OBRIGADO LAERTE!

RAIO LASER escreve dois relatos e faz um singelo vídeo a partir do encontro com um dos grandes da HQ mundial.

fotos e vídeo por Artur Brandt


1: A lucidez de Laerte

por Ciro I. Marcondes

Através de bela iniciativa do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Laerte esteve na UnB na última quarta-feira, para a II Jornada de Romances Gráficos. Pedro conduziu uma reportagem levando o grande mestre à nova geração de quadrinistas brasilienses, e fiquei bicando a entrevista, ali entre as apresentações do simpósio e a oportunidade de ter contato com um artista de referência para mim e todos ali presentes. Laerte (60 anos) deve ter passado por um dia um pouco pesado. Bateria de entrevistas (Correio, UnB TV, Raio Laser) e por fim uma fala de quase duas horas para um auditório lotado. Talvez isso tenha contribuído para que ele tenha se expressado de um jeito tão comovente, que misturava trajetória pessoal com intensa inflexão sobre si mesmo e sobre o mundo. Mas suspeito que não foi o stress que o fez desaguar conversa tão boa e cativante, mas sim sua inquietação.



Na palestra, Laerte recuperou sua história como artista e ser humano, falou sobre como o tropicalismo nos anos 60, o ideologismo marxista e a inconformidade com a ditadura o despertaram de um sono dogmático, da grande arte e cultura erudita, do qual ele não conseguia se desprender. Sua trajetória como cartunista foi repensada como um certo acomodamento, e ele partiu para questionar o modelo do que estava fazendo, incluindo seu próprio humor, e elaborar um tipo bem mais pessoal e indagatório de HQ a partir de 2005. Laerte, procurando revisitar seu momento de crise e reestruturação, citou famosa entrevista de Chico Buarque, em que o sambista põe em cheque a validade do formato da canção – historicizando seu próprio labor artístico a partir da passagem do tempo, do envelhecimento e das instigações que permanecem na mente, mesmo após reconhecimento, prêmios, canonização. Laerte refletiu sobre como o próprio modelo da tira cômica de jornal não tinha mais estrutura e escopo semântico para poder dizer coisas efetivas à massa da juventude metropolitana do século 21, parecendo perceber momentos em que os canais de comunicabilidade entre gerações, gêneros, classes sociais se fecham; ou se abrem a partir de revalorações espontâneas, imprevisíveis, surpreendentes.

Para minha alegria, pude trocar algumas ideias com Laerte, e ele me pareceu uma pessoa tímida, cuidadosa, constantemente reverberando um processar interno difuso, autoquestionador. Estava caprichosamente enfeitado e maquiado, parecendo curtir a satisfação de trabalhar delicadamente a própria autoimagem, pouco se importando para as mil vezes que ouve “gênio!”, “brilhante!”, “mestre!”, diariamente (além das perguntas sobre cross-dressing). Como os maiores dentre os maiores artistas, ele parece ser rigorosamente autocrítico, e este é apenas um dos desdobramentos de sua lucidez. Mencionar Beethoven e Norman Rockewll é outro sintoma de que seus referenciais não são necessariamente os mesmos dos seus leitores, e isso justifica o movimento de botar na berlinda a própria arte, refutar a zona de conforto da canonização e o de aposentar os personagens clássicos. Sem arrogância, apenas num processo de clareza sobre o dinamismo turvo pelo qual passa a consciência do artista sobre sua própria arte, ele separa cuidadosamente a constante bajulação carinhosa que recebe dos fãs. Lembra (parafraseando) o cineasta Yasujiro Ozu, um dos grandes: “Tudo que eu sei fazer nos filmes é como fazer tofu. Faço sempre igual, sem ambição de fazer mais que tofu”.


Laerte parecia surpreendido com o fato de reconhecer, nessa altura da vida, a suposta falência do modelo de arte com o qual ele vinha trabalhando (a repetição constante de quem trabalha com a tira cômica), e que o passar do tempo leva a novas configurações culturais, que renascem do esgotamento de outras. Daí suas tiras contemporâneas, carregadas de contemplatividade e sketches absurdos e às vezes abstratos, mas líricos, com pitadas de reflexão pontuada sobre as condições flutuantes da cultura de hoje. Para os acadêmicos que estavam por ali, essa visão do pós-moderno é sempre pensada, mas lida de uma maneira fria, um tanto laboratorial e distante. O discurso de Laerte ontem, digressivo e carregado de autoanálise, me pareceu bem mais lúcido e integrado a tudo isso, em sua maneira errante e natural, do que a própria fala científica. Obrigado Laerte, por ensinar aos professores coisas já havíamos talvez racionalizado, mas nunca sentido desta forma.

Alegria! Alegria!

2: Laerte e outras barbaridades

por Pedro Brandt

Mesmo eu adorando as tirinhas e histórias curtas do Laerte, eu estava doido para ouvi-lo dizer que está em plena produção de uma história longa, com duzentas e tantas páginas —  a exemplo de Cachalote, a parceria de seu filho Rafael com o escritor Daniel Galera. Mas, ao contrário, ele disse que anda sem saco para desenhar e que, se possível, preferia escrever textos para outras pessoas ilustrarem.

Debaixo do braço, eu trazia um exemplar de Piratas do Tietê e outras barbaridades (essa que o Ciro segura na foto), para mim, a melhor coletânea já feita com o trabalho dele (ainda que só reuna trabalhos mais antigos, a maioria — ou todos? — dos anos 1980), justificativa ideal para esse meu desejo de algum dia ver mais histórias longas do cartunista.

Sempre achei os desenhos do Laerte um deleite para os olhos, tanto pelo detalhismo dos cenários, figurinos, objetos em cena e expressão dos personagens, quanto pela narrativa bastante vívida, que muitas vezes nos dão a impressão de estar vendo um desenho animado. O humor de suas histórias faz rir e pensar. "A terceira margem" (“Vocês sabem qual é o segredo do morcego?”), "Lingerie", "A insustentável leveza do ser", "A noite dos palhaços mudos", "Fadas e bruxas"… todas elas estão no livro citado no parágrafo anterior e são apenas alguns exemplos do que de melhor Laerte fez em sua produção vastíssima.

Além de ser um artista incrível, Larte também é uma pessoa incrível. Acho que é possível perceber isso pelas entrevistas. Eu já tinha conversado com ele por telefone em algumas ocasiões, mas encontrá-lo pessoalmente era um sonho antigo. E na quarta passada, na UnB, só confirmei minhas impressões. Laerte é atencioso, paciente e divertido. Ainda assim, acho que não fiz a entrevista que queria com ele. Precisaria de uma tarde inteira — não, um dia inteiro pelo menos — para conversar assuntos dos mais diversos. 


Digo sem medo de parecer exagerado (e aproveito já para me desculpar, pois sei que ele é bastante modesto): Laerte é um dos maiores artistas dos quadrinhos em atividade. No Brasil ou em qualquer lugar. Só posso agradecer por ele ser também generoso o suficiente para compartilhar conosco suas ideias, inquietações e impressões do mundo.

Mimetizando o vídeo que postamos de Hergé desenhando Tintin, Artur Brandt também fez sua homanagem a Laerte:



 

LEÃO NEGRO: um realismo de vanguarda






















por Ciro I. Marcondes

Após assistir à primeira temporada da inspirada série Game of thrones, da HBO (baseada nos livros cultuados de George R. R. Martin), um estalo: há uma demanda por mundos de fantasia instilados de realismo, violência e verossimilhança. O caráter implacável e intempestivo – certamente mais cruel do que as coisas a que nos acostumamos no imaginário do gênero, tipo Senhor dos anéis ou Caverna do dragão – desta série trouxe um fôlego novo e inesperado para o crescimento do gênero, e os mundos de fantasia se desdobraram para possibilidades obscuras e degeneradas, reflexo estranho de nossas possibilidades, na mesma toada que a ficção científica se aprimorou especialmente a partir da ficção dos anos 70, de Gibson a Dan Simmons.
Nos quadrinhos, este entendimento também se antecipou ao cinema (no caso, TV), especialmente desde a francesa Metal Hurlant. Nomes como Moebius, Hermann, Godard e Ribera já haviam percebido o quão perturbador, antípoda e contracultural poderia ser um mundo de fantasia. Eu particularmente considero mesmo o Príncipe Valente, obra máxima de Hal Foster, como algo de suprema maturidade, não só gráfica e narrativa, mas também na escritura do seu humanismo. Essa linhagem chega a coisas que beiram o surrealismo. Basta lembrar de Miiazaki ou dos irmãos Hernandez. Logicamente, por mais infantil que seja, o Conan de Roy Thomas também deu valiosa contribuição. Porém, o que a maioria das pessoas não se lembra é que uma HQ nacional se antecipou em décadas a esta compreensão de que a fantasia medieval poderia ser um triturador de tabus, um processador do nosso mundo social.

Para adultos

Conheci as histórias do Leão Negro por puro acaso. Nunca ouvira falar, ainda que a série clássica date dos anos 80. Com a recente republicação do material antigo, e a retomada da série em 2010 (pela HQM Editora), os belos álbuns foram parar em algumas bancas mais dedicadas, e consumi estes quadrinhos à moda antiga: folheei, procurei sacar qual era o conceito, e fui convencido pela curiosidade. Na contracapa da edição que comprei (“Histórias de família”), alguns chamarizes que me atraíram: "Duas aventuras com Humor * Violência * Erotismo". Mais embaixo: "PARA ADULTOS". As ilustrações (de Danusko Campos), com acabamento refinado e interessante sombramento, lembram misto não-usual de HQ americana (anabolizada) e europeia (detalhista). Foi o suficiente.

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Leão Negro se passa em um planeta sem nome, com geografia e topografia próprias, onde “diversas culturas de felinoides, canídeos e hienas”, com tecnologia medieval e convívio com seres fantásticos (como dragões), precisam medir forças – militares e políticas – em um trânsito sem fim de guerra e brutalidade. Acho de interesse particular que uma série tão focada em uma cultura de violência e machismo (autoconsciente, claro) tenha sido elaborada pela mente de uma mulher, Cynthia Carvalho, roteirista de excepcional perspectiva detalhista, mestre em ambiguidades e em desarranjar maniqueísmos.

Após ler o volume “Histórias de família” (da nova série) e ter ficado impressionado com a maturidade na elaboração dos personagens e das tramas, além da não-gratuidade dos tais “humor, violência e erotismo” que encontrei por ali, tive por sorte contato também com um álbum da série clássica, esta desenhada por Ofeliano de Almeida, não através da republicação, mas sim porque ela apareceu na tradicional revista portuguesa “Selecções BD”, da qual comprei (também por sorte) dezenas de volumes de uma vez, num sebo. Nestas revistas pude ler o ciclo “O filhote”, que acabou servindo para criar um elo importante entre os personagens das duas séries, tornando tudo mais fascinante e de longa prospecção narrativa.

Polígamos, incestuosos, escravistas, lascivos, infanticidas

Mesmo sem ler a série completa, é possível perceber a beleza toda desta injustiçada HQ nacional. As histórias clássicas se focam no “leão negro” em si, um macho dominador e violento chamado Othan. Através de um mundo flagrantemente hostil (que não fica assim tão atrás de Game of thrones em relação à problematização da própria violência medieval), estes felinos antropomórficos (que não perdem os trejeitos dos animais que os inspiram: leão, gato, lince, tigre, hiena, etc.) precisam justificar ou exorcizar seus próprios demônios internos, e, em meio a soldados, mercenários, prostitutas e loucos, as relações entre eles não poupam resoluções sórdidas, injustas ou imorais. Vale ressaltar a bravura de Cynthia Carvalho em fazer de seu protagonista um legítimo anti-herói. A despeito da simpatia que exerce no leitor, Othan é um macho infiel e selvagemente egoísta. Abandona seus inúmeros filhotes bastardos sem piedade, e com frequencia assassina suas próprias amantes. Herdeiro falido de uma dinastia que anuncia seu próprio fim, ele divide um velho castelo com seu irmão mais velho (Isauh) e sua jovem criada e pretendida (Hera), e um antagonismo de gênios opõe os dois. 

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O arco de “O filhote” se concentra especialmente no abandono de um destes bastardos, o pequeno Kasdhan, filho de leoa militar, Tchí, que acaba se transfigurando numa épica força feminina na saga do Leão Negro. Divida entre a devoção por Othan e uma paixão descontrolada pelo próprio filhote, ela acaba encontrando morte trágica, sendo a única fêmea a convencer o orgulhoso guerreiro a levar um filho para casa. Cynthia cria tensão ambígua e verdadeira entre os conceitos de masculino/feminino em toda a série. Os leões são polígamos, incestuosos, escravistas e radicalmente lascivos, mas ao mesmo tempo a submissão feminina é colocada como um estado mais complexo do que devia parecer, com grande poder de ruptura e penetração na brutal escala dos machos. Neste sentido, a autora procura olhar a cultura do mundo que criou como insider, com poder de relativização, sem tomar partidos, tornando excitantes, na série, tanto o ethos feminino quanto o masculino.

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Enquanto as histórias do arco clássico são mais dinâmicas e aventurescas, alinhadas à perspectiva mais juvenil que esse gênero tinha na época (elas foram publicadas no jornal O Globo entre 87 e 88, e coloridas pela própria Cynthia), as da série de 2010 provocam interessante reviravolta no conceito geral. Em primeiro lugar, há um salto no tempo: Othan e Isauh são leões velhos e amargos, e o filhote Khasdan, um guerreiro de lascívia insaciável, mas mais justo que o pai, é o chefe da família. Ao invés de um castelo sombrio e leões misantropos, temos um lugar povoado por inúmeros bastardos de Khasdan, suas duas esposas gêmeas (filhas de Isauh e Hera), escravos e outros, além dos personagens originais. As relações de família, dentro do contexto bárbaro da cultura dos leões, se torna uma tônica importante da série, que cresce não apenas ao amplificar o potencial psicológico dos personagens, mas também na violência moral e no erotismo.


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As duas histórias curtas, mas bastante primorosas, de “Histórias de família”, servem para trazer à tona a excelência da série nova. Na primeira delas, um pequeno leão negro, filho de um estupro cometido por Othan e rejeitado cruelmente pela mãe, torna-se um militar psicopático e calculista, e visita o castelo para acertar as contas com o velho pai. Não se espante se perceber que temas como estupro e infanticídio são tratados com naturalidade pelos personagens e verossimilhança pela autora, que incendeia os atos deles com pesada contextualização. Os quadrinhos da nova série são mais literários, com mais ajuda dos letreiros, mas, ao mesmo tempo, uma arte mais madura e sensual carrega todas estas atrocidades com humanismo e beleza. Na segunda história, uma das esposas de Khasdan, a delicada Helena, acaba descobrindo sentimentos desavisados quando passa a se aproximar demais de um escravo afeminado e eunuco, apreciador das artes e dos livros. Aqui, Cynthia posiciona seus leitores contra seus protagonistas, que são brutais e insensíveis às necessidades femininas de Helena, que convalesce em legítimo dilema.

Certamente o que encanta em Leão Negro é o fator niilista do antiheroísmo dos “heróis” da saga, criados em uma época em que isso não era moda e nem enfadonho como hoje em dia se tornou. Como podemos verificar em nosso íntimo e nas pessoas à nossa volta, esses leões muito humanos têm razão de serem detestáveis quando o são, e têm razão de serem amáveis quando assim os identificamos, fazendo do Brasil um tipo obscuro de vanguarda quando pensamos em trazer para mais perto de nós estes mundos distantes, criados pela fantasia e infantilizados pela cultura pop. 

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Raridades de um artista raro






















por Pedro Brandt

O trabalho de Watson Portela sempre exerceu um grande fascínio sobre mim. Primeiramente, pelo aspecto mais imediato dos quadrinhos: o visual. Watson é dono de um traço rico em detalhes. Suas páginas exploram diferentes ângulos e diagramações, o que torna a narrativa gráfica mais atraente. A capacidade do desenhista pernambucano de aglutinar influências é notável. Mangá, comics, BD… nada escapa de sua lente. E o mais legal é que, no final das contas, a personalidade do artista acaba se impondo sobre as referências absorvidas. Quanto aos roteiros, Watson já fez de tudo, quadrinhos eróticos, western, ficção-científica, infantil, humor... A abordagem em suas histórias vai do nonsense ao filosófico, geralmente expressando sua visão do mundo. Um certo mistério envolve suas HQs, talvez por isso elas encantem tantos leitores.

Tenho muitas revistas dele em casa. Um pedaço da minha coleção da qual me orgulho. Mas me surpreendi dia desses, quando entrou no ar o site oficial de Watson Portela. Mais do que juntar ali o que já se encontra solto pela internet, o espaço tem como proposta apresentar desenhos raros, muitos nunca publicados. Um prato cheio para os fãs do cara, que é um dos grandes desenhistas de quadrinhos brasileiro. Ídolo nos anos 1980, ele ficou anos meio sumido, mas vem planejando sua volta: é um dos participante do volume três de MSP 50 (projeto tributo aos personagens de Mauricio de Sousa, que será lançado em setembro) e trabalha também em uma graphic novel do personagem Cabeça Oca.

A imagem que ilustra esse post é um das minhas favoritas, uma pin up com vários dos personagens criados por ele. Quem quiser conhecer melhor a produção de Watson Portela, recomendo uma visita ao site Quadrinhos Brazukas, que disponibiliza para download várias HQs do autor. A série Paralelas é uma das melhores portas de entrada para o universo watsonporteliano.


HQ em uma tira: o tédio de Charlie Brown, por Charles Schulz



Charlie Brown é o homem moderno (Charlez Schulz, 1950): Esta tira publicada por Schulz ainda em 1950 (primeira série dos Peanuts) tem o mérito de, com quatro requadros iguais e uma única fala, nos premiar com três avanços louváveis em histórias em quadrinhos: 

1 - Estabelecer, de maneira 100% consciente, um nível difuso de temporalidade em quadrinhos. Os quadros são iguais, o tempo impreciso, mas a ideia do tempo está toda lá: é o tempo do tédio, do momento de autorreflexão, um tempo sem duração cronológica que necessariamente precisa se remeter ao universo íntimo e psíquico dos personagens. Um tempo de um mundo relativo, que aproveita um mecanismo absurdamente simples e exclusivo dos quadrinhos. Fosse no cinema, esse tempo poderia ser marcado, cronometrado. Nos quadrinhos, ele transmite a ideia de eternidade íntima.

2 - Em consequência dessa primeira observação, vem a segunda: Schulz, modesto que fosse, despretensioso que fosse, dominava um nível poético de linguagem, abandonando qualquer traço narrativo (não tem história aí, não tem ação, não tem passagem do tempo) para subir em direção a um estado contemplativo, emulsor de melancolia, sem deixar de lado sua observação bem-humorada (mas não cínica) do cotidiano. Um dos primeiros poetas dos quadrinhos, e ainda precisamos de outros.

3 - Mais importante ainda, essa tira, sem a presença de um gancho narrativo, do Snoopy, de uma história ou sequer de dois desenhos diferentes entre si, é capaz de ser uma metonímia de todo o conceito que Schulz criou para os Peanuts, e especialmente de Charlie Brown. Olhando bem para esses quatro quadrinhos, é possível dar alguma verificabilidade ao insight de que Charlie Brown (espécie de alterego do autor) representa um arquétipo próprio do nosso tempo, de um sujeito inseguro, pessimista, melancólico, perdido no caos do mundo moderno, mas ao mesmo tempo imbuído de uma estranha graça, de um loserismo encantador, pelo qual demonstramos não só pena, mas também afeto e admiração. Essa impotência diante dos desafios do mundo, da consciência da complexidade do mundo, foge a qualquer arquétipo que tenhamos utilizado nas eras anteriores da nossa história ocidental, baseada em heróis gregos, cartas de tarot ou outras reminiscências antigas. Charlie Brown é a nossa consciência contemporânea e Charles Schulz um gênio? Respira fundo e diz "sim". É assim que as coisas são. (CIM)

Gêmeos quânticos





















por Ciro I. Marcondes

Uma história que reune, numa tacada só, o grande potencial de invenção e ao mesmo tempo a inflexão existencialista dos quadrinhos dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá está na edição de 10 Pãezinhos lançada pela Devir em 2005, chamada Crítica. Ela se chama “Reflexões” e, com cinco páginas fugazes, acho que o que se deve dizer sobre esta história não deve, por necessidade de evitar a redundância, passar de um comentário, já que estas páginas traçam mais que uma simples narrativa, mas sim todo um conceito, uma introvisão bem sacada do mundo.

Um comentário, sim, portanto. Não gosto muito de fazer paráfrases em meus textos, mas, vejam bem, esta história é um loop de certa forma fractal e abre espaço para continuidade infinita. Sinopse: um cara entra no banheiro meio embriagado, feliz da vida por uma “gostosa!” ter dado mole pra ele após eles se esbarrarem casualmente. Logo depois, no mictório, ele percebe uma figura idêntica a ele, mas macambúzia e cabisbaixa (bastante sinistra) mijando ao seu lado. Ele se surpreende, assustado (a HQ mostra dois planos opostos entre personagens idênticos), e diz, em voz alta: “mas... você sou eu!”. A figura macambúzia explica-lhe então que ele apenas havia sido o primeiro até o momento em que ele esbarra na garota. Porém, a figura estranha e sombria explica-lhe que ele era uma outra versão do primeiro, que não havia parado para falar com a garota após esbarrar nela – e, fundamental, nenhuma garota havia dado bola para ele – e que ele entrava no banheiro ainda deprê, achando sua vida uma merda. Quando a figura triste percebe apenas que é uma pálida versão não materializada de uma possibilidade de futuro ou presente alternativo, sua voz começa a fenecer e ele desaparece, deixando nosso herói original pasmo com o fenômeno louco que simplesmente acabara de ocorrer.

Bem, estas duas primeiras páginas em si já são suficientemente intrigantes para que larguemos o gibi de lado por alguns instantes para ajustar os dados que a história simplesmente acabara de jogar para o leitor. No meu caso, os insights se desdobraram em duas tendências: 1 – lembrei de situações bastante análogas que ocorreram comigo mesmo em ocasiões da minha vida. “Poderia ter dito isso”, “poderia ter feito aquele gesto”, “poderia ter aceitado aquilo”, “poderia ter continuado aquela coisa”, “poderia ter voltado atrás”... enfim, “acho que aquela garota estava dando mole para mim, mas eu não fiz nada, mas eu poderia ter feito alguma coisa”. 2 – A história dos gêmeos insuflou-me (bela palavra) com aquele afã (outra) louco da probabilística, que me acomete, e que remete à física quântica, em que na verdade o mundo é um conjunto de dados em potencial que podem ser realizados, e que a verdade material que vemos é apenas o resultado da realização destas condições, e, especialmente, que outros mundos abrigam as probabilidades que não se realizaram (conhecem a Teoria-M?). Portanto, no caso desta história, de fato em alguma outra dimensão ou realidade existe um protagonista que não xavecou a garota, e que continua deprê, etc.

As páginas seguintes da história corroboram estas ideias, afinal, o protagonista, já pasmo diante do que ocorrera e suspeitando do equilíbrio de seu estado mental, vê aparecer novamente uma versão de si no banheiro, porém relaxado e bêbado, mijando. O preâmbulo do diálogo meio que se repete (“Você de novo”?) e a terceira versão desse mesmo cara explica-lhe que ele não era aquele outro deprê e sim ele mesmo, segundos depois, no banheiro, após a experiência de entrar em contato em primeiro lugar com a sua versão deprê. A diferença é que ele era uma versão que não havia ligado para a “nóia” da aparição da versão deprê, desencanou-se da estranheza do ocorrido e voltou logo para a festa para curtir a mina que lhe dera mole. Ou seja, a página anterior, em que o protagonista fica pasmo com o encontro com a versão deprê simplesmente não existira na realidade do protagonista desencanado. Enfim, o loop é explicado pela própria versão desencanada: “Exatamente assim. Você ta aí pensando no seu encontro, noiado... não consegue nem mijar direito... e a mina lá fora vai cansar de esperar... e vai encontrar um outro panaca. Eu nem liguei e voltei lá correndo”. Depois, finaliza: “Esse é o problema. Você não pode querer ser outro senão você mesmo. Você tem que desencanar do cara que tá do seu lado... mijar de uma vez... e tocar sua vida”.


No final das contas, parece que a lição dos gêmeos tem mesmo mais a ver com conviver pacificamente e, talvez, respeitosamente, com suas escolhas e não ficar remoendo questões e decisões passadas do que com a natureza quântica dos fios probabilísticos que tecem a realidade do mundo. De qualquer forma, não me saiu da cabeça esse loop de possibilidades que a história instala, de maneira até irônica (pois o que ocorre com o personagem é o que se apodera do leitor): o insight, no ato de mijar, sobre uma versão covarde de si mesmo que não fala com a garota é em si uma outra escolha, que desdobra um outro espaço-tempo, que o impede de sair imediatamente e ainda assim, mesmo não sendo a versão deprê, correr o risco de perder a garota, e portanto, não se tornar a versão desencanada, que só ocorre se a versão noiada parar de ser a versão noiada. O fato de a edição apresentar duas versões desenhadas da história, uma em seguida da outra, mas com divergências mínimas, das coisas, pode ou não ter a ver com esse caráter fractal. Mas, pra mim, é divertido pensar que sim.

A ideia é bonita, elegante, e prevê um multiverso em simultaneidade, com todas as versões possíveis, de todas as escolhas e ações que fazemos, coexistindo e metaforicamente insistindo (para cada um de nós) e chamando atenção sobre seu próprio “eu poderia ter sido se não tivesse...”. Pensar, no fundo, que um mundo invisível e inacessível de coisas assim segue seu curso lado-a-lado com o nosso pode até ser um tanto abstrativo, mas creio que este exemplo elucida a capacidade dos gêmeos de colocar, numa linguagem e universo informais e acessíveis, sem pingo de pedantismo, uma dimensão profunda de nossa capacidade de autorreflexão e ao mesmo tempo de reverberar escalas profundas e filosóficas da realidade. Prova maior disso é o fato de que ler a história nos introjeta estas ideias instantaneamente, com o poder singelo e leve dos quadrinhos. Já tentar parafraseá-la numa linguagem simbólica como a escrita pura, caso do que estou fazendo aqui, se torna enfadonho e confuso. Era isso, enfim: elucidar essa qualidade instantânea e imediata dos quadrinhos, pelo nanquim quântico dos gêmeos, era isso que era o propósito inicial deste comentário.  

O que são BDs? Pt.2


por Ciro I. Marcondes

Conforme vimos no primeiro post sobre a cultura da BD clássica, as revistas que coletavam jovens autores dos anos 40-60 na França e na Bélgica – Tintim e Spirou – foram responsáveis por uma verdadeira diáspora na europeização (especialmente francófona) das histórias em quadrinhos. E antes que a BD atingisse sua faceta adulta, erótica e delirante (herdeiros da Metal Hurlant), esses quadrinhos supostamente infantis foram responsáveis por construir um imaginário estilístico e temático: paródico, grotesco, cartunesco e especialmente denso em termos de humanidade para os personagens. Aqui, mais algumas BDs que se destacaram nesta trajetória.

1 – GASTON LAGAFFE – Franquin

André Franquin foi um dos mais geniosos artistas belgas a saírem do jornal/revista Spirou durante seu apogeu nos anos 50, e muito disso graças a uma transfiguração de si mesmo em seu personagem mais famoso, o gaffeur patético e picareta Gaston Lagaffe. Este personagem, que já nesta época transpirava o espírito de contradição entre o desejo de liberdade moderno e o andamento aborrecido e rotineiro no capitalismo avançado, tem interessante reverberação nas adoráveis comédias italianas de Mário Monicelli e Dino Risi. Franquin em princípio se destacou em história de jornal, de um página, conforme era costume nas HQs mundiais da primeira metade do século. Gaston ainda carregava a bandeira de ser um trabalho metalinguístico para as edições da revista Spirou, pois ele trabalha numa ficctícia redação da própria revista, não raro cruzando com outros personagens importantes da publicação, como o próprio Spirou e Fantasio.

De certa maneira, o humor aloprado e politicamente incorreto de Gaston, junto com a habilidade minuciosa de Franquin para desenhar expressões faciais e detalhes caricaturescos para seus personagens é que popularizou esta HQ como uma das mais avançadas de sua época. Gaston é uma espécie de “orêia-seca” da redação, folgado e preguiçoso, cuja importância resume-se basicamente em enviar a correspondência e consertar coisas. A intenção de mostrar um escritório como um ambiente insuportável e altamente procrastinável antecipam alguns dos produtos de humor contemporâneos mais refinados sobre o cotidiano do trabalho, como a série The office e o Vida de estagiário, do Alan Sieber. Tudo isso somado a um conjunto carismático de coadjuvantes e belas garotas (vela ressaltar a habilidade preciosa dos autores da BD clássica em desenhar adoráveis caricaturas da beleza feminina), além das aspirações desastrosas de Lagaffe em sair do detestável ambiente da redação tornando-se inventor (ainda não tão longe das aspirações dos jovens contemporâneos que trabalham em escritório), que geram ótimos plots. Acho que é motivo suficiente para considerar essa HQ um item obrigatório, especialmente se buscamos algo capaz de te conquistar em uma só página.


2 – SPIROU E FANTASIO – fase Janry e Tome

O personagem Spirou é uma criação tão antiga quanto o Super-Homem e foi um dos pilares tanto para a consolidação da editora Dupuis (fundada pelo visionário Charles Dupuis), quanto pela sobrevivência da Revista Spirou, quanto pelo crescimento da HQ franco-belga. Spirou é um simpático grumete (ajudante) de hotel, virtuoso e bem-intencionado, à maneira de Tintim, com o adicional de sua timidez ser um ingrediente irresistível a belas garotas. O coadjuvante Fantasio, um fotógrafo mais descolado e de arquétipo mais politicamente incorreto e malandro, foi criado já nos 40, e a série passou pelas mãos de vários mestres da BD belga, como Rob-Vel, Jijé e teve fase áurea nas mãos de Franquin. No nosso caso, vale destacar a fase mais contemporânea, desenvolvida ao longo de 20 anos pelo desenhista Janry (Jean-Richard Geurts) e pelo roteirista Tome (Phillipe Vandevelde). Nas mãos destes autores os personagens ganharam tom bem mais aventuresco e de espionagem, com interessantes doses de romance e erotismo. Considerando que Spirou e Fantasio é tradicionalmente uma HQ infantil, é admirável as fronteiras entre o mundo das crianças, dos adolescentes e dos adultos que a série quebra com elegância e precisão narrativa, sem insultar ou superestimar a inteligência infantil, tudo isso ajudado pelo fantástico e carismático talento gráfico de Janry. Os textos completos de Tome, cheios de referências interessantes e aprofundamentos narrativos à Will Eisner, conferem o selo de qualidade definitivo para esta fase da série. Como se já não bastasse, a dupla ainda é responsável pela série Le petit Spirou (“O pequeno Spirou”), uma acertada e lasciva versão infantil dos personagens, capaz de fazer os roteiristas de Turma da Mônica Jovem desejarem abandonar suas carreiras para prestar concurso público.

3 – LUCKY LUKE -  Morris e Goscinny

Antes do monstruoso e avassalador sucesso de Astérix, Goscinny – um dos grandes escritores de HQ da história – trabalhou com o não menos lendário desenhista Morris, da primeira leva de grandes autores belgas. O resultado, durante mais de dez anos, foram as incrivelmente famosas histórias do cowboy monossilábico Lucky Luke, que traziam o estilo errante e dramaticamente preciso de Goscinny ao traço mais fino e artístico de Morris. O resultado, mesmo que seja mais antiquado e menos arrojado que o posterior Asterix, é uma HQ histórica e fenomenal que se junta à vasta produção dos fumetti italianos e aos filmes de bangue-bangue spaghetti nos anos 70 como uma tentativa de a cultura europeia construir sua própria reflexão – dentro do pop, claro – de um universo e uma categoria artística exclusivamente americanos. A aproximação das culturas europeias com o distante mundo do velho-oeste curiosamente começa com um embargo de importação de gibis (anos 40) americanos durante e após a segunda guerra, obrigando os europeus a escreverem historia de bangue-bangue se quisessem ter contato com isso. Lucky Luke talvez seja um dos produtos mais bem-acabados dessa cultura, sendo ambiguamente entusiastas e críticos do passado norteamericano. Tantas as paisagens de Morris quanto os personagens de Goscinny são devedores e dignos renovadores do western clássico americano, amplificado porém por um senso de humor e um olhar cético típico da cultura francófona.

4 – UMPA-PÁ – Goscinny e Uderzo

Umpa-pá (Oumpah-pah) é de certa maneira um complementador de Lucky Luke e também um outro lado da inteligência quadrinística mostrada em Asterix por Goscinny. Mesmo que não tenha sido um grande sucesso como os anteriores, esta HQ parece subestimada mais por aspectos fortuitos do mercado e do timing do seu lançamento do que pela qualidade artística. Vamos falar sério: Umpa-pá foi criado na mesma época de Asterix, pelo mesmo escritor e mesmo desenhista. O apego imediato que o público francês e logo mundial teve pelo inigualável subtexto político de Asterix certamente ajudou não apenas a ignorar as histórias da América colonial de Umpa-pá como para fazer seus autores desistirem da publicação após 5 álbuns. O tempo, porém, sempre dá abertura às obras-primas, e hoje podemos ler a incrível alegoria colonial das histórias do guerreiro indígena Umpa-pá (um tipo escoteiro, que tem dificuldade em processar não só a cultura do homem branco, mas especialmente os entrecruzamentos sociais entre as culturas) como uma das visões mais antecipadoras (estamos falando dos anos 50) do debate humanista do multiculturalismo e do pós-colonialismo a partir dos anos 70. Muito antes que o cinema sonhasse em reverter as relações de poder cultural no passado colonial das américas, os quadrinhos investiam neste tema de maneira lúdica e ousada.

ESPANHA

O universo das HQs espanholas não é necessariamente tão próximo às BDs e ainda falta alguém aqui neste blog para fazer uma examinação mais completa deste vasto e desconhecido continente que são los cómics (mas estamos cuidando disso!). No entanto, com um acento mais mediterrâneo e traço mais grosseiro e rústico, é lógico que a mistura entre as fronteiras do cômico, do dramática, do realismo e do cartunesco, assim como a permuta entre mundos infantis, adolescente e adultos também influenciou HQs populares da Espanha, e cabe um pequeno comentário sobre uma delas:

5 – MORTADELO E SALAMINHO- Francisco Ibáñez

O temperamento ibérico e mediterrâneo dos espanhóis produz ótimos efeitos quando o modelo plural das BDs francófonas se adapta ao talento de Ibáñez, um dos grandes “magos del humor” das HQs de língua espanhola. Mortadelo e Salaminho (Mortadelo y Filemón) surgiram (1958) um pouco depois do esplendor da escola belga, mas pode-se dizer que está alinhado em um profundo movimento de renovação da HQs de línguas latinas. Os quadrinhos de Ibáñez, sobre dois agentes secretos insuperavelmente estúpidos, são recheados de chistes grosseiros e escatologia, além de piadas mais diretas e um vínculo bem direto com acontecimentos midiáticos, políticos e éticos que atravessam os anos junto com a série. Este apelo mais rústico de Mortadelo e Salaminho torna esta HQ menos poética e elegante que as BDs francófonas, mas Ibañez tem sua maneira de compensar com uma quadrinização hiper-meticulosa com belo trabalho em onomatopeias, linhas de movimento, hipérboles hilárias e insistente repetição de gags e cenas, apostando numa narrativa propositadamente irritante e neurótica. 

HQ em uma página: poesia numa tigela de leite, por Biu e Shiko

A muda marcha ameboide de um exército albino (Biu e Shiko, 2006): o que mais impressiona neste improvável e imprevisível romance gráfico dos paraibanos Biu e Shiko é o teor da narrativa metamórfica e lisérgica que, aparentemente, não diz nada e diz tudo ao mesmo tempo. Atravessar esta HQ acaba dependendo de uns fatores que geralmente desprezamos: nosso estado de espírito, que tipo de estimulante consumimos, controle da impaciência, etc. Numa sintonia correta, as imagens inteiras e grafitadas de Shiko, com seus hipercloses e paralisias, abrem nossa passagem para insights e intrusões vigorosas, íntimas, sem ordem, num voo livre. Por estranho que pareça, esse avanço deliberadamente poético é raro em HQ. Eu poderia selecionar imagens eróticas incríveis, referências bem sacadas ou o apelo mezzo cyberpunk mezzo manguebeat da parada, mas fico com esta página em que um dos personagens defronta-se metafisicamente com o ato singular da queda progressiva e irregular do leite que escorre da caixa para a tigela, num imaginário baudelairiano. Potente. (CIM)


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