocado com cinema noir e filmes policiais, o autor sempre pareceu se deliciar em criar fugas eletrizantes. Quem se lembra de como o Mercenário escapou da prisão antes de assassinar Elektra, sabe bem do que estou falando. Neste Livro Dois de DK III, contudo, não temos Miller desenhando. Talvez, sequer esteja roteirizando pra valer. Não dá para saber ao certo o que vem de sua pena ou da de Brian Azzarello. Daí que a fuga de Carrie Kelley, ainda que possua ritmo, soa inverossímil demais, super-heroística demais. Andy Kubert, com certeza, contribui para isso.

A pouca inspiração gráfica apresentada na primeira edição da série se confirma em definitivo neste Livro Dois. Andy emula diagramações de página e enquadramentos criados por Frank Miller em Batman: O Cavaleiro das Trevas. O resultado atingido, todavia, não passa de um pastiche, uma caricatura (pobre) da obra original. 

A Gotham City que o atual desenhista nos oferece é uma triste diluição da sombria e vigorosa megalópole gótica mostrada em 1986.O próprio desenho de Andy Kubert se mostra menos cuidadoso que o habitual. E não se trata de síntese ou estilização, mas tão somente de um Andy Kubert inferior a si mesmo. Tempo curto para a produção? Não sei dizer. Mas ainda que não seja a pior arte do mundo, é muito pouco para um Cavaleiro das Trevas – mesmo este rescendendo a caça-níquel.

Existem dois tipos de arte-finalistas: aqueles que se esmeram ao máximo em manter as características do desenho original a lápis, e aqueles que se apropriam dele, imprimindo ali uma assinatura inconfundível. Klaus Janson pertence a esta segunda estirpe. É um papa da arte-final, responsável por salvar centenas de páginas criadas por desenhistas medíocres. Em DK III, infelizmente, tem se mostrado tímido e por demais preocupado em preservar o trabalho de Andy Kubert. Um erro.

Erro que se agrava se lembrarmos que, além de arte-finalista de primeiríssima linha, Janson é também um craque do desenho. Quando o próprio Frank Miller abandonou o lápis e passou a apenas escrever (e esboçar) as histórias do Demolidor, Klaus Janson assumiu o trabalho, mantendo o nível lá em cima. Alguns, inclusive, dizem que é o período mais bonito da longa primeira jornada de Miller à frente do personagem. Volto a pensar em limites de tempo para a produção de Raça Superior. De qualquer forma, tenho absoluta convicção que uma saída infinitamente melhor que a escalação de Andy Kubert como desenhista, seria deixar o velho Sr. Janson tomar conta de toda a arte de DKIII. Basta ver as capas variantes que ele criou para a série.

Consumada a fuga de Carrie, a HQ toma um novo rumo que faz avançar um pouco mais a narrativa: os kryptonianos da cidade engarrafada de Kandor são libertados pelo Átomo. Surge então Quar, que não precisa de mais de seis páginas para se apresentar por completo: líder religioso fanático e extremista, dono de um harém de esposas, assassino purificador de todos que não comungam de seu credo. Seria o Oriente Médio uma embaixada de Kandor na Terra? O espectro de Frank Miller finalmente se mostra em DKIII. 

O gibizinho deste Livro Dois é protagonizado pela Mulher-Maravilha e desenhado pelo hermano Eduardo Risso. Oba! Parceiro de longa data de Brian Azzarello – com quem fez a já clássica 100 Balas –, Risso traz munição gráfica de alto calibre para a série. O artista é um fenômeno na composição das páginas e no uso de amplas massas de sombra em preto chapado. Aqui, aparece mais leve e comedido, flutuando nas pequenas dimensões do formatinho. As cores de Trish Mulvihill são as mais inteligentes (e competentes) até o momento.

Na curta HQ, um tenso encontro entre a Mulher-Maravilha e sua filha (com o Superman) Lara – que começa a confirmar para si um papel fundamental na trama. O conflito de gerações, o embate com os pais e os questionamentos da juventude vêm à tona. São temas universais. Escapar dos clichês – ou executá-los com maestria – é condição indispensável ao sucesso de A Raça Superior

Ao final da segunda edição de DKIII, tem-se a nítida impressão que a HQ ainda não decolou. Alguns fios de trama, não muitos, foram lançados. A leitura, ligeira, não é desagradável. Mas ainda está muito aquém do relevo que um Cavaleiro das Trevas exige. Com praticamente a mesma quantidade de páginas destas duas edições, o primeiro número da série original já havia virado o mundo dos quadrinhos de cabeça para baixo. A Raça Superior ainda tem sete “livros” para mostrar que não é só mais uma leitura de banheiro, dentre tantas outras. Afinal, pelo menos aqui em casa, todo dia tem “número 2”.