Do registro indestrutível da memória: sobre Marjane Satrapi
/A balada de Astrid e Stu
/por Pedro Brandt
Como o título sugere — e como o subtítulo A história de Astrid Kirchherr e Stuart Sutcliffe confirma —, a HQ escrita e ilustrada pelo alemão Arne Bellstorf tem os Beatles como coadjuvantes do curto, mas intenso, relacionamento do baixista com a fotógrafa. Stu, como era conhecido, tocou baixo nos Beatles entre 1960 e 1961. Especular como teria sido a história da banda caso ele tivesse permanecido nela é um exercício que não vai muito longe. Sutcliffe morreu de aneurisma cerebral, aos 21 anos, em 10 de abril de 1962.
No palco, Stu se destacava entre os beatles com um charme à James Dean, meio tímido, meio indiferente (por vezes, tocando de costas para o público). Astrid se apaixonou por ele na primeira visita ao Kaiserkeller. Ela falava pouco inglês e Stu pouco alemão, mas o idioma não foi barreira para a união do casal. Em pouco tempo, o baixista estava morando no porão da casa da mãe da moça, onde montou um ateliê e voltou a se dedicar à pintura.
Em algumas passagens, Astrid e seus amigos estudantes de arte comentam o quanto gostam da literatura e do cinema francês. Arne Bellstorf transporta essa predileção estética para a condução da história. Os tempos mortos da narrativa, o preto e branco das imagens e as cenas deixadas em aberto para o leitor preencher evocam a nouvelle vague.
Ao contrário das gravações feitas pelos Beatles acompanhando o cantor Tony Sheridan no período vivido em Hamburgo, que geralmente interessam apenas aos fãs mais dedicados do quarteto, não é preciso conhecer uma músicas da banda para curtir Baby’s in black.
Baby’s in black — O quinto beatle
De Arne Bellstorf. 214 páginas. 8inverso Graphics. R$ 51.
Quadrinhos ou romances gráficos?
/Ode à idiotia: a morte de Groo
/por Ciro I. Marcondes
Sempre fui um fã de Sergio Aragonés. Lembro-me perfeitamente de, back in the good old nineties, comprar uma edição velha de Groo, o errante (uma que tinha Groo caminhando, num plano bem aberto, no deserto, junto a um esqueleto de urubus) e ler e reler aquela edição, até então única para mim, de maneira quase psiquiatricamente obsessiva. Estava ali, antes que eu conhecesse o humor da verve da MAD (da qual Aragonés foi um dos mais assíduos colaboradores), um tipo de diferente de HQs, primado por um humor negro, mas não baixo e cínico, como quase tudo que se vê em humor (mesmo de qualidade) hoje em dia. O humor de Groo conseguia ao mesmo tempo ser irônico, ácido, crítico, e leve, suave, quase inocente. Que tipo de inteligência mordaz seria capaz de produzir uma paródia de Conan que conseguia ser quase melhor que o original? Certamente não uma bitolada mente americana. Aragonés, o espanhol-mexicano, com pleno domínio da quadrinização, era a própria mente multicultural que poderia produzir o quadrinho mais engraçado dos anos 80: acostumado a deitar e rolar na linguagem dos quadrinhos mudos em Louder than words para a MAD, ele fez, junto ao impagável Mark Evanier, de Groo uma obra-prima tanto da estética, quanto das paródias, quanto do humor, quanto da linguagem em quadrinhos.
Quando chegou, esses dias, às minhas mãos a edição, escrita e ilustrada por Aragonés em 1998, chamada
Dia de los muertos (publicada pela Pandora Books em 2001 no Brasil), era impossível não pensar: “preciso escrever algo sobre Aragonés para a Raio Laser. Urgente. Preciso, mais do que tudo no mundo. Aragonés. Preciso. Urgente.”. De alguma forma, a obsessão psiquiátrica parecia ter retornado de maneira persecutória e patológica. Porém, um Aragonés de 1998 não é a mesma coisa que a fase áurea de Groo, um compêndio adorável e insuperável de aventuras medievais protagonizada por um idiota de fazer inveja a Homer Simpson. Em Groo, não deixamos de ver tudo que compete aos fanáticos por mediavalismo pop: reis, bandidos, castelos, navios, menestréis, guerreiros, belas donzelas e belas amazonas, tudo no traço ricamente detalhado e potentemente vívido de Aragonés, um mestre da indumentária medieval, dos costumes de época e genial ao verter esta cultura em uma forma de humor.
Groo é a casa do cão Ruferto, o único que acredita em sua astúcia. Groo é a casa do Sábio, que procura ajudá-lo, mas inevitavelmente se impacienta com ele. Groo é a casa de Grooela, a rainha mesquinha e irmã do herói, que preferia vê-lo morto. Groo é a casa de um incontável número de grandes coadjuvantes, personagens que dão cor à saga do mais idiota entre os idiotas. Se Dia de los muertos era apenas uma anedota, já meio preguiçosa, a respeito do capitalismo e da imbecilização dos americanos em relação a culturas estrangeiras, eu precisava voltar ao meu tesouro original. Precisava voltar a Groo.
Infelizmente, porém, a minha coleção completa de
Groo, assim como 90% da minha coleção inteira de quadrinhos, foi levada pelos cupins, estes seres bestiais. A única coisa que me restava em mãos, assim, para satisfazera obsessão persecutória, era reler a edição de A morte de Groo, uma edição fechada, do selo Graphic novel da Abril (que curiosamente não lançava Graphic Novels, mas sim apenas histórias curtas e fechadas, one-shots), que eu comprara num sebo recentemente. Esta história foi publicada originalmente em 1987, e saiu no Brasil em 1989. Com tratamento gráfico diferenciado, amplos quadros detalhadíssimos, colorido à mão e com um roteiro muito inspirado de Mark Evanier, A morte de Groo é uma das histórias canônicas do personagem, e sua sutil inversão moral, quando Groo, retornando como desconhecido, é recebido como herói, torna esta também uma das histórias com maior amplitude para uma leitura final da saga.
Em A morte de Groo, o bárbaro é mais odiado por todos do que nunca antes. O rei Krag, figura enfastiada e de péssimo humor, odeia Groo, e ao mesmo tempo é obcecado por Groo. Seu bobo da corte precisa repetir seguidamente “odeio Groo” para convencer o rei de que... odeia Groo o suficiente. E isso não basta. Há muito ódio sobrando para Groo. Krag chega a mandar matar um homem... por se parecer com Groo. Outro... por andar como Groo. E um vendedor de queijo (comida favorita de Groo)... por feder como Groo! A obsessão do rei por espancar bonecos de Groo e colocar cartazes decretando o repúdio geral a Groo levam a cidade (um pequeno feudo) a uma hilariante caça às bruxas por Groo. Este exasperante repúdio à idiotia de Groo tem um sentido, explicado pelo menestrel, em flashback: o bárbaro, então escudeiro do rei, defenestrou seu exército após se confundir e alçar um bandeira de guerra, ao invés de uma bandeira de paz, conforme era o plano (maquiavélico) do rei. Desde então, Krag não governa, não se importa com seus súditos, não faz um plano de economia, não se preocupa com sua sociedade. Tudo que lhe importa é espalhar aos quatro ventos o ódio a Groo, que se torna obrigatório a todo o reino.
Groo, sem entender o que se passa, acaba virando um fora-da-lei, e, quando entra em contato com o dragão Floom-Floom, buscando redenção, acaba deixando suas roupas e espadas junto a um monte de ossos, que logo são confundidos com a ossada... dele próprio. A notícia da morte de Groo então se espalha, e enormes festividades são lançadas pela cidade, sendo particularmente hilário o funeral de Groo, onde uma galeria de personagens clássicos aparece para demonstrar seu repúdio ao grande idiota. Sempre dentro da lógica da comédia de erros, porém, Groo traça um plano: “As pessoas não sabem o quanto precisam de Groo. Por isso, não sentem falta. Eles iam se dar conta se um grande vilão aterrorizasse todo mundo! Pena que não existe nenhum grande vilão! Nesse caso, vou virar um”.
A tônica de uma HQ como Groo segue a mesma premissa de um humor antigo como o do Krazy Kat de Herriman: Groo sempre tentar fazer tudo de um jeito certo, mas, de alguma forma randômica, ou vítima de sua própria idiotia, tudo sempre sai errado para ele. Ao mesmo tempo, saindo tudo errado, Groo sempre consegue triunfar no final, da mesma maneira que o rato Ignatz sempre acaba preso pelo guarda Pup ao tentar acertar tijolos na cabeça de Krazy. Isso torna, certamente, Groo um dos mais quixotescos personagens dos quadrinhos, e, não por acaso, nesta história, quando Groo procura se tornar o vilão, ele acaba revertendo-se num improvável herói. Isso me lembra o capítulo do próprio Quixote analisado por Erich Auerbach, em que, quando Sancho e o Quixote decidem trocar de papéis, as coisas estranhamente passam a dar certo, mas uma dinâmica de ação ao qual estavam acostumados se esfarela, fazendo ruir a interação entre os protagonistas. Aqui, quando Groo procura se tornar o vilão e reconstruir sua imagem, estranhamente suas ações deletérias acabam por ajudar a cidade, fazendo-o viver um dilema típico do Homem-Aranha: quanto mais ele procura fazer o bem, mais implacavelmente caçado ele se torna.
A exacerbação da idiotia de Groo e todo esculacho pelo qual ele passa certamente fazem do bárbaro um herói ainda muito contemporâneo: profundamente paródico, é um perfeito espelho às avessas dos ideais do heroísmo clássico. Porém, uma verdade mais inteligente emerge das histórias de Groo se analisarmos seus antagonistas: mesquinhos, egocêntricos, traíras e covardes (além de profundamente idiotas), eles nos remetem ao contexto de que o pecado original de Groo (a idiotia) é compartilhado por todos, e não há como não preferir a errância molóide do bárbaro ao mundo dog-eat-dog em que ele erra. Desta forma, Groo ainda traz um reflexo, ainda que pálido, dos heróis da era moderna: torcemos por ele não por ele possuir virtudes, mas por, através de pura ingenuidade, evitar os vícios.
Pinóquio das trevas
/“A história a seguir é uma adaptação bastante livre do romance de Carlo Collodi”, avisa o roteirista e desenhista Winshluss antes da primeira pagina ilustrada de sua versão em quadrinhos para Pinóquio. Nas mãos deste artista francês (nascido Vincent Paronnaud, em 1970), a marionete que ganha vida não é de madeira e seu nariz não cresce se ele mentir. O boneco também não tem fada madrinha, um pai carinhoso preocupado com ele ou um grilo falante fazendo papel de consciência.
Se tanto a obra de Collodi quanto a animação feita a partir dela pelos estúdios Walt Disney pregavam lições visando o bom comportamento dos petizes, Winshluss apresenta em 183 páginas uma visão sombria do mundo que nada tem de conto de fadas. Uma publicação, definitivamente, não recomendado para crianças — mas indicada para quem quiser conhecer uma das mais impressionantes HQs francesas em anos recentes, vencedora do prêmio máximo no festival de Angoulême em 2009. À qualidade do conteúdo, soma-se o ótimo acabamento editorial, com capa dura, papel de alta gramatura, impressão impecável e uma adaptação muito bem-feita da tipografia original.
Com uma trajetória ainda curta nas histórias em quadrinhos, Winshluss é mais conhecido pela premiada versão em longa metragem de animação da HQ Persépolis (cuja autora, Marjane Satrapi, assina com ele a direção do filme). Essa relação com a sétima arte ajuda a entender a habilidade do francês como narrador visual. Boa parte de Pinóquio é contada com imagens, sem balões de fala — é com olhares, movimentos e expressões, acompanhados de diversos recursos gráficos, que ele comunica, com excepcional eficácia, ações, ideias e intenções. Os diálogos ficam reservados para as sequências (algumas, hilárias) estreladas por Jiminy Barata, o Grilo Falante da vez. O inseto, um escritor boêmio e em crise que mora na cabeça de Pinóquio, mais parece a cigarra preguiçosa da fábula de Jean de La Fontaine.
Autômato
Winshluss pontua a história com tramas paralelas, que vão se amarrando com o passar das páginas. O leitor é apresentado a intrigas, assassinatos, tráfico de órgãos e violência doméstica. O Pinóquio de Winshluss foi criado por um Gepeto que de bonzinho tem apenas a aparência. Feito de peças robôticas, o menino pode realizar de tarefas domésticas a ataques militares, mas é um autômato (aparentemente) sem vontade própria ou sentimento.
Solto no mundo, o protagonista é manipulado por todos que cruzam seu caminho. E são esses personagens — em geral, perversos, gananciosos ou perturbados — que vão guiando a história, caso da dupla de mendigos (um trapaceiro, outro cego e fanático religioso), do menino de rua que vira amigo de Pinóquio, do policial depressivo e alcoólatra, dos sete anões pervertidos, do monarca vaidoso e do industrial que explora trabalho infantil. Se tem uma lição que Winshluss dá com seu Pinóquio é que, no meio de tanta escuridão, só se chega à redenção com sentimentos puros.
Pinóquio
De Winshluss. 192 páginas. Editora Globo. Preço R$ 75.
JORNADA!!!
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Local: Auditório 1 do Instituto de Ciências Biológicas
Coordenação: Regina Dalcastagnè (UnB)
Comitê organizador: Ciro Inácio Marcondes (UnB), Gabriel Estedis Delgado (UnB), Igor Ximenes Graciano (UFF), Ludimila Moreira Menezes (UnB), Maria Clara da Silva Ramos Carneiro (UFRJ)
Organização: Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea
Apoio: Departamento de Teoria Literária e Literaturas
Inscrições pelo e-mail:jornadaromancesgraficos@gmail.com
Nesse âmbito, a Jornada de Estudos sobre Romances Gráficos, organizada pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, chega à sua terceira edição confirmando-se como um espaço necessário ao aprofundamento de tais discussões. Reunindo estudantes, profissionais da área de comunicação, artes e literaturas, professores e pesquisadores, o evento cresce a cada ano, envolvendo, a cada vez, novos eixos de debates.
8h às 10h
Paulo Ramos (Unifesp)
Ciro Inácio Marcondes (UnB)
André Cabral de Almeida Cardoso (UFF)
10h30 às 12h
Benjamim Picado (UFF)
Pascoal Farinaccio (UFF)
Rosângela Maria Soares de Queiroz e Cleriston de Oliveira Costa (UEPB)
14h30 às 16h
Sílvia Herkenhoff Carijó (UFF)
Naiana Mussato Amorim (UFU)
Vinicius da Silva Rodrigues (UFRGS)
16h30 às 17h30
Alex Vidigal Rodrigues de Sousa (UnB)
Pedro Galas Araújo (UnB)
8h30 às 10h
Junia Regina de Faria Barreto (UnB)
Anne Caroline de Souza Quiangala (UnB)
Adelaide Calhman de Miranda (UnB)
10h30 às 12h
Valéria Fernandes da Silva (FTB/Colégio Militar de Brasília)
Daniel Leal Werneck e Letícia Cardoso Barreto (UFMG)
14h30 às 16h
Larissa Silva Nascimento (UEG)
Tiago Canário de Araújo (UFBA)
André Valente (UnB)
16h30 às 18h
Rita de Cássia Silva Dionísio (UNIMONTES)
Marcia Heloisa Amarante Gonçalves (UFF)
Juliano de Almeida Pirajá (UEG)
8h30 – 10h
Maria Clara da Silva R. Carneiro (UFRJ)
Rafael Martins (UFMG)
Guilherme Lima Bruno E. Silveira (UNESP/São José Rio Preto)
10h30 – 12h
Ludimila Moreira Menezes (UnB)
Breno Couto Kümmel (UFMG)
Pedro Henrique Trindade Kalil Auad (UFMG)
14h30 – 16h
Dennys da Silva Reis (UnB)
Raimundo Clemente Lima Neto (UnB)
Eliane Dourado (UnB)
16h30 – 17h30
Lucas de Sousa Medeiros (UFU)
Angela Enz Teixeira (UEM)
Oficina Básica de HQ’s, com André Valente
Oficina “História dos quadrinhos em 3 atos”, com Ciro Marcondes
Número 39 da revista Estudos de literatura Brasileira Contemporânea, com dossiê sobre “realismo e realidade”.