TABLOIDE: quadrinho clássico e potência na medida exata

por Ciro I. Marcondes

Em certo momento de Tabloide, a esbaforida e casca-grossa jornalista Samantha Castello, metida numa encrenca de vida ou morte, solta, no recordatório e em meio a um turbilhão de ações, um “sinto vontade de mijar”. Isso não interfere diretamente na trama. Apenas compõe o universo psíquico da personagem. Apenas ajuda a compreendermos a complexidade com que ela é elaborada em ínfimos detalhes. Afinal, em que quadrinho temos consciência da vontade de mijar de um personagem? E que personagem pensa “preciso mijar” numa situação de vida ou morte?

O autor deste romance gráfico – talvez fosse adequado chamar aqui de “álbum”, tamanho é o parentesco e a influência da HQ europeia – L. M. Melite, é desses que compõem uma história com este tipo de minúcia para que, não se enganem, a história seja a minúcia. Lendo estas páginas de Tabloide percebemos que Melite representa hoje, no quadrinho brasileiro, aquilo de que talvez nem sentíssemos falta. Porém, quando nos deparamos com isso é que vemos o tamanho do rombo: trata-se, é claro, da figura do roteirista de quadrinhos.

Roteirista mesmo, que planeja seus personagens até eles se tornarem efetivamente humanos. Que preenche os vácuos na história até você estar com a mente completamente tomada por uma névoa de ideias, ganchos, plots. Que não se abstém de usar recursos clássicos de quadrinhos (como recordatórios em primeira pessoa, coisa do quadrinho argentino, do quadrinho italiano), mesmo fazendo um quadrinho moderno. Que não foge da raia quando o assunto é a difícil arte de contar uma boa história com bons personagens.

Eu já notara este diferencial de Melite – o de já surgir como um quadrinista completo – ao ler Dupin, um romance gráfico de investigação policial psicologizada na mente infantil e no sobrenatural, um dos grandes quadrinhos brasileiros da década. Agora, com este novo lançamento, ele se mantém dentro das mesmas premissas e, ainda que a originalidade tenha sido largada para trás (e é isso que o quadrinista mais apegado ao clássico faz: abdica de suposta originalidade em prol do apuro meticuloso na constituição da história), consegue rearranjar os elementos de Dupin em um produto todo novo. Ninguém reclama, por exemplo, que John Ford tenha feito filmes meio parecidos, por exemplo, como “Paixão dos Fortes” e “Sangue de Heróis”.

Mudar apenas 10%

“Tabloide” é o nome do jornal editado por Samantha Castello. Um panfleto sensacionalista daqueles de espremer sangue. Desde o começo, quando a vemos, gorda e maciça, treinando boxe e descarregando uma atitude voluntariosa (e ao mesmo tempo ressentida) em editores e críticos, percebemos se tratar ela de uma personagem cheia de nuances, tiques, cacoetes de linguagem, traumas. Enfim, alguém calejado pelas circunstâncias duras da vida e que sobrevive aos trancos e barrancos às custas de vícios e pessimismo. Ela narra a história e ficamos conhecendo músicas que aprecia ou odeia, que chiclete bizarro consome, que sabor de pizza de vitrine de padaria come, que gosta de tirar onda de falar um latim tosco. Ficamos sabendo quando tem vontade de mijar.

A história de Melite em si é bastante interessante e engaja o leitor: uma travesti é encontrada morta, num vestido de noiva, nas margens de uma represa em São Paulo. O que se segue é o modelo de um bom romance noir: investigação, jornalistas e policiais “figura”, mergulho num tipo de submundo do crime, ação e crise existencial.

Ora, se, em Dupin, Melite se inspirou em Edgar Allan Poe para criar uma motivação macabra e excêntrica em seus personagens, aqui a base é ainda o policial, mas de matriz mais pulp ainda. Diria Raymond Chandler: pelo olho fotográfico em mapear a cidade de São Paulo (magnificamente bem inserida como cenário que faz toda diferença para que a história faça sentido); pela preocupação com que a trama não seja o único recurso da HQ, mas também o esquadrinhamento de hábitos e posturas dos personagens; e, obviamente, pela narração cínica, decadentista, grosseira como uma faca no estômago, de Samantha nos recordatórios.

Mudar de autor um policial de referência para outro pode parecer uma bobagem para a “genialidade” do quadrinista pós-moderno que “inventa” algo novo a cada produto. Para alguém de pretensão mais clássica como Melite, no entanto, mudar apenas 10% é o maior mérito que ele pode ter. Trabalhar apenas a nuance pode ser mais arte que repensar o todo a cada obra nova.

E não é apenas na literatura pulp que Tabloide se destaca. Como eu já disse, o álbum é uma história fechada (até melhor encerrada do que Dupin), pensado em uma estrutura de roteiro autônoma, sem muitas lacunas, que compõe várias camadas de entendimento dos personagens e das mazelas de São Paulo. Tangencialmente, Melite aborda sexualidade, trabalho escravo, ditadura, solidão, etc., mas a essência está no prazer de narrar, na beleza do texto. Parece aquela satisfação que sentimos quando lemos um bom fumetti bonelliano, ou um álbum bem resolvido do Tintim. Samantha, aliás, não deixa de parecer espécie de Tintim cuja vida deu errado, se fudeu e virou um investigador chauvinista, bruto e cínico, num Brasil que não nos dá orgulho de absolutamente nada. Que seja uma protagonista feminina com esse perfil, desbloqueando tanto clichês, é ainda mais um dos méritos desta HQ.

O tabloide, aliás, como se sabe, é a origem dos quadrinhos. Hearst e Pulitzer os publicaram nas primeiras décadas do século XX, produzindo uma competitividade saudável pela qualidade das tiras em meio a jornalismo de quinta e histeria de massa. Melite não está alheio a isso. Seu quadrinho é cheio de referências e easter eggs interessantes, que não são esfregados na cara do leitor e, fundamental, são incorporadas à organicidade da história. Uma das coisas que mais impressiona, aliás, é a capacidade de mesclar erudição (mesmo que seja de boteco) com o aspecto fuleiro de repartições e delegacias. O quadrinho fala inclusive de cheiros, gostos, uma certa fisiologia e sinestesia pobre que nos transporta diretamente para a cidade de São Paulo.

Em meio a essa erudição de cachaceiro, que faz emergir, de um Tietê de bosta, citações como “os olhos são a pior parte da morte” e “a verdade é um cão morto a céu aberto”, brilha a arte simples (inclusive de empaginação bastante regular, sem muita variação e pretensões formais), colorida por computador à maneira de um quadrinho dos anos 60, de Melite. Gestos e pontos-de-vista interessantes em meio à ação são privilegiados e, kirbyanamente, ele ilustra bons socos e porradas.

A porrada final, no entanto, é a desta São Paulo desgastada, desgraçada, mutilada e humilhada, que tem muito da inspiração no mundo fétido de Lourenço Mutarelli, mas se atualiza com esta proposta nova, porém com acertada deferência ao passado. Porrada e potência, duas palavras que substanciam bem estes quadrinhos de L.M. Melite. Agora vou sair de fininho porque estou com vontade de mijar. 

Especial Editora Mino #2: A Missão

O negócio é o seguinte: a Editora MINO segue aprontando, lançando material de primeira com o acabamento que HQs de respeito merecem. A gente segue trabalhando aqui, procurando ler e desvendar os mistérios destas publicações. Assim, quem ganha é o nosso leitor, com mais seis resenhas que desbravam as fronteiras das mais interessantes publicações nacionais (e além). Mesmo esquema do nosso primeiro especial. Outras editoras, se liguem! (CIM)

Caso queira enviar seu material para ser resenhado na Raio Laser, o endereço é o seguinte:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070 

por Ciro I. Marcondes, Marcos Maciel de Almeida, Márcio Jr. e Lima Neto

O Soldador Subaquático – Jeff Lemire (Mino, 2016, 228 págs.): O canadense Jeff Lemire é um quadrinista de fronteira. Transita com desenvoltura entre o mainstream (leia-se Marvel/DC) e o quadrinho autoral. No Brasil, é tão conhecido por Sweet Tooth, sensível HQ da Vertigo, quanto por seus trabalhos com medalhões super-heroísticos – vide Old Man Logan, Homem-Animal, Superboy, X-Men e até o bombadão Thanos (desenhado pelo brazuca Deodato Filho, ops... Mike Deodato Jr.).

O Soldador Subaquático, graphic novel lançada pela Mino, encampa com veemência essa faceta mais autoral de Lemire. E cai como uma luva no belo catálogo da editora. Jack vive em uma remota cidadezinha próxima a uma plataforma marítima de extração de petróleo. Ali, trabalha como soldador subaquático, profissão de altíssimo risco. Sua esposa está às vésperas de dar à luz seu primeiro filho. O pai, alcóolatra – e também mergulhador – faleceu há muitos anos, em um acidente obscuro. A relação com a mãe, atravessada por esta tragédia do passado, é complexa – para dizer o mínimo. Este é o cenário no qual se desenvolve a narrativa, conduzida com brilhantismo por Jeff Lemire. Em sua introdução, Damon Lindelof (cocriador da série Lost e produtor executivo envolvido com os recentes Jornadas nas Estrelas e Prometheus) trata O Soldador Subaquático como uma versão contemporânea do clássico seriado Além da Imaginação. Comparação pobre. A HQ é um profundo tratado sobre relações familiares, memória e os dilemas de se tornar pai/deixar de ser filho – temas caros a Lemire e que já haviam sido tratados, sob outra perspectiva, em Sweet Tooth. Na estante, O Soldador Subaquático ficaria muito bem ao lado de Umbigo sem Fundo, de Dash Shaw. Mas Dash Shaw não escreve super-heróis – o que faz com que o livro do canadense forneça outros pontos de vista sobre as fronteiras existentes entre os diferentes gêneros de histórias em quadrinhos.

Formalmente, o que Jeff Lemire exibe em O Soldador Subaquático é um preciso domínio da linguagem quadrinística. A história avança e recua conforme suas intenções narrativas. Há uma ausência completa de redundância. Os personagens são carregados de alma e profundidade. O mais intrigante é que o autor consegue isso lançando mão de um desenho muito simples, de poucos recursos, urgente, quase taquigráfico. 

Não há subterfúgios no traço de Lemire. O álbum sequer conta com as vistosas cores presentes em Sweet Tooth. No máximo a aguada, também urgente, pouco elaborada. O artista não parece nada preocupado em escamotear suas deficiências técnicas (anatomia, perspectiva e quetais). Ao contrário, parece eviscerá-las. Em O Soldador Subaquático, Jeff Lemire encara os desafios de se apresentar nu. Ao olhar do leitor médio de super-heróis, provavelmente lhe falte algum botox e litros de silicone. 

Isso talvez explique porque, na Marvel/DC, Jeff Lemire esteja confinado ao papel exclusivo de roteirista. É como se estivesse estabelecido que seu desenho não é “profissional” o suficiente para a indústria de super-heróis. Daí que, apesar de ser um quadrinista de fronteira, que transita entre o autoral e o mainstream, Lemire – por forças alheias à qualidade do seu trabalho – não consegue diluir estes limites. No autoral, é um autor. Na indústria, é o funcionário do mês. Sua posição é sintomática da atual incapacidade dos quadrinhos de super-heróis conduzirem seus leitores a novas experiências com outros tipos de quadrinhos, como por exemplo a BD europeia, o mangá japonês e o quadrinho sul-americano. 

A Mino prometeu para o início do segundo semestre a publicação de The Complete Essex County, outro tijolaço autoral de Lemire. Maravilha. Até lá, seria interessante que seus leitores do universo Marvel/DC se dessem a oportunidade de conhecer O Soldador Subaquático. Em última instância, não é que o desenho de Jeff Lemire seja amador para o mainstream. Mas sim que este mesmo mainstream talvez não tenha um público com o olhar um pouco mais amplo para acessar o que de melhor o quadrinista tem a oferecer. (MJR)

Você é um Babaca, Bernardo – Alexandre S. Lourenço (Mino, 2016, 132 p.): Fosse um filme (coisa que dificilmente seria), poderíamos dizer que Você é um Babaca, Bernardo está obcecado com a continuidade. Afinal, a despeito de toda a complexidade formal imaginada para este estranho quadrinho, é o seu apego à micronarrativa – como pequenas bolhas de som que encontramos quando ouvimos Daft Punk ou Spoon em fones de ouvido –, e aos detalhes quase imperceptíveis espraiados no curioso passar do tempo; é nestes pontos que a HQ se sustenta. Interessa-nos mais, aqui, como narrativa, qual quadro está pregado na parede ou qual roupa o personagem veste no dia de chuva, do que o modesto romance que se apega ao plot principal. Não que isso importe muito. Às vezes a experiência da arte é mesmo vasculhar a engrenagem e a engenharia da beleza. Ninguém liga muito, hoje em dia, para o discurso revolucionário de Eisenstein, mas todos admiram sua maneira de erigi-lo.

Alexandre Lourenço foi caçado na Internet (a partir de seu site “Robô Esmaga – Quadrinhos Miúdos” – sugestivo, não?) pela Mino, e Você é um Babaca, Bernardo de certa forma se tornou um hit no nosso meio, ganhando prêmios e figurando em listas. Peguei o livrinho com imensa curiosidade, o trabalho é minucioso e delicado, mas certamente não é essa cocada toda. Com influência clara dos papas do quadrinho experimental norte-americano (Chris Ware e Richard McGuire), além de uma pontinha de Rafael Sica (sem sua poesia), esta HQ prima por um experimentalismo bem calculado. 

Em primeiro lugar, há duas ordens de leitura na primeira parte (podemos ler sequencialmente ou um quadrinho por página, acompanhando os dias monótonos do personagem). Como nos quadrinhos de Ware, o procedimento todo é curioso, intelectualmente concebido, um experimento. Também como nos quadrinhos de Ware, esta forma intrincada e microscópica de se fazer e ler HQs deságua sempre na temática do tédio, da repetição mecânica, da solidão moderna. Me pergunto por que toda micronarrativa experimental em quadrinhos precisa ter personagens tão enfadonhos quanto Bernardo e Gabriela, os protagonistas do morno romance aqui representado.

Não que fazer um romance gráfico com excesso de traços formalistas não tenha lá seu charme. Lourenço se utiliza de diversos outros recursos interessantes, como garranchos e cores representando mensagens de texto, o uso pontual e preciso dos close-ups, além de certos momentos mais livres (desgarrados do sistema proposto no começo – o que indica que, em certo momento, o autor jogou o planejamento às traças) em que praticamente em cada página temos um arranjo de leitura diferente. 

É quadrinho em laboratório, que procura produzir reflexão sobre modos modernos de solidão e amor, mas que insiste em chamar atenção para sua fábrica formal a cada instante, não deixando o sentido efetivamente se libertar. Lourenço, em certos momentos, até mesmo resiste a fazer uma arte propriamente sequencial (o nome mais acadêmico dos quadrinhos) para produzir uma arte de imagens em simultaneidade. Como se saísse de um “eixo sintático x” (da narração) e fosse para um do “eixo paradigmático y” (da mostração e da acumulação poética). 

Lourenço é um talento, sem dúvida, e Você é um Babaca, Bernardo é inventivo e bem engendrado. Vai agradar aos geeks do experimental matemático e aos fãs do Chris Ware que começaram a ler quadrinhos em 2009, mas, para mim, de certa forma, quando a cabeça do personagem se esvai naquelas cenas surrealistas, escapa pelo buraco no pescoço também a alma deste quadrinho. (CIM

The Shaolin Cowboy – Geof Darrow (Mino, 2016): Geof Darrow é um artista do tipo maníaco obsessivo, que adora criar cenas incrivelmente detalhadas. Sabe aquela coisa de desenhar a perna peluda da mosca em cima do cocô do cavalo do bandido? É mais ou menos por aí... E o novo lançamento da Mino, Shaolin Cowboy, é uma prole fidedigna do estilo Geof Darrow de fazer gibis. Aliás, é mais do que isso. Pode-se dizer que Shaolin Cowboy é o gêmeo separado no nascimento de seu irmão mais velho, Hard Boiled, escrito por Frank Miller e lançado em 1990. Vinte e seis anos depois o caçulinha chegou no Brasil chutando bundas, mas isso é assunto para daqui a pouco. Falemos, por enquanto, do primogênito.

Hard Boiled é o suprassumo do gibi bagaceira, numa história que combina doses cavalares de violência, sucata, lixo e destruição. O detalhismo presente no traço de Darrow era – e continua sendo – enlouquecedor e levou a nona arte a um novo patamar. Quem ainda duvidava que quadrinhos também eram coisa de gente grande deve ter ficado sem argumento diante das cenas de apocalipse urbano meticulosamente ilustradas por Darrow. Arrisco dizer que ele é um dos precursores do hiper-realismo nos gibis. Eis um artista capaz de criar imagens tão perfeitas que são quase mais reais que a própria realidade. Apesar disso, o clima da revista é aquele típico de vídeo games vida loka, estilo GTA, especialmente pela gostosa sensação de estar breaking the law, ainda que de mentirinha. Outra coisa que lembra jogos de ação é o ritmo acelerado. Em Hard Boiled tudo é tão apressado e intenso que os personagens, objetos e páginas parecem estar gritando o tempo todo.

Hard Boiled

E este talvez seja o grande contraste com Shaolin Cowboy, pelo menos em parte. Se a ação em Hard Boiled é urbana, com requintes de confinamento, a trama de Shaolin Cowboy, não menos sufocante, ocorre em espaços abertos, num deserto habitado por jacarés, tartarugas e gatos. Metal e vidro dão lugar a carne e sangue, também em quantidades generosas. Se, no gibi anterior, Miller imaginou uma metrópole barulhenta e densamente habitada, Darrow, agora alçado à condição de roteirista/desenhista, optou por uma narrativa que tem por testemunha o silêncio dos personagens e das locações.

Mas, afinal, do que se trata o gibi? Bem, é a aventura de um cowboy shaolin no deserto tentando salvar a pele durante um ataque zumbi. E é interessante notar as escolhas do Darrow roteirista para contar esta história. As primeiras duas páginas contêm uma recapitulação do que havia ocorrido antes do início da revista, num texto enorme com letra pequena. Já a HQ em si tem inúmeras páginas sem diálogos, compensadas, em contrapartida, por violência e pancadaria quase hipnóticas. A opção pela marcação do fluxo da narrativa fica, portanto, evidenciada, já que o autor começa com um ataque verborrágico que logo é substituído por um storytelling que funciona como um voto de silêncio, no melhor estilo zen budista. 

Também como em Hard Boiled, Shaolin tem como prerrogativa a estética do exagero. Tudo é grandioso e colossal. Mutilações, decapitações e mortes dão as caras em escala industrial e são mostradas com precisão sádica. Muito contribui para isso a arma utilizada pelo protagonista – uma vara de bambu com uma motosserra em cada extremidade – para detonar os pobres dos mortos-vivos. E Darrow parece ter prazer especial em triturar os “walkers”, já que passa a maior parte do gibi eliminando-os de tudo quanto é forma possível. Lembra que eu falei que Darrow é maníaco? Então, quando ele resolve dar voz a suas obsessões, sai de baixo... Prepare-se para encarar páginas e mais páginas de um holocausto zumbi, ou melhor, um holocausto de zumbis, que funciona como uma espécie de exorcismo para o autor. É um verdadeiro desbunde de tripas e miolos voando para tudo quanto é lado. Se Miller pôde fazer terapia semelhante em Hard Boiled, com inúmeras cenas de carros destruídos, metal retorcido e caos generalizado, Darrow também não quis ficar atrás e promoveu uma festa gore de responsa. 

E confesso que não poderia culpá-lo por ter feito o que fez. Atire a primeira pedra quem nunca quis sair dando porrada – sem mais nem menos – numa multidão zumbi. E o shaolin cowboy, grande responsável pela matança (?) dos cadáveres ambulantes, faz seu “trabalho” de forma abnegada e disciplinada, com a mesma tranquilidade que teria se estivesse na fila para comprar pão, afinal os problemas terrenos são meros obstáculos no caminho da iluminação. 

No fim das contas só posso elogiar a Mino pela escolha do título e pela belíssima edição em capa dura. Os loucos fãs do maníaco Darrow agradecem. (MMA)

Hermínia – Diego Sanchez (Mino, 2015): Certos relacionamentos são bastante autodestrutivos, mas talvez sejam a única saída para almas perdidas como as de Hermínia e Arcádio. Essa é – ou parece ser – a premissa da HQ de Diego Sanchez. Digo "parece ser" porque a vibe onírica é uma constante no decorrer das páginas. O tom de incerteza sobre o que seria real ou ilusório está presente tanto no roteiro quanto nos desenhos, que têm uma pegada – intencional – de rascunho, como que para retratar a dimensão que enxergamos quando sonhamos, ou seja, aquela percebida sob um ponto de vista construído por esboços e, não raro, fora de foco.

Isso não quer dizer que o traço seja simplório, muito pelo contrário. Sanchez conseguiu encontrar o equilíbrio entre a fugacidade onírica, no desenho dos personagens, e a realidade quotidiana, na fotografia do quadrinho. Assim, as imagens das ruas e das casas – detalhadamente registradas – são a âncora que garantem a permanência do casal no plano dos despertos. Outro fator de desorientação – novamente premeditado – é o fato de a história ser contada fora da ordem cronológica, com diversos saltos para frente e para trás. E o efeito disso é a sensação de estar preso em um momento único, no qual todas as ações têm a sua importância e parecem transcorrer simultaneamente. Mas é uma pena que o autor não tenha achado outra solução para a inserção dos flashbacks e dos flashforwards que não fosse a utilização de páginas magenta chapadas espremidas entre os capítulos. O problema da utilização desse recurso foi a excessiva quebra de ritmo da narrativa, por demais brusca em determinados momentos. 

A história de amor entre Hermínia e Arcádio, permeada por excessos de paixão e prazer, é caracterizada pela necessidade frequente de reafirmação do romance, requisito que é levado às últimas consequências. A chaga de Arcádio é sua obrigação de ter que provar a todo instante sua devoção a Hermínia que, por sua vez, se sente atraída pela aura de mistério do parceiro. E sobre este último, marcado para sempre com uma grande cicatriz sobre o nariz, há uma curiosidade, revelada de forma sutil. A ferida, na verdade, foi resultado de uma brincadeira inventada por seu irmão mais velho, que se tornaria tatuador. Pode-se dizer, assim, que o primogênito já era uma pessoa predestinada a deixar marcas na pele dos outros.

Gostei muito do capricho na produção do gibi, especialmente a gramatura das páginas e a ilustração da capa (dura).  Apesar disso, creio que houve certa incoerência entre o luxo da edição e o tom despojado que a história se propõe a ter. Outra coisa que incomodou é o que costumo chamar de "síndrome do cinema brasileiro", ou seja, a constante prática de preencher o vazio com uma suposta profundidade. Explico. Muitas vezes os autores são obrigados a ocupar espaços na trama para aumentar o volume de suas obras, como se tamanho e duração de determinado produto resultassem, automaticamente, em maior credibilidade. 

E isso pode gerar mais problemas que soluções. É o que acontece com Hermínia. Sanchez podia ter enxugado o número de páginas, deixando a trama com menos pontos de interrogação, no melhor estilo "menos é mais". Optou, entretanto, por esticar a história e inserir mensagens e cenas de difícil interpretação, especialmente no final da trama. Ok, talvez o desfecho não tenha que ser necessariamente cartesiano, com tudo detalhadamente explicado, mas confesso que fiquei com a impressão de que o autor ficou diante de uma encruzilhada para conseguir encerrar a história. E a solução encontrada foi carregar na dose de mistério e simbologia, fato que conferiu hermetismo indesejado ao gibi. (MMA

Fungos – James Kochalka (Mino, 2016): Terrece Mckenna - o xamã psicodélico da geração rave – teorizou, após uma experiência particularmente forte com o cogumelo psilocibina, que alguns tipos de fungos são um mecanismo de comunicação cósmica lançado no espaço por uma raça primordial e que seu consumo permitia a comunicação com os deuses. Em seu melancólico livroA Transmigração de Timoty Archer, Phillip K. Dick mostra que a verdade por trás da experimentação da presença do espírito santo nas sociedades cristãs primitivas era obra de um fungo que nasce nas cavernas áridas da região de Jerusalém. Para muitos estudiosos, os seres vivos do reino fungi têm um papel seminal no desenvolvimento do ser humano na terra. Estes não são os fungos que encontraremos no gibi Fungos do norte-americano James Kochalka. O incensado autor, que estreia no Brasil nesta bem cuidada edição da Mino, é conhecido nos EUA por uma variedade de trabalhos, dos mais sensíveis aos mais humorísticos. 

Embora os personagens de Fungos não sejam os cogumelos de Mckenna, estas divertidas criaturas passam boa parte do seu tempo se preocupando com a comunicação. Seja tentando entender as intenções de Deus, ou fingindo ser os desenvolvedores do Facebook, os fungos de Kochalka parecem ter se entediado com a natureza à sua volta e a reinterpretam como versões da vida tecnológica do nosso dia a dia. O resultado são continhos leves e prazerosos que ironicamente nos fazer rir de nós mesmos, como se os fungos fossem crianças encenando o mundo dos adultos. Fungos é um quadrinho despretensioso como aquele mofo de quintal, mas a simplicidade narrativa burilada por anos de produção de Kochalka faz de cada continho um jogo de conceitos divertido de se ler. 

Importante citar que boa parte do prazer dessa leitura vem da versão bem esmerada da tradutora Dandara Palankof que deu vida aos diálogos adaptando as falas com um humor característico da contemporaneidade digital, mas sem esbarrar em chavões que poderiam tornar o texto datado e piegas. (LN)

Mar – Diego Sanchez (Mino, 2016, 44 pg.): Diego Sanchez Más Saint Martin é o mais prolífico autor da Editora Mino. Vira e mexe, o cara (agora também um tatuador originalíssimo) tá com trabalho novo na praça. Mar é seu gibi mais recente e, por assim dizer, o mais ligeiro. 

A primeira coisa a impressionar é o design da publicação, que imediatamente remete ao experimentalíssimo gráfico da Nobrow Press – ou a fanzines mais artesanais e invocados, vibe Feira Plana. A história em si tem leitura rápida e traz todos os ingredientes característicos do autor: narrativa aberta e polissêmica, atmosfera onírica, pegada indie-intimista, layouts de página inusitados (com pausas, silêncios e espaços vazios). O desenho, em particular, se apresenta mais sujo que o usual, oxidado, como que vítima da maresia que compõe o cenário da HQ.

Morto e Martin estão sozinhos em um navio, à deriva – sensação esta que se impõe sobre a obra. Em dado momento, o alter-ego do quadrinista afirma: “Minhas histórias são caracóis. Encolhidos e patéticos.”

Para quem já conhece e admira o trabalho de Sanchez, pode vir sem medo. Mas como primeiro contato, Hermínia e Perpetuum Mobile oferecem entradas mais consistentes. (MJR)

RAIO LASER APRESENTA: 3º CURSO "HISTÓRIA DOS QUADRINHOS: TRAJETÓRIA DE UMA ARTE SEQUENCIAL"

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As histórias em quadrinhos são fascinantes por suas cores vibrantes, por seu imaginário sem limites e sua força na cultura pop, certo? Ora, fazendo o curso HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS – TRAJETÓRIA DE UMA ARTE SEQUENCIAL, você vai descobrir que o mundo das HQs é muito mais vasto e interessante do que isso. Ministrado por dois professores completamente aficcionados (do site RAIO LASER e da coluna ZIP – QUADRINHOS E CULTURA POP, do site METRÓPOLES) e interessados em fatores culturais, sociais, históricos e estéticos desta mídia, este curso é uma oportunidade única de mergulhar com profundidade nos quadrinhos. Serão ensinados sua origem na antiguidade, as tiras cômicas do começo do século, quadrinhos franceses, japoneses, italianos, ingleses, argentinos e brasileiros. Além, é claro, da tradição norte-americana com seus famosos super-heróis. É a sua chance de compreender como os quadrinhos se manifestam como arte, como cultura e contra-cultura, como influenciam na sociedade e como evoluíram em geografias distintas através do tempo.

06 encontros / 18 horas-aula

Período: 08 a 19 de maio de 2017 – segundas, quartas e sextas, de 19h às 22h

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Valor: R$ 320,00 

Matrículas: http://www.espacocult.com.br/produto/historiadosquadrinhos2017/

O processo de inscrição e pagamento é totalmente realizado no nosso site. Defina a quantidade de matrículas que deseja realizar e clique no botão “comprar”. Caso você prefira, poderá matricular-se diretamente no Espaço Cult, na 215 sul (Brasília).

Você pode pode parcelar no cartão de crédito em até 03 vezes sem juros ou em até 12 vezes fixas, com juros cobrados diretamente pelo PagSeguro, ou pagar à vista com boleto bancário ou transferência bancária (Banco do Brasil, Bradesco, HSBC ou Itaú).

CRONOGRAMA:

Aula 01 (08/05): O surgimento dos quadrinhos + primeiros quadrinhos: ainda no século XIX, os quadrinhos despontaram como mídia influente, industrializada, de conteúdo anárquico e politicamente incorreto. Krazy Kat; Little Nemo; Mutt and Jeff; O menino amarelo. Os funnies e a popularidade das family strips.

Aula 02 (10/05): Era de ouro americana + o quadrinho de horror (período clássico): a era clássica dos quadrinhos e a ascensão do heroísmo (Flash Gordon, Tarzan, Príncipe Valente, Dick Tracy). A criação do comic book e dos super-heróis (Superman; Batman). Will Eisner e Spirit. A popularidade da EC Comics e dos quadrinhos de horror, guerra e ficção científica. O código de censura e o fim da era de ouro.

Aula 03 (12/05): A cultura da BD e o quadrinho francobelga: os quadrinhos de tradição francófona em duas frentes. A rivalidade entre as revistas Spirou e Tintin e o quadrinho de humor (gros nez e linha clara). Jerry Spring, Lucky Luke, Spirou, Tintim, Asterix, Gaston Lagaffe. O quadrinho adulto francobelga a partir de revistas como Pilote e Métal Hurlant, entre outras. Autores: Dionet, Moebius, Druillet, Lob, Bilal, Jodorowsky, Tardi, Hermann, etc.

Aula 04 (15/05): O quadrinho italiano (fumetti) + o quadrinho japonês (mangá): introdução à cultura de HQ pulp das bancas italianas com faroeste (Tex, Ken Parker, Mágico Vento), aventura e horror (Martin Mystère, Dylan Dog, J. Kendall). O quadrinho autoral italiano: Hugo Pratt, Crepax, Manara, Serpieri, Liberatori. A cultura de quadrinhos japonesa em seus âmbitos histórico, social, industrial. Mangás e gekigás. Autores: Osamu Tezuka, Hayao Miiazaki, Katsuhiro Otomo, Suehiro Maruo, Yoshihiro Tatsumi, Jirô Taniguchi.

Aula 05 (17/05): O super-herói das eras de prata e bronze + O quadrinho nacional: o retorno à cultura de super-heróis a partir da ascensão da Marvel nos anos 1960. Stan Lee, Jack Kirby, Steve Ditko, John Buscema, etc. O dilema do herói na era do Vietnã e no flower power. O amadurecimento dos super-heróis no final dos anos 80 e o surgimento do anti-herói: John Byrne, Frank Miller, Alan Moore, Neil Gaiman, Grant Morrison. A trajetória do quadrinho brasileiro, desde os primórdios (Angelo Agostini a Tico-tico) até nomes históricos como Mauricio de Sousa, Ziraldo, Henfil, Angeli, Laerte, Glauco, Mozart Couto, Watson Portela, Shimamoto, Colin, Mutarelli, chegando à contemporaneidade.

Aula 06 (19/05): Os quadrinhos underground (comix) e o quadrinho autoral contemporâneo: a cultura de subversão do quadrinho independente americano dos anos 60. De Zap Comix a American Splendor e Raw (Crumb, Shelton, Spain, Pekar, Spiegleman, etc). O amadurecimento dos quadrinhos autorais a partir dos anos 80. Love and rockets, Maus e a revolução indie. Autores contemporâneos: Joe Sacco, Alison Bechdel, Daniel Clowes, Charles Burns, Marjane Satrapi, Chris Ware, etc.

PROFESSORES:

Ciro I. Marcondes é professor, crítico e pesquisador de Histórias em Quadrinhos e Cinema. Foi professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, do curso de Cinema do IESB e de Audiovisual no Unicesp. Atualmente ministra aulas no curso de Comunicação do UniProjeção. É Doutor em Comunicação e Mestre em Literatura pela Universidade de Brasília, com passagem pela Sorbonne. É o editor do site www.raiolaser.net, especializado em crítica de Histórias em Quadrinhos, e mantém semanalmente, no portal Metrópoles, a coluna Zip – Quadrinhos e Cultura Pop. Já ministrou cursos como “História do Cinema”, “Crítica de cinema e análise fílmica”, “Hitchcock e a ilusão do cinema”, “Cinema e filosofia”, para o Espaço Cult, Centro Cultural Banco do Brasil e Espaço Varanda.

Pedro Brandt é jornalista formado pela Universidade Católica de Brasília (2006). Passou pelas editorias de cultura dos jornais Tribuna do Brasil (2005-2007), Jornal de Brasília (2007-2008) e Correio Braziliense (2008-2012), para as quais escreveu sobre diversos assuntos, com destaque para música e histórias em quadrinhos. Produziu e apresentou durante cinco anos (2006-2011), junto com Fernando Rosa, o programa Senhor F, na Rádio Cultura FM de Brasília, com enfoque diferenciado em clássicos, obscuridades e novidades do rock. Também trabalha como assessor de imprensa e coordenador de comunicação de projetos culturais, produtor de shows de rock e idealizador do selo Discos Além (lançamentos em vinil e CD). É articulista e editor do site especializado em quadrinhos Raio Laser (www.raiolaser.net). 

Superego: terapia superheroística made in Brazil

por Marcos Maciel de Almeida

Caio Oliveira é quase uma unanimidade no underground quadrinístico nacional. E sua presença é sentida de diversas formas no meio. Vejamos. Pelo formato tradicional ele publica quadrinhos indies adorados, como All Hipster Marvel ou Alan Moore - o Mago Supremo. Nas plataformas digitais ele também deixa sua marca, com sua prolífica página no facebook, Cantinho do Caio, em que posta – com frequência quase religiosa – sátiras que versam sobre temas do universo pop, principalmente quadrinhos. 

Finalmente, Caio também materializa sua onipresença na moda nerd. As camisetas com a capa de seu gibi O Mago Supremo vestiram toda uma geração de fãs de quadrinho em geral e de seu trabalho em particular. Senti isso em 2015, no Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte, em que suas camisetas pareciam ter se tornado item obrigatório do fã descolado. Foi naquele evento que tive o primeiro contato com o trabalho do artista piauiense.

Exemplo de humor peculiar na página de Caio

Na época, ele estava fazendo um pacotão para vender três obras publicadas em português: All Hipster Marvel, Alan Moore e Panza. Eu, mão de vaca que sou, só comprei os dois primeiros, para meu futuro arrependimento. O troço era bom pra cacete. É a produção de um cara que tem um senso de humor único, com forte teor satírico, fruto de cuidadosa observação do meio quadrinístico, seja dos gibis em si, seja do que rola nos bastidores. E, claro, sua longa jornada como fã da nona arte conta bastante na construção desse olhar. 

Desnecessário dizer que a partir daquele momento de conversão passei a acompanhar avidamente sua página no facebook, onde pude me deleitar com tiradas humorísticas cujas referências incluíam de Chaves a Clube da Luta. Ah, esqueci de dizer que no FIQ 2015 o Caio também estava expondo outro filhote seu, Superego, esse em inglês, lançado no mercado norte-americano em 2014 pela Magnetic Press

O gibi, que namorei bastante, mas também acabei não levando, tinha uma capa maneira feita pelo Glenn Fabry e parecia bastante interessante, tanto na arte quanto na história, ainda que o tema do psicólogo de heróis já não fosse novidade para quem acompanhou o X-Factor de Peter David. Mas o lance é que agora o personagem principal do gibi era o próprio terapeuta. E pô, o título do gibi era bem bacana. Vai dizer que não?

E eis que no início de 2017, apoiado por um esquema de vaquinha virtual, Superego dá as caras em português. A edição coleciona quatro histórias, no formato de minissérie, com um montão de extras, tais como perfis psicológicos dos personagens, além de esboços. 

Superego relata o quotidiano de Eugene Goodman, aka Dr. Ego, terapeuta de combatentes do crime. E o dia-a-dia do “dotô” não é nada fácil, porque haja paciência e jogo de cintura para lidar com os egos astronômicos de caras que são o poder encarnado.  À vontade, e em um clima despretensioso, Caio monta um desfile de arquétipos superheroísticos, sem abrir mão de pitadas generosas de criatividade. A pegada aqui lembra a Liga da Justiça Internacional de Keith Giffen e JM DeMatteis, em que os personagens não se levavam tão a sério. Esse tipo de abordagem é muito instigante, porque permite uma leitura mais crua do que está por trás de cada personagem. É como se os heróis estivessem sendo analisados pelos melhores amigos, que são as pessoas que realmente os conhecem a fundo. 

E é claro que essa maior intimidade permite que os supers sejam ainda mais sacaneados por seus buddies. Isso não é diferente em Superego, em que o papel de analista da mente heroística é feito de modo indireto pelo próprio autor, desta vez representado pelo Dr. Ego. Assim, a bagagem de leitor inveterado de Caio se torna juíza e júri do que funciona e de quais são os pontos fracos dos personagens do gênero. Isso fica bastante claro nos momentos em que ele expressa a ideia de que muitos heróis – principalmente aqueles com melhores meios financeiros e intelectuais – poderiam ter feito mais diferença na sociedade na qualidade de pessoas comuns e não na de vigilantes. 

Outra experiência que trabalha a favor do autor é sua vivência na produção quotidiana de textos para abastecer as sátiras presentes em seu facebook. A narrativa de Superego é redonda e os diálogos são fluidos e verossímeis.  A construção da história é feita de forma leve e divertida, como os gibis do tipo deveriam ser. O traço de Caio consegue ser, simultaneamente, sutil e detalhista. Há ocasiões de pura expressividade, como no momento ao lado, em que o herói adolescente capaz de destruir montanhas não consegue suportar a dor da rejeição amorosa.

Do cast hilário e bizarro, quem mais me chamou a atenção foi o “Luchador de Fierro”, alter ego de Javier Hernandez, espécie de Tony Stark mexicano. Novamente, o senso de humor privilegiado de Caio destila um personagem que vai além da proposta original do homenageado, conferindo-lhe nuances mais deprimentes, mas muito apropriadas. 

Fãs hardcore e novatos vão se divertir muito com Superego. Claro que os mais antigos captarão mais as piadas e referências escondidas, mas o gibi é um prato cheio para todos. É frase batida dizer que alguns gibis são feitos de fã para fã, mas neste caso não existe expressão mais acertada. Produzindo de forma independente,  Caio está livre para mostrar, sem amarras ou censuras, o que realmente mexe com sua cabeça de fanboy. Mal comparando, imagine que a mente do autor é uma espécie de liquidificador que, durante décadas, misturou inúmeros gibis de super-heróis, de todos os tipos e sabores. Se quiser conhecer um dos resultados mais hilariantes e sagazes desse caldeirão de referências, dê uma conferida nos filhotes de Caio Oliveira. 

Verdadeira lição de anatomia: “Estudante de Medicina”, de Cynthia Bonacossa

por Ciro I. Marcondes

Sabem aquela clássica história de Alan Moore do Monstro do Pântano, “Lição de Anatomia”? Sim, aquela em que descobrimos que um sujeito chamado Alec Holland não era um homem que virou uma planta, e sim uma planta que se transformou num homem? Pois bem: eu gostaria de me utilizar desta tosca analogia com um quadrinho de super-herói para começar a falar deste absolutamente surpreendente quadrinho autoral brasileiro que fala basicamente sobre as constantes transformações e re-transformações de uma menina em uma pessoa adulta (além de ressacas, abcessos nojentos e sobre como abandonar uma carreira que supostamente todos desejam).

Na verdade nem tão surpreendente assim.

Eu sempre achei histericamente hilárias as histórias curtas de Cynthia Bonacossa, com sua predileção pelo desastre calculado pela neurose e referências legais (legais mesmo: não vazias, tira-onda e gratuitas) de filmes e músicas. Até aqui, seus quadrinhos tinham uma pegada mais indie, com narrativas de traço cartum “redondinho” cheias de inferências, digressões e interrupções nos recordatórios. Além de escatologias doidas, obsessões eróticas e uma maneira de autoironizar como poucos (ou ninguém) fazem no quadrinho brasileiro contemporâneo. 

Ela ainda foi responsável (j’accuse!) pela editoração das duas edições (hoje já “clássicas”) da revista de humor, zoeira da pesada e putaria Golden Shower. Mérito o suficiente? Nada comparado ao seu primeiro romance gráfico, que está sendo lançado pela Editora Veneta, Estudante de medicina. Aqui, a porra fica séria. Opa. Não me entendam mal. Continua histericamente hilário, mas é um upgrade (naquilo que uma HQ pode dizer) de levar lágrimas aos olhos.

Cynthia faz atualmente residência (uma segunda residência para ela, diga-se) para quadrinistas na cidade francesa de Angoulême. Acho que isso explica alguma coisa. O que parecia vir de Crumb, Peter Bagge, etc., ganha certos contornos mais franceses. Os desenhos ficam mais rabiscados e caóticos, expressões no olhar mais perturbadoras e francamente cômicas, detalhes rascunhados da cidade do Rio de Janeiro têm aquele ar incompleto que cabe bem tanto a um Henfil quanto a um Cabu ou Wolinski (povo politicamente incorreto da Charlie Hebdo. RIP). Além, é claro, de um quê de seu mestre Allan Sieber

Estudante de Medicina tem esse primeiro mérito: o de encaixar o traço, de acertar 100% na identidade visual e retratar genuinamente uma cidade. Afinal, esta HQ é também sobre o Rio de Janeiro, que sobe vivo em cada paisagenzinha em quadrinhos pequeninos, em cada gíria pé inchada, em cada letra de funk que escapa (Zona Sul se autozoando, mas foda-se né?).

O romance gráfico de Cynthia foi lançado na França com o título de “Carabin et Caipirinha” (o que ressalta bastante o seu teor etílico), mas creio que, tirando esse humor bufo, essa quadrinização descompromissada (só de mentirinha), e o preto-e-branco farelento que é tendência na HQ francesa autoral contemporânea (vide Trondheim), a coisa é muito, muito brasileira e fiquei curioso pra ver como certas situações carioquíssimas se resolvem em outras línguas. Sobretudo, porque se trata da vida universitária brasileira, esse festival de baixaria e pegadinhas cuja sem-noçãozice ultrapassa um “pouquinho” os limites do aceitável e da civilidade. Cursos tradicionais como medicina produzem experts nessa arte brasileira da fuleiragem sem fronteiras. 

Na HQ, Cynthia se autorrepresenta como uma jovem ingressante em um curso desses. Sem pregar ou necessariamente julgar (mas fazendo observações interessantes nas entrelinhas), ela vai contando a história de alguém (neste meio) que vai tensionando as dificuldades de apenas se dar mal (seja afetivamente, seja academicamente, seja socialmente, seja sexualmente) e ao mesmo tempo não conseguir (diga-se: não por falta de inteligência, mas sim por falta de controle da própria vida) levar a faculdade de medicina com o altíssimo nível de seriedade que a “cátedra” exige. Ela tinha talento para desenhar, enfim.

Daí

Estudante de Medicina tratar tão bem da própria vida de sua autora, com fortíssima carga de sarcasmo que se espraia por diálogos safados, referências nem tão eruditas, desenhos histriônicos e a absoluta capacidade de olhar para tudo e todos com a devida profundidade, sem criar estereótipos ou cair em arapucas reducionistas. Professores e colegas “comédia” são relembrados, assim como machos escrotos, eventos tipo calourada e churrascos bagaceira, tudo dentro de um contexto mais sério da própria atividade do médico. 

Cynthia relembra casos bizarros (como o de um cara que ficou com o p*u de um cachorro atracado no c*) e experiências tristes (em todos sentidos) examinando pacientes com sarnas, tumores, gosmas, além de cadáveres em formol, autópsia de ratos e pacientes psiquiátricos. Mais ainda: a natureza hardcore e ao mesmo tempo engraçada de aulas de medicina é lembrada em trechos de livros que elucidam algo sobre a vida, com incríveis desenhos de biologia celular. 

Porém, assim como a "Lição de Anatomia" de Moore não é sobre super-heróis e sim sobre a transmigração da consciência para diferentes tipos de configuração da matéria, a "Lição de Anatomia" de Cynthia Bonacossa não é exatamente sobre os perrengues de se fazer medicina no Rio de Janeiro nos anos 00 (até o Orkut tem sua aparição), e sim sobre os percalços de se transmutar de uma pessoa inocente, insegura e inconsequente em uma capaz de lidar com os terríveis fantasmas que vão consumindo a vida dos jovens adultos. O caso dos temas de “amor e sexo” é particularmente relevante para esta graphic. A dificuldade em se livrar de um namorado bonzinho, a culpa castradora e uma até natural compulsão pelo sexo são levados como transtornos terríveis, como se o ego da personagem/autora fossem totalmente espremido por um superego e um ID realmente insaciáveis.

Na medida exata em que traduz sua experiência em humor e drama, seria possível comparar Cynthia a Woody Allen (se ele não estivesse fazendo filmes tão ruins). Prefiro dizer que ela possui luz própria, com discurso inteligente e robusto, sem lamúrias vitimistas ou pena de si própria, inclusive com excelente capacidade de ilustrar devaneios, jogos mentais e abstrações. Lição primorosa pra qualquer macho vagabundo fazendo quadrinho ruim Brasil afora. E eu que achava que Mensur do Coutinho não teria desafiantes à altura em 2017. Um mês depois e: “não, péra”...

Demolidor de bronze

por Márcio Jr.

Mark Waid e Chris Samnee fizeram meu Demolidor nº 3.

Frank Miller e o trio Ann Nocenti, John Romita Jr. e Al Williamson (um deus dos quadrinhos, brilhando na arte-final mais linda e delicada que já entintou JRJR) ocupam, respectivamente, os dois primeiros lugares desse pódio particular. Melhor gibi de super-herói dos últimos tempos. Disparado. Justamente por não ser pretensioso. Talento de sobra, a técnica na palma da mão. O resultado não poderia ser outro.

Poderia acompanhar a série anos a fio, apenas saboreando as idas e vindas da vida do Matt Murdock de Mark Waid. Mas acabou. No Brasil, foram 11 volumes. Tá de bom tamanho.

Impressionante como ao longo de todo este tempo o roteirista manteve o título em um nível muito alto, sem apelar a nenhum tipo de jogo fácil. Nenhuma morte ou reinvenção descabida do personagem. Nenhum truque barato pra pegar o velho e cordato nerd. Só o cuidado com a qualidade das histórias, diálogo direto com o leitor. Diversão de primeira. Tudo que eu espero de uma HQ de super-herói.

E pensar que ali pelos anos 70, a esmagadora maioria dos gibis da Marvel era deste nível.

Samnee não foi o único desenhista da série. A coisa começou com Paolo Rivera, passando pelo grande Marcos Martin – ambos especializados em visual vintage, narrativa clássica. Coisa fina. Mas foi Samnee que levou o barco mais adiante.

Os gibis de super-heróis atuais navegam a onda do hiper-realismo gráfico. O cara desenha até a costura da cueca. Dá-lhe hachura. Tudo parecido, duro, sem inventividade – salvo raras exceções.

Samnee é contemporâneo, sem virar as costas para o passado. Seu desenho é elegante e sempre bem resolvido. E o mais importante, não está preocupado em desenhar tudo presente na cena, mas sim em representar o que lá acontece. Manda muito bem em sequências de ação, com coreografias supimpa. E também nas cenas de diálogo, de encontros entre personagens humanos, sem uniformes de super-herói. Chris Samnee tem um senso de direção de atores que potencializa o texto invariavelmente inspirado de Mark Waid. É isso que um gibi de super-herói tem que ser: inteligente, criativo, instigante e divertido. Imaginação correndo solta. Menos que isso, não vale nada.

Muito foi dito sobre a cena do beijo que dá início à série. Café pequeno. Tampouco que Demolidor seja um série “leve e alegre como nos velhos tempos” ou algo que o valha. Porra nenhuma. O Demolidor de Waid só não é soturno e pretensioso como o de Miller. As tramas são complexas e incrivelmente bem desenvolvidas pelo roteirista. Uma narrativa dinâmica atravessa gibi após gibi. Alex Toth e Jordi Bernet, responsáveis pelo clássico Torpedo 1936, estão na fonte. Samnee dando um show de design na maioria das capas. Por mim, vai pro trono.

Rapidinhas Raio Laser #06

Indo direto ao ponto desta vez, esta é a sexta edição das nossas Rapidinhas (I.E.: resenhas curtas de quadrinhos autorais nacionais). Ela contou com o esforço de quase toda a equipe Raio Laser. Vejam que as Rapidinhas vão ficando mais longas e menos rápidas. Não importa. São mais onze textos fresquinhos para você. (CIM)

Caso queira aparecer por aqui, envie seu material para:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070

por Márcio Jr., Pedro Brandt, Marcos Maciel de Almeida e Ciro I. Marcondes

MUNDO PARALELO Aventura e Ficção nº 1 – Vários (Independente, 2016, 152 p.): Pode parecer estranho, mas histórias em quadrinhos adultas (ou quase) já foram um meio de comunicação extremamente popular no Brasil. Majoritariamente encontradas em bancas de revista, custavam o equivalente a uma ou duas carteiras de cigarro, e suas tiragens mais baixas ultrapassavam com tranquilidade dez mil exemplares. Neste panorama, as revistas mix eram bastante comuns e tinham por característica trazer diversos autores em uma mesma edição, quase sempre em narrativas curtas e fechadas.

Animal, Circo e Heavy Metal, entre tantas outras, tiveram seu momento e deixaram saudade – saudade essa que o editor e roteirista Walter Klattu deseja matar com Mundo Paralelo: Aventura e Ficção (subtítulo saborosamente surrupiado da saudosa revista publicada pela Editora Abril).

A intenção é das melhores. Nesta primeira edição – houve um nº zero anterior, importante lembrar –, Klattu nos entrega um calhamaço com 13 histórias, em excelente impressão, por módicos R$ 8,00. A capa, belíssimo trabalho da dupla Eduardo Cardenas e Eduardo Schaal, tem envergadura para estampar qualquer Metal Hurlant da vida, e ainda traz uma crocante aplicação em prata no título. Se o miolo da revista apresenta um timaço de desenhistas, a maioria dos roteiros se debate contra o complexo labor das narrativas curtas.

Klattu e Cardenas abrem a picada com Obuz, uma HQ de 16 páginas – que necessitaria outras cem para desenvolver adequadamente a miríade de conceitos e personagens apresentados. Cardenas retorna com sua arte fantástica em O Sol Negro – trama vampiresca que também clama por mais espaço –, e Próto 9, onde arte-finaliza Sebastião Seabra, valorizando a qualidade do desenho do veterano. E por falar em veteranos, é sempre um prazer reencontrar o craque Mozart Couto, mestre do quadrinho nacional e nosso maior expoente no gênero Espada & Magia. Em Urian, Mozart mostra o que todos já sabemos: que ele faria um Conan à altura de John Buscema. Guerreiros também estão presentes nas duas HQs ilustradas com maestria por João Azeitona: A Caça e Zulu – o roteiro mais bem resolvido de toda a edição, autoria do macaco velho Gian Danton.

Loop é a única HQ de Mundo Paralelo em que o texto (inventivo e inusitado) é superior ao desenho. Dois feras escolados dão um gás extra aos roteiros de Klattu: Em O Velho Bunko, Rodrigo Rosa manda um storytelling impecável; e Fabio Cobiaco cria um balé de movimento impressionista em Arena. Volcânia Blues, Vór, Macarius e Muru, ainda que diferentes entre si, apresentam a mesma estrutura: desenhos no mínimo eficientes para tramas que não se concluem, dando a impressão que novos capítulos virão para desenvolver melhor os personagens apresentados. Se a ideia for mesmo essa, o hiato entre as edições cria um sério problema de continuidade para as HQs.

De qualquer forma, Mundo Paralelo é um gibizaço. A coragem (e paixão) de Klattu em reviver um formato de publicação em desuso há pelo menos duas décadas é digna de muito mais que louvor: é digna de leitura. Infelizmente, a revista segue o velho esquema de distribuição independente, em lojas específicas e internet. Gostaria muito de ver os resultados de uma Mundo Paralelo distribuída pelas bancas do país. Por apenas oito mangos e com o recheio que traz em si, tenho quase certeza que o apelo junto ao público seria surpreendente. (MJR)

BlitzkriegBruno Seelig (Independente, 2016, 14 p.): Traço fino, angulações bem pensadas, bom timing, certo tom cartunesco (pero no mucho) e uma historinha de 14 páginas. Boa impressão e sombreamento na coloração azulada, múltiplas referências, uma lição simples e singela.

Blitzkrieg, do gaúcho Bruno Seelig, é uma aposta nostálgica (“Oh ! que saudades que eu tenho / Da aurora da minha vida, / Da minha infância querida / Que os anos não trazem mais!”), tipo ressaca de Stranger Things, no imaginário “moleque” da sexta série. O acabamento é lindo, o cuidado com expressões, letreiramento e design de personagens é ótimo e as interações entre eles são bastante aceitáveis. Me incomoda apenas o tom muito “bonzinho” da HQ (tem até uma querela estilo “Luther King x Malcolm X”) e sua mensagem fofa e insípida no final, que me lembrou Garrocho e Damasceno. O texto propõe uma masculinidade na infância repensada segundo ditames contemporâneos de sensibilidade e respeito ao próximo. Ok, bons valores, e o gibi é despretensioso. Mas acho que faltou algum tempero, uma pequena dose de malícia, um princípio de desvirtuação (vejam bem, não tô pedindo pra ser escroto). Dito isso, Seelig é um talento que valerá a pena observar nos próximos tempos. (CIM)

Fim do Mundo André Ducci (Arte e Letra, 2014): André Ducci não economizou esmero durante a produção de Fim do Mundo. O gibi exala grandiosidade e elegância, ambas favorecidas pela edição caprichada e pela fineza do traço. Esta HQ sem palavras – mas jamais muda – narra a viagem de um esquimó em busca de si próprio.

Esta jornada em terrenos nevados, águas profundas e montanhas inexpugnáveis terá por companhia apenas silêncio e solidão, algozes impiedosos para Amyr Klink algum botar defeito.

Durante sua jornada incessante, o esquimó nasce e renasce em diferentes identidades, como que para demonstrar a perenidade de sua obsessão, que se tornou maior que a vida. Bem, pelo menos foi isto que consegui entender. Posso estar totalmente errado em minha interpretação. Mas de uma coisa, eu não tenho dúvidas: o gibi de André Ducci é poesia pura esculpida em formato de arte sequencial. (MMA)

Catacumba - Kiko Garcia (Kikocomics, 2015, 40 p.): Idealizada, escrita, ilustrada, editada e publicada pelo paulistano Kiko Garcia, a revista Catacumba apresenta quadrinhos de terror à moda antiga, ao estilo das clássicas Eerie, Creepy e, especialmente, de publicações nacionais como Kripta, Spektro e Calafrio.

Cada história é sarcasticamente (“Boa noite meus tenebrosos amigos! Então tiveram coragem de descer à sinistra catacumba?”) apresentada por uma criatura, espécie de morto-vivo, que contextualiza aos leitores parte do que virá a seguir. As três edições (a mais recente é de setembro de 2016), com três histórias cada, são temáticas, respectivamente: “Pavor da escada”, “Loiras macabras” e “Antiquários dos horrores”

A narrativa de terror para ser eficiente depende muito da criação de climas, de como as informações visuais e textuais são construídas no sentido de impressionar o leitor, tirar seu fôlego, surpreendê-lo. Aqui – como, em geral, também nos quadrinhos que inspiraram Catacumba – a narrativa é bastante crua, dependendo muito dos textos dos recordatórios e menos das sequências de ilustrações. É um terror que, se não assusta necessariamente pelo que é “falado”, instiga o olhar e, em segundo lugar, alguma curiosidade para saber o desfecho de cada trama – que bebem de causos, lendas urbanas e “histórias que o povo conta”. Destaque para “Revelação maldita”, da edição 2, com uma história digna de Mojica Marins.

Catacumba funciona bem porque Kiko Garcia conhece o território (maldito) onde pisa e, mais do que uma homenagem à antigas HQs de terror, seus quadrinhos transpiram paixão por essa matriz. Seu traço tem algo da carpintaria em preto e branco de alto contraste dos mestres Flávio Colin e Júlio Shimamoto. A maneira como ele junta os painéis dentro da página – com requadros de diferentes tamanhos e cortes – dá uma fluidez onírica ao conjunto. Quem curte essa vibe não pode deixar de conhecer. (PB)

O Intestino EloquenteAndrício de Souza (Editora Espirro, 2015, 154 p.): Bem, fazer uma resenha dos “quadrinhos” de Andrício de Souza é uma tarefa um tanto quanto paradoxal. Afinal, este camarada está no campo do pastiche de tudo e todos, absolutamente. Pastiche dos quadrinhos, quando na verdade ele apenas desenha pessoas reais (com caneta Bic!) recitando “poesia” chula de quinta categoria. Pastiche da própria poesia quando, bem, recitar umas tolices no esquema “batatinha quando nasce” (o famoso ABAB) com conteúdo ultrajante só pode atingir a própria suposta “nobreza” da arte poética, tão ignorada também por tudo e todos hoje em dia. Até mesmo o nome do maluco é um pastiche – de Maurício de Sousa, “patrono”, “godfather”, “tirano monopolizador” do quadrinho nacional. O que sobra disso tudo? Ora, veja bem: alguém que escreve “Se eu te chamar de vagabundo / Será para elogiar / Não há nada mais idiota / Que gostar de trabalhar”, para mim, certamente tem grande valor.

Andrício se refestela na tosquêra. Seu estilo lacônico de escrever (há textos explicativos antes dos “capítulos”, de uma ironia besta, ao mesmo tempo modesta e retardada), encantador de tão prosaico e autista, é de uma simpatia meio que injustificável. Parece algo como um André Dahmer com a cabeça cheia de Zoloft. Nessa linha, avesso do avesso, Andrício vai moendo temas tradicionais da poesia (o amor, o trabalho, a filosofia, a família, Deus) e outros nem tanto (como o cocô e o xixi). É um festival de besteirol inteligente, e chegamos a vislumbrar que, em algum lugar do multiverso, exista um Andrício que é realmente um bom poeta, outro que é realmente um bom quadrinista, e até mesmo um que ocupe

o lugar de Maurício de Sousa no “iron throne” dos quadrinhos nacionais. Dito isso, vale ressaltar a habilidade (uma coisa meio “escola técnica” mesmo) de Andrício em reproduzir fisionomias, gestos e cacoetes de seus personagens, sejam os modelos pessoas famosas ou não. Parte da graça está em observar expressões, detalhes das roupas e estilos destes poetas anônimos. Mas a graça mesmo está em versos inesquecíveis como: “Tive um pesadelo horroroso / De que meus pais estavam transando / Acordei e fiquei bastante aliviado, / Era apenas o mundo acabando.” Jênio! (CIM)

Cabuloso Suco Gástrico – Breno Ferreira (Elefante em Quadrinhos, 2015): CSG foi separado no nascimento de seu irmão, o gibi Quadrinhos Perturbados, resenhado nas Rapidinhas Raio Laser número 5. Assim como na revista de João Rabello, reinam aqui as tiras baseadas em temas aleatórios e com altas doses de ironia. A grande diferença é que, em CSG, temos um desenhista mais pronto, capaz de segurar a onda para retratar suas ideias insanas. O surrealismo dá as cartas aqui, seja por meio dos enquadramentos escolhidos ou pela seleção de temas insólitos, tais como o monstro que sai das profundezas para fazer sua declaração de imposto de renda ou o homem que tem o vaso sanitário como terapeuta. Um dos méritos de Breno é sua habilidade em trabalhar com temas como amor, opressão dos tempos modernos e desesperança com um olhar humorístico que não é nem clichê nem piegas. O que mais me chamou a atenção foram as tiras intituladas “Paródias da Vida da Morte”, nas quais Breno narra o cotidiano da Senhora de capuz e foice que, veterana na arte de testemunhar os momentos finais dos seres humanos, destila a quintessência do sarcasmo. Estas paródias são bem boladas e acho que poderiam segurar um gibi inteiro. Embora peque pela irregularidade na qualidade das piadas,

CSG é uma boa pedida para filosofar e refletir, de forma divertida, sobre os rumos atuais da nossa boa e velha humanidade. (MMA)

Mikrokosmos – Thiago Souto (Independente, 2014, 24 p.): Mikrokosmos tem uma qualidade inegável: a ousadia de se pensar o grid da uma história em quadrinhos como de alguma forma análoga à partitura musical. Segunda publicação de Thiago Souto e lançada na forma de zine, esta HQ tem tratamento refinado no acabamento e coloração (a música, os delírios e o abstrato em geral aparecem em púrpura; o resto, em carregados tons de cinza), além de uma aproximação conceitual interessante. Souto vai misturando a sensibilidade emocional e musical de seu protagonista (ele é um astronauta que um dia foi um grande músico) à resolução pragmática de um problema com sua nave no espaço. Acaba-se ressaltando aquela sensação que temos quando estamos fazendo um trabalho MUITO perrengue e começamos a lembrar da nossa infância, de toda nossa trajetória e sofrimentos.

A presença da música é inegavelmente bela e bem construída, com a mãe do personagem – exímia concertista do “Concerto para piano Nº 2”, de Rachmaninoff. Um dos mais belos do gênero, por sinal – servindo como superego de um protagonista torturado e traumatizado. Um dos melhores momentos é quando Souto equipara a mão que toca piano com aquela que aperta botões da cabine de comando da nave. Mikrokosmos é feita assim, de belas analogias, boa quadrinização e referências eruditas. Fica no meio do caminho entre Astronauta – Magnetar, de Danilo Beyruth, e Aama de Frederick Peeters, ainda que guardadas as proporções de uma produção modesta e zinesca como esta e o status editorial das outras. É certo que Mikrokosmos carrega certa frieza “espacial” na maneira desajeitada de lidar com tantas ambições (é ainda difícil de se deixar levar pelas emoções sugeridas), e a arte poderia ter um detalhamento mais elaborado. Lembra um rascunho, em forma e conteúdo, mas está de bom tamanho para uma produção independente e levemente experimental. (CIM)

Incoerente Coletivo Nº 2; Metrô – Guilherme de Lacerda, Dino Motta, Filipe Henz, Eduardo Calazans, Marmota, Lucas Bonacho (Incoerente Coletivo, 2016, 56 p. e 18 p.): Direto de Taguatinga vem esse coletivo de quadrinhos que só tem a somar à prolífica cena do DF. Assim como outras publicações independentes com participações de brasilienses, como Aerolito e Mandíbula, as publicações do Incoerente Coletivo são irregulares, e há um natural desnível entre os artistas (sem querer criar tretas!), mas o projeto em si é estimulante e interessante. Há força de vontade, boas ideias e a disposição para realizar coisas. Meio caminho andado. O que pintou na minha mão foi a edição número 2 da revista mix do coletivo. Seis artistas dividem suas influências num volume gordinho cheio de histórias cuja bela capa ostenta um Mustang laranja num posto de gasolina perto do crepúsculo. Uma coisa assim “Hopper encontra Tarantino num quadrinho de rua”. Trata-se de cinco histórias, todas bem ajambradas, coerentes narrativamente, trabalhando gêneros diversos (da aventura especial, à aventura marítima, ao cyberpunk, ao drama familiar). Minhas favoritas foram “Sonda 7/9”, por Filipe Henz, com corretos questionamentos sobre nosso lugar no universo, uma arte dinâmica e personalizada, e a eficiente manutenção de um mistério; e “Augusto, o arauto da destruição”, por Marmota e Lucas Bonacho, típico quadrinho de fanboy de RPG, mas com muito carisma nos desenhos meio mangá e humor na dose certa. Lembra as coisas antigas (digo anos 90) de Marcelo Cassaro e aquele Bear, da Bianca Pinheiro. Os outros são um pouco mais amadores, seja na arte ou nas ideias. É preciso o coletivo crescer na robustez da proposta, e fazer algo menos descartável. Mas um passo de cada vez.

O outro gibi, um formatinho adorável chamado Metrô, reúne o mesmo time desta vez para elaborar uma visão coletiva em histórias sobre o metrô no DF. São loucos, crianças, bullys, motoristas. Enfim, gente normal e amalhoada pela vida, sempre de passagem, sendo o transporte público metáfora para certa efemeridade. Não é o tema mais original, mas quem se importa? Sempre funciona. A edição é bastante caprichada, gostosa de se ler, e a qualidade dos sketches (formando uma totalidade conceitual) é maior do que nas histórias individuais da edição 2 de Incoerente Coletivo. Ficamos no aguardo do futuro desses caras. (CIM)

Nanquim Descartável # 4 – Daniel Esteves e vários (HQ em Foco, 2010): As desventuras amorosas de Ju, Sandra e Tuba são o tema principal deste gibi, que se passa na capital paulista. Os personagens, bem construídos, são bastante verossímeis e poderiam, tranquilamente, fazer parte de qualquer turma de amigos no Brasil. Deles, o que mais gostei foi Tuba, uma espécie de Rolo (Turma da Mônica) da Geração Z. Tudo muito bom, tudo muito bem, mas o autor poderia ter dado melhor destino para suas criações. A HQ peca pelo clima de novelão que permeia todas as histórias, especialmente as de Ju. Esta última precisa urgentemente de sessões de terapia para resolver seus problemas sentimentais de modo mais rápido. Talvez a obrigação de ter de pagar pela consulta faça com que ela seja mais objetiva em suas reflexões, já que ela fala mais que qualquer personagem do Chris Claremont. Outra coisa que prejudica o andamento do gibi é a alta quantidade de frases do tipo autoajuda, que só servem para adornar a história com uma suposta profundidade. Em suma, se estiver em busca de diversão do gênero romance juvenil despretensioso, dê uma chance. Se estiver querendo ler algo impactante, fuja. (MMA)

Eu sou um Pastor Alemão; Eu era um Pastor Alemão – Murilo Mendes (Pólen, 2014 e 2015): Esta HQ de agradável visual narra o cotidiano de Cão, um dedicado pastor alemão designado protetor de um rebanho de ovelhas em uma fazenda qualquer. Cão, um profissional verdadeiramente caxias, costuma sofrer bastante nas mãos de uma certa ovelha negra do grupo dos ruminantes,  que parece ter como prazer único azucriná-lo. Esta interação entre o animal certinho e o descolado é bacana, mas poderia ser melhor aproveitada. E esse não é o único senão do gibi. No primeiro volume há utilização da técnica de repetição de cenas com variação dos diálogos, para representar a passagem do tempo. O problema é que o recurso é usado de forma excessiva, e há momentos em que a imobilidade dos cenários e personagens chega a cansar. Embora o recurso tenha seus méritos, não se pode esquecer que a arte sequencial não tem esse nome por acaso e exige, ao menos, pequenas variações no andamento para afugentar a ideia de estar diante de um desenho animado estacionado no mesmo frame. Apesar disso, a repetição intensa dos quadros tem seus méritos, especialmente quando serve de contraste para a aparição repentina de novos enquadramentos. Acostumados com a rotina, os leitores são profundamente impactados pela mudança de ritmo e de escala na narrativa. É bacana escapar da prisão da repetição e desembocar numa cena inteiramente nova, cheia de grandiosidade. É um verdadeiro sonho de liberdade.

Há uma diferença significativa entre os dois volumes. O primeiro tem um final bem bolado, que poderia ter servido como desfecho para a saga de Cão. O segundo tem menos cenas repetitivas, mas peca por não apresentar evolução suficientemente interessante em relação ao que havia sido mostrado antes. A sensação é de estar diante de um suflê requentado. (MMA)

665: The Neighbor of the Beast - A Vizinha da Besta – Tiago Holsi (Céleblo Comics, 2016, 80 p.): Goiânia não possui tradição no campo das HQs. As poucas experiências concretizadas foram pontuais e não tiveram a devida continuidade. Os últimos três anos, entretanto, têm assistido a uma consistente tentativa de superar este estágio embrionário. Novos quadrinistas como Cátia Ana (O Diário de Virgínia), Francisco Costa (A Última Fábula), Ronaldo Zaharijs e Rodrigo Spiga (137) têm dado a cara a tapa em publicações que, mesmo sem atingir a maturidade, apresentam um desejo explícito de profissionalização. Dessa turma, o maior destaque é Tiago Holsi.

Holsi ganha a vida como ilustrador, mas definitivamente seu lance são os quadrinhos. Antes do Juscelino Neco, no auge da constrangedora febre dos livros para colorir, lançou com sucesso – e por conta própria – Zumbi pra Colorir. Na sequência veio a primeira HQ longa, Entardecer dos Mortos, que fez um belo barulho no último FIQ. E em 2016 foi a vez deste 665: A Vizinha da Besta.

O desenho de Thiago Holsi tem os pés fincados no cartum. Sempre acreditei que seu estilo pudesse se prestar a algo mais sujo, ácido, underground. Seu traço traz essa possibilidade. Mas a verdade é que Tiago navega com grande desenvoltura por águas infanto-juvenis, como atesta 665. E aqui ele faz isso com qualidade, perspicácia e um certo grau de experimentalismo.

665 começa com estrutura de livro infantil. Texto nas páginas da esquerda e ilustração nas da direita.

 Dona Graça é uma velhota cegueta que não se dá conta que seu vizinho é o capeta. O enredo segue por aí, mesclando humor leve, design caprichado, desenhos divertidos e ótima colorização. Então é Natal e o Diabo presenteia Dona Graça com um par de óculos que permitem à viúva enxergar a verdadeira natureza do morador do Edifício Babilônia, 666. A velha estica as canelas e, a partir daí, a narrativa toma outro rumo, assumindo-se como uma HQ propriamente dita.

O final é fofo. Mas o que vale é o perfeito timing de Tiago Holsi em estabelecer um preciso ponto de inflexão para sua história e explorar essa virada atrelando forma e conteúdo. A variações da linguagem quadrinística, longe de meros maneirismos, servem àquilo que quer contar. Como roteirista, falta capinar uns lotes. Ele mesmo reconhece isso. E ainda assim é, no momento, o autor mais consistente e preparado do Estado de Goiás. Aposto um frango caipira que, num futuro próximo, ouviremos falar muito desse comedor de pequi. (MJR)