Um Pedaço de Madeira e Aço: brisa dum fim de tarde ameno

Um Pedaço de Madeira e Aço: brisa dum fim de tarde ameno

Ano passado

critiquei duramente

– porque realmente não me agradou tanto – o

Moby Dick

do Christoph Chabouté. Recentemente a obra foi agraciada com os prêmios HQ Mix de Melhor Adaptação para os Quadrinhos e Melhor Edição Especial Estrangeira. Isso quer dizer que me arrependo do que falei antes? Nem de longe. Aqui na

Raio Laser

temos autonomia para falar bem e mal de todo mundo. Não queremos agradar ninguém. Só temos compromisso com a palavra sincera e com o leitor do nosso blog. Bem, talvez para me provocar, o pessoal da Raio me pediu para resenhar esse lançamento do Chabouté. Será que vou malhar o cara de novo?

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Sometimes, silence can be like thunder*: mais três visões sobre quadrinhos mudos

Sometimes, silence can be like thunder*: mais três visões sobre quadrinhos mudos

“Um gato tenso, tocaiando o

silêncio

”. Esta é a pequena definição que a poeta Orides Fontela atribuiu à natureza da poesia. De fato. O poético reside no fracasso assumido da tentativa de expressão do indizível. Nos pensamentos que não se completam. Na falta ao se tentar falar da imensidão do espaço. No arrebatamento ao encontrarmos a barreira que limita o entendimento e a imaginação. Sim, a poesia tem algo que margeia o silêncio, que passa a ser vetor inescapável de sua veiculação. As palavras poéticas, seja na economia de Fontela ou nos milhares de versos de um Camões, existem para circundar e mordiscar estas esferas de vazio e abnegação que nos cercam. Estes silêncios são vultos que, com a luneta das imagens poéticas, conseguimos ver bem de longe. Aterradores vultos. 

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Heavy Liquid de Paul Pope: modernidade líquida em doses selvagens

Heavy Liquid de Paul Pope: modernidade líquida em doses selvagens

Quem colabora hoje com a RAIO LASER é o nosso leitor Pedro Ribeiro, que veio com esse ótimo texto sobre Paul Pope e sua obra máxima, a intrigante

Heavy Liquid

. Obrigado Pedro! (

CIM

)

Pedro Ribeiro é professor de língua inglesa e também designer e ilustrador. Começou a ler quadrinhos desde criança, e a primeira revista que se lembra de ter lido (e ainda guarda consigo) foi

Heróis da TV 37

, de 1982, que continha o início da saga de Adam Warlock por Jim Starlin. Pedro também escreveu, desenhou e editou a revista de seu personagem Jack Ratazana em 1999, que influenciou alguns artistas da cidade na época em que foi lançada em Brasília. Ele também ganhou um concurso de criação de selos para os correios da Coreia do Sul e trabalhou nas editorias de arte do Correio Braziliense e do Jornal de Brasília. Hoje mora com sua esposa, filha e cachorro em uma vizinhança que possui uma ótima banca de jornal (item indispensável para sua rotina de leitor) e participa de feiras de ilustradores de sua cidade.

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On a mountain range, I’m Dr. Strange: impressões sobre a arte de Steve Ditko

On a mountain range, I’m Dr. Strange: impressões sobre a arte de Steve Ditko

Em 1971, quando o revolucionário rockstar Marc Bolan lançou seu segundo disco sob a alcunha T.Rex – o imprescindível boogie pulsante de

Electric Warrior

–, um par de versos na primeira faixa “Mambo Sun” chamou a atenção dos fãs de quadrinhos: “Girl, you're good / And I've got wild knees - for you / On a mountain range / I'm Dr. Strange - for you”. A menção ao Doutor Estranho é completamente prosaica, é claro. Um subterfúgio para uma rima simpática. Mas não deixa de ser legal que um “cosmic dancer” como Bolan tenha se aproximado do “mestre das artes místicas” (ou, em outros casos, “mestre da magia negra”) para agitar um flerte descolado e chacoalhar nossos sentidos nesta histórica faixa de abertura.

E ele chegou a entrevistar Stan Lee em 1975!

Somente alguém muito alheio ao cânone visual e cultural do final dos 60’s e começo dos 70’s para não pensar que o glam rock – em todo o seu desbunde que une um psiquismo espacial/alienígena/psicodélico com diversos tipos de ambiguidade (no sexo, na filosofia, na moda) – tem realmente tudo a ver com o imaginário esotérico-kitsch (que parece baseado num clichê de teosofia) que Steve Ditko imprimiu nas histórias do Doutor Estranho.

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FIQ parte 3 – Intérprete de uma história negra do Brasil: entrevista com Marcelo D'Salete

FIQ parte 3 – Intérprete de uma história negra do Brasil: entrevista com Marcelo D'Salete

Parte 3 de nossa série de

entrevistas com grandes personalidades presentes no FIQ 2018

. Desta vez, com ninguém menos que Marcelo D’Salete. Não conhece ainda? Hmmm... Ainda dá tempo de correr contra o prejuízo.

Nascido em São Paulo, Marcelo D’Salete é um dos nomes de maior destaque no cenário quadrinístico brasileiro atual. Com forte pegada autoral e intenso engajamento em temas de cunho racial, os quadrinhos de Marcelo têm se destacado por abordar temas complexos da historiografia nacional – como a escravidão – pela perspectiva dos povos oprimidos. Dentre seus trabalhos de maior reconhecimento, incluem-se

Cumbe

(Veneta, 2014) e

Angola Janga

(Veneta, 2017). Em 2018,

Cumbe

foi indicada ao Prêmio Eisner (premiação máxima dos quadrinhos norte-americanos) na categoria melhor publicação estrangeira nos EUA. Tomara que ganhe.

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FIQ parte 2 – Entrevistas – Mulheres que arrebentam: Claudia Ahlering e Janaina de Luna

Mais alguns dos bate-papos que tivemos no FIQ 2018, desta vez só com mulheres que fazem a diferença no mundo dos quadrinhos. 

por Marcos Maciel de Almeida

Claudia Ahlering

Claudia Ahlering é desenhista de Ghetto Brother, escrita por seu compatriota alemão Julian Voloj. O quadrinho narra a trajetória de Benjy Melendez, líder de uma das maiores gangues do Bronx nos meados dos anos 70. A história de Benjy tem fortes conexões com aquela contada no melhor filme já feito pela humanidade, Warriors – Os Selvagens da Noite (1979), de Walter Hill. (MMA)

Raio Laser: Você mencionou em entrevistas anteriores que não teve muita participação na elaboração do roteiro de Ghetto Brother. Eu gostaria de saber um pouco de sua experiência como leitora dessa graphic novel. Em minha experiência particular, achei a história da revista surpreendente, ao misturar violência, religião e hip-hop. Gostaria de saber se você também se surpreendeu com o desenvolvimento da HQ. 

Claudia Ahlering: Não foi algo tão surpreendente o elemento religioso, porque minha visão sobre a história compreende uma multiplicidade de temas, ou seja, as gangues, o hip-hop e a identidade cultural judaica. Para o autor da revista, Julian Voloj, todos estes temas são muito importantes, especialmente porque ele é judeu. Inclusive, ele escreveu um novo quadrinho que também enfocará o aspecto religioso.

A questão religiosa é bastante preciosa para o povo alemão, e isso inclui temas como a ocupação do Bronx por imigrantes judeus.

Essa abordagem religiosa interessa muito mais para os alemães que a cultura das gangues. E esse também é meu caso. A questão da identidade cultural judaica é bastante cara para mim, em razão de sua proximidade com a minha cultura e isso não ocorre com a cultura de gangues, que já é algo mais distante. Apesar disso, achei toda a experiência bastante enriquecedora: contar uma história de gangues e poder puxar um fio inesperado ligado à questão religiosa. 

Raio Laser: Você foi criada na Alemanha. Qual a sua percepção sobre o fato de que jovens americanos tendam a ser mais violentos – e aí eu incluiria também a questão dos massacres em escolas –, que os jovens europeus, sobre os quais há menos relatos referentes a condutas agressivas? Baseada em sua criação como jovem europeia, como você vê essa questão?

Claudia Ahlering: Na Alemanha, as leis para aquisição de armas são muito mais rigorosas que nos Estados Unidos. Lá, as pessoas simplesmente não pensam em se armar. Elas ainda têm o trauma da Segunda Guerra. Há um sentimento do tipo: “Aquilo foi muito horrível. É melhor que não tenhamos armas”. A mentalidade geral é essa. As pessoas não acham que seja importante ter uma arma em casa para se proteger. Entretanto, isso está mudando um pouco, com a questão do terrorismo. Ainda assim, persiste a mentalidade de que vivemos num lugar no qual não precisamos andar armados. 

Raio Laser: Para mim, o grande poder de Ghetto Brother está relacionado à sua faceta multitemática. Na sua opinião, qual o aspecto mais impactante dessa HQ? 

Claudia Ahlering: O que mais me impressionou foi a questão da rivalidade entre as gangues de jovens. Nos lugares em que morei, tanto em Berlim, como em Hamburgo, que é minha cidade natal, essa questão da rivalidade juvenil é algo que ficou no passado, não é tão forte como foi em Nova York. Então, para mim, foi muito impactante, ao fazer essa história, tentar entender porque surgiam essas rivalidades. Eu tenho a impressão que o Julian escreveu de uma forma que fosse divertida e legal de ler, mas queria chamar a atenção para a questão dessa rivalidade e violência entre jovens. Ele queria fazer as pessoas pensarem, enquanto estivessem se divertindo. Era como se dissesse: “Olha, isso pode acontecer, mas não é legal”. 

Raio Laser: Sempre fui grande fã de filmes de gangues, como The Warriors (EUA, 1979) e The Wanderers (EUA, 1979). Acredito que, no Brasil e na América Latina, muitas pessoas também tenham fascínio por essa temática. De modo similar, na Itália há grande admiração pelo Velho Oeste. Nesse sentido, quais seriam as principais influências culturais midiáticas para a juventude alemã?

Claudia Ahlering: The Warriors foi influente na Alemanha. Em geral, os jovens alemães sofrem bastante influência da cultura norte-americana, já que no pós II Guerra Mundial nosso país recebeu muita ajuda financeira dos EUA. Ainda assim, persistem muitas subculturas que são tipicamente alemãs, tais como a ocupação cultural de moradias, os movimentos culturais de resistência e as lutas sociais dos anos 80. Para nós, o fenômeno da cultura de gangues é algo muito distante, percebido como de procedência norte-americana, não chegando a influenciar tanto nossa cultura. Os jovens alemães veem a questão do Bronx nos anos 70 com um misto de nostalgia e curiosidade, para saber mais sobre o passado, mas não é algo que chega a nos influenciar. 

Warriors, Os Selvagens da Noite (1979)

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Janaina de Luna

Janaina de Luna é editora-chefe e proprietária da Mino Editora. Criada em 2014, a empresa ganhou destaque em razão da alta qualidade gráfica e artística de seus lançamentos. Indo na contramão do mercado na época de seu surgimento, a Mino apostou em publicações de autores nacionais em formato luxuoso, obtendo grande sucesso. Com um catálogo bastante variado, que passa por queridinhos dos comics mundiais como Jeff Lemire e autores de forte pegada autoral/independente como Seth, a editora conseguiu espaço cativo no coração dos fãs da nona arte no Brasil. (MMA)

Raio Laser: Acredita que as editoras de quadrinhos no Brasil compitam entre si por um público que é fixo ou cada uma teria o próprio espaço delimitado? O lançamento de uma editora influencia o da outra, tendo em consideração que os leitores têm orçamento limitado?

Janaina de Luna: Eu acho que sim. Não necessariamente existe uma competição direta, mas achar que não existe uma competição é meio ingenuidade, porque o dinheiro das pessoas é finito. Então as pessoas são obrigadas a fazer opções sim. Mas eu acho que, mais do que competir, as editoras no Brasil têm o papel de trazer mais gente para o quadrinho nacional. Então, na verdade, quando há mais editoras, eu acredito que isso ajude a Mino a vender mais, que é o oposto do que ocorreria num cenário com menos editoras. 

Raio Laser:  Como fazer para ampliar esse público restrito, que às vezes deixa de comprar Mino para comprar um título de outra editora? Como tentar angariar novos fãs para as HQs?

Janaina de Luna: Eu não fico pensando muito assim. Todos falam em estratégias para fazer com que as pessoas leiam mais quadrinhos e etc... Eu sempre fico pensando que o que eu realmente posso fazer – de verdade – é lançar alguns títulos. Nada é mais efetivo que... Claro. Tudo seria mais efetivo se houvesse uma política educacional melhor, uma renda melhor... Mas isso não está na minha mão. Mas das coisas que eu posso fazer, eu sempre penso que fazer quadrinhos melhores, fazer meu trabalho melhor é a única forma efetiva de conseguir trazer mais público para a editora. Não fico pensando muito no que eu vou fazer para que o leitor compre da minha editora. A gente pensa na Mino e a gente pensa em como fazer a Mino crescer cada vez mais. 

A Vida É Boa Se Você Não Fraquejar, de Seth

Raio Laser:  Pegando esse gancho: é muito comum ouvir dizer que quadrinho não dá dinheiro no Brasil. Quanto do retorno da Mino é financeiro e quanto é de satisfação pessoal?

Janaina de Luna: Quadrinho dá muito pouco dinheiro. Principalmente se você quiser fazer as coisas da maneira certa. Eu já tive outros empregos, em outros ramos, e, se eu contasse como é feito, as porcentagens com as quais nós trabalhamos, o jeito que o mercado se organiza, qualquer ex-parceiro ou colega meu antigo iria achar que eu estou maluca. Fazer livro é muito difícil, fazer quadrinho é mais difícil ainda.

No cenário político em que vivemos não parece que vá ficar mais fácil, pelo contrário. Toda a esperança que a gente teve nesse curto período de um governo mais voltado para o social – não vou nem dizer “de esquerda”, mas de “centro-esquerda”-, a gente está vendo se desmantelar de modo muito fácil e eu não consigo ver perspectivas de melhora. Mas isso não quer dizer que eu não vá continuar lutando.

Agora é muito pouco dinheiro que se ganha com quadrinhos. Mas isso não nos impede de remunerar de forma decente. Quando eu falo isso, eu quero dizer: dentro do apurado para os autores e todas as pessoas envolvidas. E eu acho que o autor de quadrinhos ganha muito muito pouco, porque as tiragens são muito pequenas e eu acho que o trabalho é muito grande. É que às vezes eu vejo esse discurso de que não há dinheiro como uma desculpa para não se remunerar autor e colaborador e etc. Existe algum dinheiro no quadrinho, mas com certeza quem está nessa por dinheiro está no lugar errado. É engraçado. A gente passa a vida falando de quadrinho, a gente fica o fim de semana em eventos de quadrinhos, a gente dorme falando em quadrinhos, eu sou casada com um quadrinista e nas férias a gente vai para eventos de quadrinhos a passeio. É aquilo. Você faz isso, porque não consegue fazer outra coisa. 

Raio Laser:  Mas você teria algum deadline do tipo: “se daqui a 5 anos a coisa não virar, aí vou partir para outra coisa” ou a paixão fala mais alto e você continuará independente de qualquer outro fator?

Janaina de Luna: Eu não tenho esse deadline, porque acho que isso é uma ilusão. Não acho que daqui a 4 anos a coisa vai virar. Eu não acho que o problema é que a Mino não virou. Eu acho que – realmente – do jeito que o mercado está organizado, não é uma estrutura que nasceu para dar lucro do jeito que a gente imagina, do jeito que a gente quer trabalhar. Não é um lucro condizente com o nível de trabalho e de especialização que a gente tem. Mas a gente faz a Mino por amor. A Mino é autossustentável. Ninguém mais precisa colocar dinheiro na Mino. Todos os autores da Mino são pagos e todas as contas são pagas, às vezes há alguns atrasos claro, mas enfim... No final está tudo certo. E a gente também tem outras fontes de renda que mantêm nosso padrão de vida. Mas não é um projeto ganhar dinheiro daqui a 3 anos. Não é nosso objetivo. A gente quer crescer e ganhar dinheiro à medida que a operação fique maior, mas não é uma coisa que a gente pense que “ainda não está dando dinheiro”. O mercado é assim. O mercado livreiro é difícil. Mas eu – que sou a dona da Mino – trabalho em outras frentes também, tenho outros projetos.

Então não é que eu espere que a Mino daqui a 3 anos esteja dando dinheiro. Eu não tenho esse tipo de esperança e nem de ilusão. E não é um objetivo também.

Gideon Falls, de Jeff Lemire e Andrea Sorrentino. Lançamento da Mino previsto para outubro/2018

Raio Laser:  Como você enxerga a Mino no futuro? Daqui a uns 10 anos por exemplo? Com mais publicações ou talvez publicando um autor com o qual você sempre sonhou, mas que não conseguiu em razão do custo do copyright? Como você enxerga o futuro ideal para a editora?

Janaina de Luna: Eu não consigo fazer um plano de 10 anos. Eu não consigo enxergar, porque eu já tive vários outros negócios e já trabalhei com várias outras coisas e acredito que tudo tenha começo, meio e fim. Não sei muito como a Mino vai ser. Eu queria que as coisas fossem mais fáceis no sentido de que houvesse mais incentivo e um modo de produção mais favorável. Isso é o que eu gostaria. Mas isso não depende muito do meu trabalho. A Mino está onde eu gostaria que ela estivesse agora. Não tem nenhum autor que eu gostaria muito de lançar, que eu não tenha lançado ainda. Quer dizer, com exceção do Gipi (Gian Alfonso Pacinotti, autor de A Terra dos Filhos (Veneta, 2018)) que, quando eu ia negociar, descobri no mesmo dia que já havia fechado com a Editora Veneta. Mas isso é uma felicidade, porque a Veneta está lançando e tudo bem. 

Eu tenho uma sorte incrível de estar com todo mundo com quem eu queria trabalhar eu estou – de alguma forma – trabalhando. E é uma felicidade quando vai surgindo gente nova.

Então daqui a 10 anos eu queria que a Mino não tivesse ficado para trás. É minha única preocupação. Quando eu falo “para trás” não é em termos de poder ou dinheiro. Não. Eu queria que nós fôssemos atuais como a Mino é hoje.

Hoje é uma editora que está antenada com o que está acontecendo no universo dos quadrinhos. Quando eu falo isso, não é só publicar coisa nova e moderna. É também fazer resgate. A Mino olha para o que está acontecendo com o quadrinho. E o meu desejo – se a Mino ainda existir daqui a 10 anos –  é que a gente tenha essa mesma vontade e esse mesmo olhar para o quadrinho nacional e mundial que a gente tem agora. 

Raio Laser:  A Mino é reconhecida como uma editora de elevada qualidade gráfica (impressão, capa, papel e etc). Você está plenamente satisfeita com os livros da Mino enquanto produto físico ou ainda sente falta de algo que poderia fazer e não faz em razão de medidas como redução de custos?

Os Morcegos-Cérebros de Vênus e Outras Histórias (Mino, 2017)

Janaina de Luna: Bem, quem me conhece sabe – em quinze minutos – que eu nunca vou estar satisfeita com nada... rs. Porque eu sou totalmente workaholic, louca e desesperada.. rs. Eu tenho orgulho do que eu faço, do trabalho que eu fiz, mas eu não estou nem perto de estar satisfeita. Eu comecei sem saber fazer quase nada e agora eu sei quase nada menos um pouquinho... rs. Então eu acho que ainda tem muito chão pela frente. Eu acho que estou só começando, então eu acho que todo livro que sai eu queria ter mudado alguma coisa... rs. Estou longe de estar satisfeita, mas estou orgulhosa. Você consegue entender que são duas coisas diferentes? Eu tenho orgulho. Acho que o trabalho é bom, mas estou longe de estar satisfeita. O dia em que estiver satisfeita, eu morro... rs. Aí eu desisto. Aí eu fecho a Mino e vou aprender a fazer outras coisas. 

Raio Laser: Qual o(a) principal dificuldade/obstáculo/desafio no mercado editorial brasileiro atualmente para editoras do porte da Mino?

Janaina de Luna: Tem dois grandes desafios particularmente difíceis. O primeiro é encontrar autores no Brasil com obras consistentes em quadrinhos mais extensos. Às vezes eu sinto falta disso sim. Mas eu entendo completamente que nosso mercado autoral é algo muito viciante. Mas eu acho que estou me surpreendendo bem nesses últimos tempos, quer dizer, nos últimos meses mesmo, sabe? Eu acho que tem um pessoal que está aí fazendo um material há poucos anos mais direcionado para o quadrinho curto. E editorialmente para a gente é muito difícil colocar coisas muito curtas. E por isso fica todo mundo brigando pelos mesmos autores.

Não porque não haja gente fazendo coisas incríveis, mas é difícil encontrar um Thiago Souto que faça um quadrinho de 200 páginas, sabe? É que demora um tempo para você construir um autor.

Não é do dia para a noite. Não é só o cara falar: “Eu vou começar a fazer quadrinhos hoje!”. O Thiago que neguinho aponta que é um cara novo, tá fazendo quadrinhos há sete anos. Então, demora. Mas eu sinto que nós estamos melhorando muito nesse aspecto. Tem um pessoal com um trabalho muito bom, mas eu quero que eles estejam prontos para fazer obras mais extensas.

O outro desafio que eu acho é a falta de crédito. A gente trabalha – e isso ninguém fala – num sistema muito maluco que é o seguinte: eu vou comprar os direitos e eles são pagos em dólar, o que é já um problema. E aí demora três meses para a gente fazer o livro e eu já tenho de pagar a gráfica. E aí o livro demora mais um mês para chegar na loja. E a loja depois que vende leva uns três meses para me pagar. Então entre o tempo que eu comecei a gastar para o tempo em que eu comecei a receber, lá se vão uns 7/8 meses. E você precisa ter dinheiro para financiar essa operação de 8 meses. E a gente não tem linha de crédito para publicação no governo. E aí e difícil, porque nossa margem de lucro é muito pequena. 

E eu falo isso, porque as pessoas às vezes se esquecem que esse esquema de editora é um negócio e que nós temos que nos sustentar. As pessoas pensam na paixão, no livro... Mas eu tenho que ter dinheiro para me sustentar. E a gente não tem uma linha de crédito que permita isso de uma forma mais saudável. A gente acaba tendo que pagar juros que às vezes estão embutidos nos prazos de gráfica e etc, que acabam corroendo a pequena margem de lucro que temos. Então, depois que as lojas me compram – e hoje é praticamente só a Amazon – demora 90 dias para pagar um livro que eu já paguei os direitos uns 4/5 meses antes. Já paguei o tradutor, já paguei tudo. Essa falta de fôlego financeiro não existe. No próprio BNDES, que poderia ajudar com isso, as linhas de crédito estão praticamente canceladas. E aí é difícil, porque nós somos pequenos. Esse tipo de problema – que ninguém fala – é um dos principais tipos de problema no mercado editorial. 

O Formigueiro (Mino, 2017)

Raio Laser:  É muito comum que os donos de editora digam que não existam muitos critérios para a montagem do catálogo. Fala-se muito que “o quadrinho deve ser bom”. A Mino também segue essa linha ou prefere privilegiar uma estratégia específica como, por exemplo, de divulgar autores independentes? Qual o critério utilizado na hora de escolher o catálogo da editora?

Janaina de Luna: Cara, eu entendo quando a pessoa fala “quadrinho bom”. Às vezes pode ser chato e bobo falar “quadrinho bom”. Eu acho lógico, porque... eu ia falar uma besteira. Eu ia falar que todo mundo quer lançar quadrinho bom, mas as pessoas querem lançar quadrinho que vende. Não tem muito mistério. A gente sabe que tem um pessoal aí que lança umas coisas que a gente fala: “Jesus!”, mas que vendem. Há casos de editoras que são pagas para lançar determinado material. A Mino não é paga para vender e isso já é um diferencial. 

Eu lanço o que eu gosto. E mais do que isso: eu já não estou ficando rica e se eu não lançar o que eu gosto, aí lascou! Rs. A Mino tem interesse em trabalhar o autor, então eu gosto de quadrinhos de alguém que esteja pensando a linguagem. E quando eu falo a linguagem, não é necessariamente a linguagem formal, dos cânones. Eu me refiro a ter alguma coisa a mais, alguma coisa importante, alguma coisa que precisa ser discutida. Eu quero lançar coisas que representem o melhor de um nicho, de um momento. Coisas que sejam como a Coleção Incendiária (Coletâneas da Mino dedicadas a temas e épocas específicos dos quadrinhos. Até o momento já saíram dois álbuns:

Os Morcegos-Cérebros de Vênus e Outras Histórias; e O que havia na caixa da Sam Dora?, ambos lançados em 2017), que registram o melhor que estava sendo feito naquela hora. Eu acho que O Formigueiro de Michael Deforge (lançado pela Mino em 2017) é uma das melhores coisas que foram feitas no quadrinho underground americano. Eu acho que o Seth (autor de A Vida É Boa, Se Você Não Fraquejar (Mino, 2018) e Wimbledon Green (A Bolha, 2014)) é um dos expoentes das HQs. Então, a gente tenta fazer um panorama do melhor que existe em várias... Quando eu quero lançar algo do Diego Gerlach, eu faço isso porque acho que ele é o melhor talvez nesse tipo de quadrinho que ele faz. O que a gente quer é ter um catálogo que seja o melhor. Shiko (autor de Lavagem (Mino, 2015) e Azul Indiferente do Céu (Mino, 2014)), para mim, é um dos melhores autores no que é feito nacionalmente no quadrinho de gênero. Porque a gente tem um Marcelo D’Salete (autor de Cumbe (Veneta, 2014) e Angola Janga (Veneta, 2017) e muita gente boa. Mas quem está fazendo quadrinho de gênero? Porque o Shiko faz quadrinho de gênero. A gente fez Lavagem, que é um terror. Estamos lançando dele Três Buracos, que é um bangue bangue no sertão. Enfim, são quadrinhos de gênero. E quem está fazendo quadrinho de gênero que seja tão melhor que o Shiko? Não tem. 

Então temos essa preocupação de fazer um retrato do melhor de cada coisa. Isso, porque ainda existe muito preconceito no quadrinho, contra super-herói, por exemplo. Tem gente que acha que super-herói é ruim e bom mesmo é – sei lá – só o quadrinho alternativo. E isso não se restringe apenas ao quadrinhos. Tipo: quem lê Pedro Franz (autor de Suburbia (Hunter Books, 2012)) acha que Jeff Lemire é uma porcaria, porque saiu na Image ou porque fez o Arqueiro Verde. E é aquela coisa: quem leu Pedro Franz nunca nem leu o Arqueiro Verde, e vice-versa. 

Eu sou - de verdade - apaixonada por quadrinhos. Então, para mim, eu me empolgo lendo a Coleção Incendiária e Jack Kirby. E também me empolgo lendo Jason (autor de Sshhhh! (Mino, 2017)). Eu acho que precisa ter essa mistura. É lógico. Isso sou eu como editora. Cada um escolhe o que quer ler. Então, estou trabalhando num projeto agora que envolve autores nacionais, como o Mike Deodato, e está ficando divertidíssimo. E tem gente que tem preconceito, porque o cara faz super-heróis.  Eu acho isso uma bobeira. Quando a gente resolveu trazer o Gideon Falls, da Image, perguntaram: “Mas, pô, você vai lançar Image?”. Eu falei: “Cara, mas a Image...? A Image é foda!”

A Image mudou muita coisa no mercado, tá ligado? Do mesmo jeito que a Fantagraphics é foda. Eu quero lançar o melhor da Fantagraphics, o melhor da Image... Se eu pudesse, eu pegava o melhor da DC, o melhor da Marvel, mas infelizmente... rs. É aquela coisa: eu vou ter a chance de lançar o Mignola e não vou lançar o Mignola? Mignola é o melhor no que ele faz. E o Richard Corben (autor de Ragemoor (Mino, 2018) e Espírito dos Mortos (2017))? Já temos dois e ainda vamos lançar mais um. Cara, eu quero lançar quadrinho de gênero. Para mim, o Corben faz parte do que se faz de melhor no quadrinho de gênero no mundo. Então é isso. Queremos fazer um panorama do que é bom no quadrinho mundial. 

Raio Laser:  Última pergunta: Em que momento você sente mais prazer em ser editora da Mino? É na hora que você vê o livro pronto? Ou é na hora que você está escolhendo qual será o próximo lançamento? O que te dá mais satisfação?

Janaina de Luna: Cara, o livro pronto para mim não dá prazer. Quer dizer, não é que não dá prazer, mas é que eu nem dou muita importância. Para mim, o livro pronto dá um desespero, pela obrigação de verificar se não há nenhum erro ali. Depois que o livro já está pronto, o meu trabalho já acabou. O que me dá mais prazer é trabalhar com os autores. É sentar com o Shiko para ficar a noite inteira discutindo sobre um personagem que pegou um rumo diferente. Por exemplo, no Três Buracos, a história ia ter um casal (hetero) e o Shiko mudou para que o casal fosse homoafetivo, com duas meninas. E a gente fica o dia inteiro discutindo por que isso, por que aquilo. Isso me dá prazer. Pensar: “Pô, vou lançar o Jason. Qual vai ser o formato?”. Isso me dá prazer. A parte criativa me dá prazer. O resto é só parte do trabalho. Depois que o livro foi para a gráfica, já não tem mais nenhuma importância.

Raio Laser:  Isso me lembra determinados integrantes da Raio Laser, que depois de receberem as compras de gibis, nem chegam abri-los e já estão pensando na próxima aquisição...

Janaina de Luna: A gente é doido né?...rs. 

Lavagem (Mino, 2015)

RELATO DE VIAGEM FIQ 2018 + ENTREVISTA COM DAVE MCKEAN!

por Marcos Maciel de Almeida

O FIQ 2018 foi bão demais, sô! Pelo menos foi o que deu para sentir após conversar com os participantes do evento. Organizadores, convidados, e expositores – principalmente eles – estavam com um sorriso estampado no rosto. Eu também não vou discordar. Foram cinco dias intensos, mas que valeram a pena. O clima de congraçamento estava disseminado e não se restringiu às paredes da Serraria Souza Pinto. Foram mais que comuns as esticadas ao Maletta – edifício tradicional no Centro de Belo Horizonte que congrega inúmeros botecos, sebos e restaurantes. Sempre equipados com suas indefectíveis mochilas recheadas de gibis, os participantes do FIQ embarcaram em altos papos noite adentro, sustentados por quantidades indecentes de cerveja e torresmo.

E a Raio Laser não ficou fora dessa, claro. Escalados por nosso chefe Ciro Inácio Marcondes, eu e meu melhor inimigo Márcio Jr mergulhamos em mais uma louca aventura. Tínhamos como compromisso cobrir o evento, tarefa na qual teríamos nos saído melhor se não fosse o cansaço e a ressaca. Se bem que o Márcio tem uma justificativa melhor que a minha. Ele era expositor na mesa 164, local em que, dentre outras maravilhas, vendia o quadrinho que escreveu: Cidade de Sangue, desenhado pelo mestre Julio Shimamoto e colorido pelo talentoso Tiago Holsi. O gibi é coisa fina. Capa dura, formato grande e precinho camarada. Mas bem, isso é papo para outra resenha. (Falando nisso, cadê minha cópia, Márcião?)

Mesa 164: Raiúkas + Tiago Holsi

Não vou entrar em detalhes sobre a programação do FIQ, disponível no site , mas não posso deixar de mencionar que foi muito bem sacada. Meus momentos favoritos? Palestra do Dave McKean, em que o capista de Sandman contou um pouco sobre sua trajetória, mostrando – para desespero dos céticos – que é um artista de mão cheia e não apenas nas HQs. McKean narrou sua experiência em outras mídias, como o cinema e a música. Irriquieto, o artista britânico confidenciou que não consegue parar de transitar por outras áreas, sempre com uma entrega descomunal e imersiva. Foi emocionante estar perto dessa estrela generosa e humilde que brilha com luz tão intensa. Melhor parte? Quando ele perguntou: “quem aqui faz quadrinhos?”. Metade do auditório levantou a mão. “Legal, mas eu acho que todo mundo aqui deveria estar fazendo quadrinhos...”. Silêncio.

Dave McKean fazendo o sonho dos fãs voar mais alto.

Outra palestra bacana foi a “Editando quadrinhos no Brasil”, com os responsáveis pelas editoras Veneta, Balão, Mino e Lote 42. Foi um baita aprendizado ver como esse povo aposta com criatividade e ousadia numa forma de arte que – como a maioria delas – é tão desprestigiada no Brasil. Parabéns, rapaziada.

Fina flor da editoração quadrinística brasileira

Oportunidade bacana no festival foi poder assistir animações – escolhidas pela curadoria do FIQ – no MIS Cine Santa Tereza. Pensa num cineminha acolhedor e confortável, com programação cultural impecável. E o melhor: de graça! Só no FIQ? Não, meu caro, o ano inteiro! Parece milagre, mas é verdade. Eis o Brasil que dá orgulho. Uma salva de palmas para os envolvidos. Qual filme assisti? “Só” deu para pegar o Tekkon Kinkreet, baseado no mangá Preto e Branco, do Taiyo Matsumoto. O “só” foi entre aspas, porque quem já viu essa belezura sabe do que estou falando. Se não viu, veja. Se já viu, espalhe a palavra.

MIS Cine Santa Tereza

Mas qual foi o momento mais hiper-mega-blaster-topzera do evento? Todos. O FIQ desse ano foi o verdadeiro lugar de gente feliz. Acho que devia ser algo na água do local. (Aliás, podiam disponibilizar mais bebedouros, hein?). O clima de alegria e cumplicidade era contagiante. Sabe aquele esquema de reencontrar a galera do Segundo Grau? Esqueça! O FIQ não tem nada a ver com isso. Aqui o pessoal está olhando para frente. A vibe é mais no estilo “juntos novamente pela primeira vez” ou “nunca te vi, sempre te amei”. E não falo isso apenas pelo aspecto artístico em si ou pela camaradagem artista/artista e artista/público. Todos os quadrinistas expositores com quem conversei estavam bastante satisfeitos com o resultado das vendas. Acho que o fato de não termos tido FIQ no ano passado e o medo de que o evento não rolasse esse ano por causa da greve dos caminhoneiros contribuíram para esse espírito do “vamos celebrar, porque o FIQ tá rolando mesmo galera!”. E o grande charme do evento é que ele se apoia exclusivamente nos quadrinhos. Claro que tem outros produtos correlatos, mas o carro chefe são mesmo os quadrinhos. Grandes, pequenos, caros, baratos, PB ou coloridos. Eles comandam a festa, e por isso não há necessidade de trazer algum ator norte-americano bombado ou que esteja bombando.

Mas bem, para que nosso chefe na Raio Laser não pense que foi prejuízo investir em nossos suntuosos hotéis e em nossas caríssimas diárias para cobrir o evento, fizemos esse relato vagabundo e algumas entrevistas. Cinco no total. Vou manter suspense sobre os próximos entrevistados, mas decidimos começar com pé na porta e soco na cara. Ninguém menos que Dave McKean numa entrevista chuchu beleza exclusiva para a Raio Laser

Entrevista DAVE MCKEAN – por Marcos Maciel de Almeida e Márcio Jr.

Nascido em 1963 em Maidenhead, Inglaterra, o desenhista/pintor/ilustrador/músico/cineasta/escritor Dave McKean tornou-se mundialmente famoso ao ilustrar as capas da maxissérie Sandman, escrita por Neil Gaiman, durante o final da década de 80 e meados dos anos 90. O trabalho do autor é rico em colagens, efeitos com objetos e fotografias. Seu estilo arrojado e de grande densidade artística faz a cabeça dos fãs e também dos não leitores de quadrinhos. O trabalho de McKean e Gaiman se cruzou diversas vezes, em obras como Violent Cases (1987), Sinal e Ruído (1992) e Mr. Punch (1994), todas lançadas no Brasil. Entre 1990 e 1996, Dave escreveu e desenhou o calhamaço Cages, que venceu o prêmio Harvey de Melhor Lançamento e Melhor Graphic Novel. Em 2016, McKean publica Black Dog, recentemente lançado no Brasil pela Editora Darkside.

Black Dog

Neste último trabalho, na qual interpreta – com bastante liberdade – a trajetória do soldado/artista plástico britânico John Nash, McKean mostra-se um artista no auge: cada um dos capítulos do livro é contado com um estilo artístico diferenciado, que parece reverenciar as várias fases da carreira do quadrinista.

Black Dog evidencia a maturidade de sua arte, pronta para continuar nos deixando de queixo caído pelas próximas décadas. Confira, abaixo, trechos de uma rápida – e concorrida – entrevista que ele gentilmente concedeu à Raio Laser (MMA):

Raio Laser: Onde você acha que estaria hoje caso a revista do Sandman nunca tivesse existido?

Dave McKean: Em algum outro lugar...(risos). Sim, eu acredito que Sandman tenha sido um momento de sorte. Havia um espaço, nos anos 80, na DC e na Marvel, em que nós podíamos tentar coisas e em que Neil podia escrever as histórias que ele queria. E eu podia brincar com as capas e fazer o que quer que me desse na telha. E ninguém questionava isso.

Durou apenas alguns anos, mas tivemos muito material interessante feito naquela época.

Mas eu ainda estaria fazendo o que estou fazendo agora. Estou escrevendo e desenhando não porque eu desenhei as capas do Sandman. Eu ainda estaria fazendo exatamente as mesmas coisas ainda que o Sandman não tivesse existido.

Raio Laser: Você trabalha com diversas mídias e tem uma ligação muito estreita com quadrinhos e música. Como essa ligação ocorre em seu trabalho? Você é quadrinista, músico, dono de gravadora... Em que medida pensa em seus quadrinhos como musicais e em sua música como imagética?

Black Dog

Dave McKean: Música e arte eram minhas duas paixões quando criança. E essa foi minha escolha. Eu tinha, profissionalmente, que optar pelo caminho da arte ou da música. Eu sentia isso. Então fui para a escola de artes, porque isso parecia a coisa certa para fazer, mas eu sempre senti falta da música. Então, tem sido fantástico poder fazer essas duas coisas se encontrarem em projetos como Black Dog. Meu quadrinhos favoritos soam como música. Eles não são preenchidos com muito texto. Eles são, preferencialmente, sem texto. O importante é que a narrativa e as imagens fluam como música. Elas têm essa liberdade.

E a música que eu escrevo tende a possuir um elemento narrativo. Eu não sou muito bom em escrever melodias que não tenham uma razão. Ela tem que – de alguma forma – estar contando uma história. Então, música e narrativa são muito importantes para mim. Por algum motivo, a narrativa é algo muito fora de moda no mundo das artes hoje em dia. Enquanto que, para mim, ela é um elemento crucial para nossa cultura. É como transmitimos para as novas gerações a maneira pela qual nos percebemos como seres humanos.

Raio Laser: Seu trabalho sempre teve um aspecto de bricolagem, de colagem de vários elementos. Em determinado instante, a presença da manipulação digital surge em sua obra. Como vê isso hoje? Haveria uma sensação de que alguma coisa ficou datada ou o trabalho anterior funciona como uma espécie de marca daquele tempo? Como enxerga o trabalho anterior em retrospecto?

Dave McKean: Bem, eu comecei tentando fazer imagens que fossem translúcidas e com aspecto onírico, mas utilizando meios físicos, como fotografia, múltiplas chapas fotográficas, colagem física de objetos. Eu consigo obter cerca de 20% daquilo que estava imaginando na prancha (de desenho). Mas então eu comprei um computador e li o manual do Photoshop. E foi como se alguém o tivesse escrito para mim! Era exatamente o que eu queria fazer. E eles conseguiram alcançar esse resultado da mesma maneira que eu teria feito. Então eu senti que o Photoshop tinha sido feito para mim. Um mês depois de começar a usar ferramentas digitais, eu comecei a obter de 50 a 70% – do que eu estava imaginando – no produto final. Eu adorei o controle e a manipulação que ele me deu sobre as imagens. Além disso, tinha o fato de que você podia testar coisas muito rapidamente, salvar as versões preferidas... Era como se estivesse brincado. Eu achei a experiência muito divertida. Mas o que acontece é que comecei a ver muitas outras pessoas utilizando ferramentas digitais. E eu também fiz muitos trabalhos usando Photoshop por muitos anos. Bem, eu tive prazer em brincar com essas ferramentas, mas eu sinto muita falta da humanidade presente numa imagem desenhada ou pintada em meio físico. Eu ainda uso Photoshop o tempo todo, mas é apenas para controlar a imagem no final do trabalho. E a imagem e a pintura são feitas por meio físico. E se, eventualmente, uma página ou parte específica da história requer uma experiência digital estranha ou algo do tipo, então eu uso (o Photoshop), mas é apenas uma ferramenta com muitos truques. Não é a coisa mais importante. Não é ele quem dá as cartas.

Raio Laser: Seu trabalho envolve diferentes formas de arte. Nos quadrinhos, como você enxerga seu trabalho? Quais seriam seus pares? Se fôssemos fazer um recorte da cena quadrinística mundial, em que lugar poderíamos encaixá-lo? Em outras palavras, qual seria sua turma?

Dave McKean: É difícil dizer, porque eu não sinto que faça parte de um grupo específico, embora haja muitas pessoas pelo mundo pelas quais eu sinta grande empatia. Mas por uma razão ou outra, eu não sinto como se fizesse parte daquele grupo. Por exemplo, meus artistas favoritos nos quadrinhos são italianos como Lorenzo Mattotti. Ele fazia parte de um grupo chamado Valvoline. Todos tinham mais ou menos a mesma idade, cresceram juntos e encorajavam uns aos outros. Eu não tenho um grupo como esse, mas eu sinto um grande carinho e empatia pelo Lorenzo Mattotti, pelo José Muñoz, Cyril Pedrosa... bem, você sabe. Muita gente. Mas eles estão em todos os cantos. E eu não posso dizer que nós realmente façamos parte de uma turma, porque somos muito diferentes. Mas essas são as pessoas com as quais eu sinto uma forte conexão.

Raio Laser: Seu trabalho é poderoso e está fortemente disseminado em várias mídias, como quadrinhos, cinema e música. Como gostaria de ser lembrado?

Dave McKean: (Gargalhadas...) Meu Deus! Na verdade, ficaria feliz em ser esquecido... (risos). Na verdade eu gostaria que alguns dos livros que estou fazendo agora fossem lembrados, porque eu sinto que eles são realmente sobre alguma coisa. São sobre temas interessantes e eu espero que durem um pouco de tempo. Estou feliz que alguns dos trabalhos que fiz 20 ou 30 anos atrás tenham lugar na História das HQs. Eu acho isso muito bacana. Mas não é necessariamente – eu espero – o tipo de material que as pessoas estarão olhando daqui a 100 anos. Eu espero que eu ainda não tenha produzido meus melhores trabalhos. Espero que o melhor ainda esteja por vir.