Popeye e os demônios
/por Ciro I. Marcondes
Sabe-se que Elzie Crisler Segar escreveu e desenhou a tira diária Popeye até o ano de sua morte, em 1938. Desde as origens, com a tira Thimble Theater, que estrelava especialmente Olive Oil (Olívia Palito), Segar primou por um humor cotidiano, mas ao mesmo tempo escarninho e exótico, beirando o surrealismo. Sendo conhecedor da fama da qualidade destas tiras, demorei-me buscando alguma coisa que contivesse a produção original da Segar. Bati na trave em Buenos Aires, quando deixei de comprar o volume Popeye da imperdível coleção Biblioteca Clarín de La historieta, que continha material de seu criador. Recentemente, num sebo, consegui um volume de 1972 publicado em português pela Editora Paladino. Trata-se de uma revistinha velha, pregada com durex e feita de papel jornal, com anúncios de outros gibis como Pinduca, Mutt e Jeff, Mandrake e Zé, o soldado raso (hoje Recruta Zero), com suas capas redesenhadas à mão juntamente com biografias de gente como Vicente Celestino, Agnaldo Timóteo e Roberto Carlos. Custou-me quatro mangos e este texto.
O que me chamou a atenção neste gibi foi, é claro, a preciosa assinatura de Segar logo na primeira página, num layout simples: “Popeye” (em letras garrafais, como na logo tradicional do herói) por: Segar (em letras grandes). A questão é: se Segar morreu em 1938 e o “World rights reserved. Copr. 1938. King Features Syndicate. Inc” de todas as tiras nos confirma a publicação no ano de sua morte, como saber se o arco de histórias contido neste volume 4 de Popeye foi mesmo produzido pelo criador do comedor de espinafre? Bem, caso eu faça uma pesquisa mais profunda ou me depare novamente com esta história republicada, terei a delicadeza de corrigir-me aqui. Por hora, fico com a possibilidade de estar lendo um original do grande criador de Popeye, e possivelmente uma de suas últimas histórias.
Rei Zezinho: monarca hedonista? :)
O arco de tiras contido neste volume 4 de Popeye não possui um título, como é de praxe nas publicações da King Features, o sindicato/editora criado pelo famoso magnata William Randolph Hearst (que inspirou Cidadão Kane, e o mais importante mecenas dos primeiros quadrinhos), que lançou tanto Thimble Theater como Popeye. Como era também de praxe nas histórias de Popeye, assim como de Mandrake, Fantasma ou Rip Kirby, por exemplo, as tiras de cinco ou seis quadros eram sequenciais entre elas, continuando sempre longas histórias que os leitores acompanhavam afoitos, fosse semanalmente ou mesmo diariamente. Portanto, no material que me chegou em mãos, três assuntos predominam em uma série de situações malucas, muitas vezes non-sense, sem qualquer relação com o que estávamos acostumados a ver, por exemplo, na série animada do Popeye, por onde a maioria de nós primeiro travou contato com o marinheiro. São eles, os temas: os súditos de um inepto (rei Zezinho); o espírito belicoso das monarquias (rei Cabooso); e uma ameaça invisível (os demônios). O que isso tem a ver com o marinheiro Popeye? É uma pergunta que também até agora me aflige.
Dudu e Olívia
Popeye é um tipo clássico, e uma série de características importantes de um imaginário ligado a ele aparecem nesse arco de histórias: primeiro, o próprio marinheiro, aqui no papel de primeiro ministro para Zezinho (conhecido também por Zezé ou Gugu), coroado rei de um exótico país chamado Demônia. Como isso ocorreu, eu não faço ideia, já que não tive acesso ao arco anterior de histórias. Popeye é rabugento, viril, meio sacana. Sua participação na história é bastante coadjuvante, já que, ainda herdeiro de Thimble Theater, sua tira é na verdade uma ciranda de personagens malucos que vão entrando e saindo de cena, realmente como num pequeno teatro, cada um tentando resolver a situação à sua própria maneira, delineando o perfil caricato de cada. Temos, por exemplo, a manhosa Olívia Palito; o mesquinho Dudu, comedor de sanduíches, de índole meio imoral; o teimoso Poopdeck Paps, pai de Popeye, de 99 anos, um velho estranho, obcecado por exercício e tolo como qualquer outro dos personagens; temos Chiquinho, o gigantesco guarda-costas do rei Zezinho; além do próprio bebê-rei, filho adotivo de Popeye, que em sua meiguice parece ter herdado a vibe sacana do pai.
Poopdeck Paps: pai de Popeye, tão tolo quanto qualquer outro
Os quadrinhos destas histórias não possuem qualquer complexidade: são diretos e rasteiros, como a maioria das tiras dos anos 1930. Há pouquíssima variação no enquadramento (já que eram tiras, afinal de contas): quase tudo é moldado dentro de um pequeno quadro retangular virado pra cima, e toda angulação obedece ao plano americano ou ao plano de conjunto. Fiel ao gênero sitcom, o Popeye de Segar possui um traço ainda fino, delicado, claro, atento a pares como Richard Outcault, Chic Young ou Hergé. Se, no início, parecemos padecer a uma certa morosidade da história, sem pé nem cabeça, fora de contexto, fora de um cânone do personagem; logo começamos a nos aproximar da simpatia dos tipos que vão aparecendo, do padrão ritmado das repetições das gags, da ciranda de tentativas de se resolver os problemas, e do humor simplório, escarninho, meio mongol mas delicioso (screwball), que vai se apresentando neste estranho gibi.
Popeye meets Yellow Kid
Ameaça invisível, monarca inepto, seres belicosos
O enredo desta história é, como já disse, maluco: Zezinho, um bebê, é coroado rei de Demônia e precisa enfrentar, basicamente, dois perigos: os demônios que vivem no subsolo, que são criaturas mais afáveis e divertidas do que se imagina; e a rivalidade com um certo rei Cabooso, monarca do um país chamado Cuspidônia, que entra em crise diplomática com Demônia por assuntos da mais urgente importância: caretas, insultos, presentes desagradáveis, etc. Cada um destes assuntos pode ser submetido a uma análise, digamos, estrutural, já que estamos falando de categorias maiores e elevadas de poder e sociedade, como a monarquia e a religião. Segar, um dos heróis da história das HQs, um jovem iconoclástico lamentavelmente falecido de leucemia aos 43 anos, certamente sabia do poder sub-reptício que as mensagens de seus quadrinhos poderiam invocar, e não surpreende que, em primeiro lugar, possamos associar os demônios que vivem no subsolo de Demônia a algum tipo de “ameaça invisível” (o que nos leva desde ao Phantom Menace de Star Wars até a “guerra ao terror” de George W. Bush como exemplos da multiplicação deste meme).
Como os demônios nunca aparecem, é natural que todos os personagens passem a duvidar de suas existências, de maneira que, aos poucos, instigados por um rei que nada faz (Zezinho, um bebezinho, deflagra estruturalmente um tipo de hedonismo da própria monarquia), a própria população acaba se tornando paranoica, voltando-se uns contra os outros, mas ainda assim prestando devida deferência ao seu monarca. É apenas quando surge um conflito de natureza diplomática com outro rei inepto (mas que desta vez peca pelo belicismo, e não pelo hedonismo), é que a população de camponeses de Demônia passa a questionar a autoridade do próprio rei, forçando Popeye, o primeiro ministro, a tomar atitudes delicadas, na fronteira entre a guerra e a diplomacia. No fim das contas, a história trata de um discurso de reis, assombrados por uma possível ameaça invisível, enquanto a população, distante do poder, gira, camaleônica, de um lado para o outro, sem convicção de nada.
Com mil demônios!
Não surpreende, afinal, quando a hilária e abilolada história vai ganhando contornos mais sólidos, que, quando os demônios finalmente aparecem, eles não apenas demonstrem um comportamento de alguma maneira afável (um deles chega a ser apaixonar por Olívia), mas também possuam uma aparência bem “fofa”, de jeito também angelical, propiciando uma trégua no final. E foi justamente no final que eu, já não duvidando de mais nada nesta história, percebi que, em todo o quadrinho, Popeye não havia comido uma lata sequer de espinafre. Este clímax, bem emocionante, vale confessar, é guardado apenas para os últimos instantes, quando, após tentar de todos os jeitos bater nos demônios sem apelar para seu famoso super-alimento, Popeye, apanhando, pede uma lata a Olívia. O efeito, vale também dizer, é devastador, mas de um jeito muito digno, sem ser espalhafatoso, diferente de quando o acompanhávamos no desenho animado. Popeye, casca-grossa, meio que recruta a lata do poder apenas quando está sendo vencido pelo maior de todos os demônios. A lata, é claro, é o suficiente pra ele sentar a porrada em todos os outros demônios, que passam a trabalhar em favor da população. No final das contas, é o homem do povo, sem a ajuda dos dois lados do poder, é que consegue se sobrepujar, dentro de sua dignidade camponesa, e vencer a “ameaça invisível”, que também nem era tão ameaçadora assim. E é isso mesmo: Popeye luta contra demônios. Por essa você não esperava.
Macanudismo no Brasil
/Além de ir em todos os grandes eventos do Centro Cultural no Banco do Brasil e da Caixa Econômica, ainda fui em outros eventos voltados aos quadrinhos, como ComiKong com presença de Oliver Copiel, artista responsável por inovar o visual do Thor; a Bienal de Livro, em uma mesa redonda com Rafael Coutinho, André Drahmer, Lourenço Mutarelli e Rafael Sica; além da segunda edição da Comic Con Rio, com exposição de originais de Will Eisner, presença de diversos cartunistas, inclusive do roteirista Chris Claremont. Recentemente acabou uma exposição em que houve mesas redondas e oficinas com Cartunistas de Brasil e Argentina.
Esta Exposição foi Macanudismo, com mais de 650 tiras, Cartuns e quadrinhos de Liniers. Argentino, nascido em Buenos Aires, atingiu fama e glória com suas tiras no jornal Lá Nácion, assim como em ilustrações para revistas como a Rolling Stone. Lançou até agora 8 álbuns dos Macanudos, sendo 5 traduzidos aqui no Brasil, lançados pela Zarabatana Books. A editora, com sede em Campinas, também lançou outros álbuns de quadrinhos argentinos, como a Fierro, colêtanea da revista argentina que apresenta diversos cartunistas do país.
O artista assina a trilha sonora original do documentário Liniers, el trazo simple de las cosas, que também está na programação. Visite o myspace do músico aqui.
Toda interação contribuiu com um sentimento de conforto que encontramos também nas tiras em exposição do autor. Além das centenas de tiras, também estavam historias em quadrinhos, ilustrações das capas de discos, pinturas e os cadernos de viagens que ele carrega para suas excursões ao exterior. Havia também todos os álbuns do autor para consulta e leitura em uma mesa nos fundos da exposição. No dia seguinte, ocorreu a abertura para o público em geral e também lançamento de Macanudismo 5, na qual Liniers deu autógrafos.
Visitei a exposição em vários dias, pois é difícil conferir tanto conteúdo apenas uma vez. Sou fã dos personagens criados pelo argentino: o monstro imaginário Olga, os Pinguins e os Duendes, O homem Misterioso, e o Gato Fellini. Aliás, as tiras da menina Henriqueta com o gato e o Urso Madrigiaga são, na minha opinião, o ponto alto de Macanudismo. Gosto muito da sensibilidade e das referencias que encontramos, e eu creio que é dentro das expressões, do sensível, que sentimos o quão adulta pode ser uma história na qual boa parte dos leitores são crianças.
Também houve os workshops e oficinas, que eu não pude participar devido ao meu trabalho, mas, para quem teve a oportunidade de presenciar (gostaria de receber suas impressões pelos comentários), foram estas:
Minizimbres, com Fábio Zimbres, no qual ele ensina a fazer um Zine.
Uma Oficina com introdução Ao mundo da Tira, com Adão.
Quadrinhos de Observação, com Rafael Coutinho.
e outros temas que podem ser vistos aqui.
Os quadrinhos de língua espanhola estão passando por um ótimo período aqui no Brasil, depois do paradigma quebrado pela Zarabatana. Hoje em dia é comum ver álbuns publicados de língua espanhola no país. Dia 20/09 presenciei uma mesa redonda entre André Drahmer e Max, cartunista old school de quadrinhos da Espanha, que aqui no Brasil teve publicado apenas o álbum O prolongado sonho do Sr. T.
O livro “Bienvenido”, do Jornalista especializado em quadrinhos Paulo Ramos, também aborda os quadrinhos feitos na Argentina. No início do ano viajei para o Chile e também conferi o que acontece por lá, e escrevi sobre isso aqui na Raiolaser, que, aliás, tem vários textos sobre quadrinhos de lingua espanhola.
HQ em um quadro: Milazzo, em negativo. Por Berardi e Milazzo.
/Do registro indestrutível da memória: sobre Marjane Satrapi
/A balada de Astrid e Stu
/por Pedro Brandt
Como o título sugere — e como o subtítulo A história de Astrid Kirchherr e Stuart Sutcliffe confirma —, a HQ escrita e ilustrada pelo alemão Arne Bellstorf tem os Beatles como coadjuvantes do curto, mas intenso, relacionamento do baixista com a fotógrafa. Stu, como era conhecido, tocou baixo nos Beatles entre 1960 e 1961. Especular como teria sido a história da banda caso ele tivesse permanecido nela é um exercício que não vai muito longe. Sutcliffe morreu de aneurisma cerebral, aos 21 anos, em 10 de abril de 1962.
No palco, Stu se destacava entre os beatles com um charme à James Dean, meio tímido, meio indiferente (por vezes, tocando de costas para o público). Astrid se apaixonou por ele na primeira visita ao Kaiserkeller. Ela falava pouco inglês e Stu pouco alemão, mas o idioma não foi barreira para a união do casal. Em pouco tempo, o baixista estava morando no porão da casa da mãe da moça, onde montou um ateliê e voltou a se dedicar à pintura.
Em algumas passagens, Astrid e seus amigos estudantes de arte comentam o quanto gostam da literatura e do cinema francês. Arne Bellstorf transporta essa predileção estética para a condução da história. Os tempos mortos da narrativa, o preto e branco das imagens e as cenas deixadas em aberto para o leitor preencher evocam a nouvelle vague.
Ao contrário das gravações feitas pelos Beatles acompanhando o cantor Tony Sheridan no período vivido em Hamburgo, que geralmente interessam apenas aos fãs mais dedicados do quarteto, não é preciso conhecer uma músicas da banda para curtir Baby’s in black.
Baby’s in black — O quinto beatle
De Arne Bellstorf. 214 páginas. 8inverso Graphics. R$ 51.