A trajetória da imagem de “Conan, o Bárbaro” em mídias diversas: da literatura pulp até os quadrinhos Marvel dos anos 70

por Marco Antonio Collares

A imagem de Conan na Weird Tales dos anos 1930

O personagem Conan foi publicado na revista pulpWeird Tales (Contos Estranhos) nos anos 1930. A revista normalmente publicava contos de detetives, de fantasia, terror, ocultismo, ficção científica, western e/ou suspense, possuindo um padrão de capa bastante característico se consideramos os tipos de narrativas em seu interior ou mesmo seu publico leitor, normalmente formado por homens jovens.

Narrativas com temas de ocultismo temperado com forte conteúdo sexual caracterizavam a maior parte dos contos da Weird Tales desde sua origem em março de 1923, possuindo escritores do porte de Robert E. Howard, famoso pelo subgênero literário conhecido como Sword and Sorcery, além de H.P Lovecraft, Robert Bloch e Clark Ashton Smith, todos eles com seus contos contra culturais sobre seitas arcanas secretas, mistérios míticos ou mesmo sobre criaturas demoníacas hibernando em lugares ermos da Terra, oriundas de mundos interiores ou extraterrestres.

A referida revista não era única no mercado estadunidense da época, concorrendo com diversas outras publicações pulps do porte de Amazing, Starling Stories, Thrilling Wonder Stories, Argosy, Battle Stories, Spicy Detetives Stories, Astouding Science Fiction, depois Ghost Stories, Tales of Magic and Mistery, Strange Tales of Mistery and Terror, entre outras, todas contendo contos enviados por autores freelancers ou mesmo fãs de narrativas regadas a um pseudo-realismo mesclado a temas de mistério, ocultismo, suspense, terror, ficção científica e fantasia.

Os contos pulps, ainda que considerados sinônimos de literatura de baixa qualidade entre os críticos literários da época, tiveram relativo sucesso no entre guerras e no pós Segunda Guerra Mundial, mais especificamente entre os anos de 1920-1950, principalmente diante de um público leitor masculino sedento por escapismo fantástico em meio à onda de violência urbana instigada pelo gangsterismo, pelo sentimento de crise da época da Grande Depressão, bem como pelos ultranacionalismos e totalitarismos de toda a espécie.

Esses contos ora concorreram com as primeiras tiras jornalísticas dos super-heróis, ora influenciaram as narrativas desses personagens fantásticos nas chamadas comic books, em seus momentos iniciais de veiculação e consolidação. Fora o peso que tiveram na carreira de nomes da literatura sci-fi do porte de Lester Dent, Isaac Asimov e Ray Bradbury.

As capas da Weird Tales, principalmente as com ilustrações de Margareth Brundage, chamavam a atenção dos leitores e críticos, sendo normalmente coloridas, padronizadas e com brochuras coladas de papelão, contendo temas apelativos de protagonistas masculinos ao lado de “mulheres sensuais”, normalmente em perigo frente a forças sobrenaturais, extraterrestres ou mesmo diante de monstros do imaginário mítico da literatura oitocentista.

Em primeiro plano normalmente era representado um herói masculino enfrentando alguma criatura do mundo sobrenatural para salvar alguma mulher em perigo. Isso quando a mulher não estava sozinha na capa, amarrada à espera de algum ritual arcano com traços de sadismo masculino. Se as publicações eram simples e de baixa qualidade gráfica, os editores esperavam cativar os leitores com capas impactantes e surreais, munidas de terror e suspense do oculto.

Destaque para dois fatos interessantes referentes às ilustrações de Brundage na Weird Tales. O primeiro vincula-se às críticas que seus desenhos sofreram de leitores ou mesmo de integrantes dos movimentos feministas da época, como se as imagens representassem as mulheres como meros objetos da degustação voyeur masculina. O segundo relaciona-se às ações do prefeito de New York da época, Fiorello La Guardia, na tentativa de impedir novas publicações das imagens da ilustradora por puro moralismo diletante, condicionando a um desfile de ilustrações posteriores de cunho ocultista ou mesmo de fantasia regada a violência extremada.

O primeiro conto literário do bárbaro cimério foi publicado em dezembro de 1932, denominando-se “The Phoenix on The Sword”, e foi apenas mais um dos contos daquela edição, não ganhando sequer uma ilustração de capa, visto que o editor da revista, Farnsworth Wright, apesar de ter visto “pontos de verdadeira excelência no conto”, não o considerava suficientemente bom para destacá-lo. A primeira ilustração de um conto de Conan data somente de junho de 1933, com o conto intitulado “Black Colossus”, sendo que Conan sequer é mostrado na capa.

Chama a atenção na imagem acima o tema tradicional das capas da Weird Tales e, especificamente, das ilustrações de Brundage. Trata-se da imagem de uma jovem nua aos pés da estátua de um homem barbado que não difere muito de qualquer estátua em estilo clássico de um deus pagão ou herói grego do Mundo Antigo. O mundo meta-histórico de fantasia criado por Howard chamava-se Era Hiboriana e mesclava aspectos culturais, políticos, mitológicos e sociais das civilizações e sociedades dos períodos históricos que convencionamos denominar de Antiguidade e Idade Média, ainda que a ilustração de capa em si não tivesse vinculação direta com o texto publicado no interior da revista.

A primeira vez que Conan foi retratado preponderantemente na capa da Weird Tales merece destaque, principalmente porque a ilustração muito difere da imagem que o público em geral, deveras influenciado pela produção cinematográfica de 1982, estrelada pelo fisiculturista Schwarzeeneger, possui do personagem. Trata-se do conto “Queen of the Black Coast”, publicado em agosto de 1934, sendo um dos contos literários howardianos mais cultuados e republicados de todos os tempos devido ao par romântico entre o bárbaro e a capitã pirata Bêlit, abraçada a Conan na ilustração de Brundage.

A narrativa no interior da revista trata inicialmente do encontro de Conan com Bêlit no litoral do reino fictício de Argos e de como o bárbaro passou a se aventurar em seu navio por quatro anos. Chama nossa atenção a imagem de Conan, representado como um homem mais velho, segurando nos braços uma indefesa Bêlit diante de uma criatura humanoide munida de garras e asas. Novamente o tema tradicional do protagonista protegendo uma linda mulher em perigo com vestes sensuais está presente e novamente a capa não se relaciona diretamente com a narrativa em questão. Isso se deve pelo fato desse tipo de capas serem tradicionais na literatura pulp, meio que um padrão artístico e estético, além de serem encomendadas sem que o ilustrador tivesse conhecimento do teor do conto em seus detalhes.

No supracitado conto, Conan é obrigado a fugir de autoridades argorianas, aportando em um navio ancorado de um comerciante qualquer, logo tomando parte entre seus tripulantes. Não muito tempo depois, o navio é atacado pelos piratas de Bêlit e Conan, após mostrar habilidades em espada e força quase sobrenatural no enfrentamento dos mesmos, torna-se mesmo um tripulante do navio comandado pela mulher, tema, aliás, bastante usual em narrativas posteriores do personagem em diversas mídias.

Apesar do relacionamento de Conan e Bêlit possuir uma natureza amorosa e afetuosa ao longo da maior parte do conto, existe certo teor de sadismo da parte dele em relação a ela, ainda que Bêlit seja tomada por Howard como uma mulher forte, selvagem, imponente e altiva. Podemos encontrar um exemplo de como Bêlit é descrita no conto através das palavras do timoneiro do navio mercante que Conan encontrou ao início da aventura. Vejamos: "A mulher (Bêlit) é a mais selvagem e demoníaca que já pisou nesse mundo. A menos que eu tenha lido errado os sinais, foram os carniceiros dela que destruíram aquela vila na baía. Espero vê-la um dia enforcada num mastro bem alto! Chamam-na de Rainha da Costa Negra. É uma mulher shemita que lidera bandoleiros negros. Eles atacam e saqueiam os barcos que navegam por aqui, e já mandaram muitos navegantes e comerciantes para o fundo do mar".

A descrição de Bêlit é, portanto, de uma mulher forte e selvagem, uma saqueadora que vivia pelas armas, tal como o próprio Conan. Chama nossa atenção, porém, o fato de a capa da edição da Weird Tales desvelar a imagem de uma mulher extremamente frágil nos braços do bárbaro, talvez devido à presença do sobrenatural frente aos dois personagens, igualmente tratado no conto, ou talvez, tal como mencionado mais acima, como uma mera ilustração usual e tradicional de Brundage e da Weird Tales.

Mesmo que as características das capas da revista ajudem a explicar a ilustração da frágil Bêlit nos braços de Conan, não é descabido pensar aqui nas considerações de Judith Butler e sua ênfase no discurso de construção de gênero ser concebido a partir de matizes sociais e culturais definidos por pares binários entre homem/forte/racional e mulher/frágil/sentimental. Em outras palavras, na caracterização do ser masculino, pensando-se exclusivamente na imagem, Conan está em posição de protetor da mulher, conferindo a ideia de que o ser feminino deve ser protegido, caracterizando aqui não somente um padrão visual de capa, mas igualmente um discurso cultural sobre gênero.

Uma imagem que, em nossa opinião, agencia tal discurso de gênero. Conan igualmente aparece na imagem em uma posição defensiva, com uma espécie de adaga na mão direita, colocado como protetor de Bêlit, ainda que sua imagem seja muito distante da imagem selvagem de belicosidade das representações posteriores, seja nos quadrinhos e no cinema.

No máximo, o estado de barbárie de Conan, tão exaltado nos contos literários howardianos, transpareça pelos trajes que ele se utiliza na imagem, um estereótipo clássico que aproxima o personagem de Tarzan, de Edgar Rice Borroughs, uma das muitas influências literárias do escritor texano. Na capa da Weird Tales, Conan parece ser mais a imagem do “bom selvagem” do iluminista Jean Jacques Rousseau do que do bárbaro musculoso e violento das ilustrações mais famosas dos quadrinhos ou de outras mídias visuais mais recentes.

Pela descrição do próprio criador, Conan muito difere do homem representado nesta capa da Weird Tales, sendo normalmente descrito como, “um bárbaro selvagem musculoso, com a pele bronzeada, os olhos azuis e todo o corpo e rosto marcado por cicatrizes”. Além disso, Howard fez questão de enfatizar que o estágio de barbárie em seus contos muito diferia do teor dado por Rousseau em sua concepção filosófica de “bom selvagem”, como pode ser expresso pela passagem de uma carta do autor texano logo abaixo:

"Não tenho a visão idílica do bárbaro – até onde pude aprender, trata-se de uma condição sombria, sangrenta, feroz e impiedosa. Não tenho paciência para a representação de um bárbaro de qualquer raça como uma criança cheia de dignidade, feita á imagem de Deus na natureza, dotada de uma estranha sabedoria e falando frases sonoras e bem enunciadas".

Não é descabido pensar na ideia tradicional de uma humanidade desvelada na imagem da Weird Tales, visto que em Conan transparece um ar de impotência e mortalidade ante uma força monstruosa do mundo sobrenatural. Existe na imagem um padrão de suspense que é típico das capas pulps, um padrão que coloca Conan e sua aparentemente frágil companheira como meras caças de alguma criatura dos reinos inferiores, impactando o leitor pela constante presença do tema de sobrenatural nestes tipos de contos.

Apesar da barbárie em Howard muito diferir da visão de Rousseau, Conan é tomado na imagem da revista como um “bom selvagem” masculino e protetor de uma inocente e até convencional e frágil mulher, Bêlit (enquanto um arquétipo do gênero feminino), sem o teor belicista que o caracteriza nas representações posteriores, evidenciando uma imagem bastante distinta da descrição de sua figura por Howard, porém não menos interessante dos pontos de vista histórico e cultural.

O Conan das capas dos anos 1940-1960, incluindo as ilustrações de Frank Frazetta

Entre as décadas de 1940/1960, três escritores, Lyon Sprague de Camp, Lin Carter e Bjorn Nyberg republicaram diversas vezes e em momentos diferentes, os contos originais de Conan, reeditando outros tantos contos inacabados e até substituindo as tramas originais por narrativas próprias, muitas vezes até se utilizando dos contos de Howard sobre outros personagens para uma adaptação das aventuras do bárbaro cimério.

Esse fato ocasionou dois movimentos distintos, porém, interligados: em primeiro lugar, uma primeira popularização de Conan. Em segundo, uma espécie de movimento “purista” dos fãs de Howard, que defendiam publicações dos contos tais como foram publicados originalmente, questionando assim os pastiches literários dos mencionados escritores.

Antes deles, outro fã de Howard chamado Glenn Lord havia conhecido os contos literários howardianos originais na publicação Skull-Face and Others, de 1946,comprando os direitos sobre diversos contos inacabados e mantendo o legado cultural do escritor texano. De certa forma, Glenn Lord é visto como um dos grandes expoentes a popularizar Conan após a morte de seu criador, sendo um dos primeiros a efetuar uma compilação de relatos e correspondências sobre o escritor.

Trata-se da bio-bibliografia intitulada The Last Celt: A Bio-Bibliography of Robert Ervin Howard, considerada uma das mais completas existentes, de 1976. O livro de Lord, publicado pela D.M. Grant contém diversos ensaios e entrevistas de pessoas que conheceram pessoalmente Howard, escritores conhecidos da época cujos trabalhos influenciaram o texano e outros diversos estudiosos de seu corpus narrativo, além de excertos do autor. A obra contém também cartas raras, sinopses, fragmentos de histórias e fotos relacionadas à vida do escritor. A segunda metade do livro é dedicada a uma bibliografia extremamente bem organizada e completa de grande parte da ficção pulp de Howard, suas poesias, ensaios e outros trabalhos catalogados sobre sua vida e obra até dezembro de 1973.

O fato é que todos esses autores mantiveram o personagem vinculado à literatura, convocando artistas

 para ilustrar as capas das revistas ou livros de contos do bárbaro, fossem tais contos republicações daqueles primeiros escritos de Howard (dezessete publicados em vida, mais quatro após sua morte), fossem sinopses e contos inacabados que posteriormente eram finalizados por outros escritores.

As capas elencadas chamam a atenção pelos mais variados motivos. Todas possuem o nome de Howard destacado, não somente em função dos direitos autorais a seus familiares, mas igualmente em função de seu nome possuir popularidade como um renomado escritor de fantasia. Podemos notar também que o nome de Sprague de Camp aparece na publicação intitulada Tales of Conan, de 1955, como se ele fosse uma espécie de segundo criador do bárbaro.

De fato a figura de Lyon Sprague de Camp é controversa entre especialistas e fãs do personagem Conan. Ele escreveu diversas narrativas e pastiches sobre Conan, criando novos personagens e até outras cidades, reinos, sociedades e civilizações da Era Hiboriana, utilizando-se das viagens que fazia ao Oriente Médio ou outros tantos lugares antigos e distantes para uma descrição mais pormenorizada de reinos e civilizações do mundo fictício howardiano.

Sprague de Camp é também o responsável pela biografia mais famosa e popular sobre o escritor texano, sendo, no entanto. a mais criticada pelos especialistas e fãs. Trata-se da obra Dark Valley Destiny: The Life of Robert E. Howard, escrita por ele e sua esposa, Catherine, e publicada em 1983. O autor deteve por muitos anos os direitos autorais sobre os contos literários originais de Conan, sendo um daqueles escritores que se tornaram uma das maiores referências sobre o personagem ou mesmo sobre o escritor, ao mesmo tempo em que passou a ser criticado e até odiado pelos chamados fãs puristas de Howard.

A biografia em questão possui sérios problemas de qualidade e de seriedade em razão dos diversos juízos de valor carregados sobre o caráter, a psiquê, a personalidade e a conduta do escritor texano, com muitas inferências completamente destituídas de quaisquer evidências ou qualquer apresentação de documentação histórica mais criteriosa. Além disso, deve-se destacar o teor acusativo das críticas de Sprague de Camp em torno dos diversos contos literários escritos por Howard, em uma espécie de autopromoção às custas da obra do escritor texano, como se Conan devesse mais a ele por ser um ícone da cultura popular do que a seu próprio criador.

As capas em questão são interessantes pela forma como Conan foi retratado, normalmente vergando trajes e armaduras que não diferem muito das placas dos centuriões romanos do mundo antigo ou dos peitorais, sandálias e elmos dos antigos soldados-cidadãos hoplitas da Grécia Clássica dos séculos V e IV A.C. Os cabelos do bárbaro são mantidos pelos ombros ou mesmo curtos, o que difere da descrição howardiana que traçava cabelos mais compridos. Da mesma forma, os semblantes carregam um ar sisudo ou um sorriso irônico e imponente, o que difere da forma como Conan aparece na Weird Tales, normalmente com um teor de melancolia ou até com a face carregada de temores instintivos diante da presença do sobrenatural.

Esse tema, aliás, não aparece nas capas elencadas logo acima, significando a saída de cena do gênero terror e ocultismo, típicos dos contos pulps. Com tais capas, temos a vinculação do bárbaro a temas vinculados ao cinema épico hollywoodiano da época, com filmes do porte de Ben-Hur, de 1959 ou Spartacus, de 1960. Conan é assim transfigurado de um quarentão rústico semelhante ao personagem Tarzan em um jovem imponente vergando armaduras tradicionais em estilo clássico e cinematográfico.

Spartacus com Kirk "100 anos" Douglas

Agora, sem sombra de dúvida foi a arte do ilustrador e quadrinista Frank Frazetta que primeiramente impulsionou a imagem que temos hoje em dia sobre Conan. Frazetta se tornou conhecido a partir dos anos 1960 como ilustrador de capas de livros, principalmente de reedições de contos ou novelas de Tarzan e mesmo de Conan. Antes disso, ele havia sido ilustrador anônimo de histórias em quadrinhos de renome, tais como Flash Gordon ou Ferdinando (Li'lAbner), famoso título criado nos anos 1930 pelo brilhante roteirista e argumentista estadunidense Al Capp, trabalhando nos desenhos da família de Brejo Seco por nove anos, entre 1953 e 1962.

O quadrinho Li'l Abner (Ferdinando) desenhado por Frank Frazetta

As ilustrações de Frazetta para as capas de livros de contos de Conan são as mais cultuadas entre os fãs do bárbaro, algumas delas sendo comumente vendidas por somas vultosas para colecionadores. Seu estilo possui uma tonalidade quase barroca, situando Conan como um bárbaro celta bretão, tal como descrito por Howard nos contos literários originais.

Não se pode esquecer que Howard descrevia os povos de sua Era Hiboriana a partir de modelos de povos, comunidades e civilizações existentes de nossa história, sendo os chamados cimérios, povo fictício do qual Conan fazia parte no corpus literário howardiano, equivalentes aos celtas bretões de uma Inglaterra pré-romana.

As capas de Frazetta foram a principal marca dos vários livros de contos publicados a partir do ano de 1966 pela editora Lancer Press, fossem tais contos republicações dos vinte e um contos originais finalizados por Howard, fossem os escritos por Sprague de Camp e Carter. Os livros normalmente continham introduções desses escritores sobre a Era Hiboriana, cartas de Howard dos anos 1930, novos mapas e cidades do mundo fictício do bárbaro, pastiches inacabados de Howard sobre Conan ou mesmo sobre algum outro personagem do texano, todos finalizados ou adaptados para que se tornassem novos contos de Conan.

O desenho de Frazetta coloca Conan como um bárbaro mais belicoso, altivo e ameaçador se comparado à figura das capas dos anos 1930 e mesmo a dos anos 1940/1950. Conan também deixa de ser o bárbaro com ar civilizado das capas anteriores da editora Gnome Press, para se tornar eminentemente fora dos padrões dos homens civilizados, normalmente vergando armas brancas respingando sangue e com o torço desnudo na maior parte do tempo.

Sua postura é comumente de ataque, mesmo cercado por inimigos em número maior ou mesmo por monstros saídos do mundo sobrenatural, o que difere das capas dos contos dos anos 1930, que o colocavam em uma posição defensiva. Também aqui se encontra o tema da guerra épica e brutal, de uma incansável vida de conflitos, como se a guerra fizesse parte de seu ser não-civilizado. A ideia de barbárie aqui é menos óbvia e menos idealizada, afastando Conan de qualquer imagem de “bom selvagem” de Rousseau.

Frazetta capturou muito do texto howardiano em suas pinturas e ilustrações de capa, utilizando-se de elementos fantásticos mesclados à aventura, ao realismo, à guerra épica e ao apelo sobrenatural. Este elemento sobrenatural não era somente algo a ser temido, mas combatido a ferro e fogo pelas mãos de um bárbaro quase bestial, ainda que nada sugira tratar-se de alguém destituído de inteligência ou de comedimento fora da ação e do combate.

Os temas de capa de Frazetta sugerem uma selvageria quase que necessária frente a ameaças impossíveis de serem ultrapassadas por homens civilizados (um tema fundamental nos contos originais). A passagem que se segue evidencia tal postura, sendo uma das mais célebres do corpus literário howardiano, uma fala proferida por Conan no conto "Queen of the black coast":

"Já conheci muitos deuses. Quem nega a sua existência é um cego, assim como aquele que confia demais neles. Não me importo com o que existe além da morte. Tanto pode ser a escuridão em que acreditam os céticos nemédios, o reino de gelo e nuvens onde vive Crom, as planícies geladas e os corredores fechados do Valhalla nos quais crê o povo de Nordheim. Eu não sei e não me importo. Preciso viver intensamente enquanto posso. Quero experimentar os ricos sucos da carne vermelha e o vinho picante, o aperto quente dos braços brancos como marfim, a loucura do triunfo da batalha, quando as lâminas azuladas queimam e se tingem de vermelho. Isso basta para me alegrar. Que os mestres, os sacerdotes e os filósofos meditem sobre as questões da realidade e da ilusão! De uma coisa eu sei. Se a vida é uma ilusão, também sou uma: a ilusão é real para mim. Eu vivo, estou cheio de vida, eu amo, eu mato, eu sou feliz assim".

O enunciado é esclarecedor sobre o personagem Conan na visão de Howard, demonstrando, em nossa opinião, o teor da leitura de Frazetta para esboçar suas ilustrações do bárbaro cimério, ainda que a belicosidade das imagens tenha condicionado a outras tantas interpretações posteriores. Conan vivia intensamente, matava intensamente, mas não deixava de se perguntar sobre as coisas do mundo, da realidade e do pós-morte. Conan aceitava viver plenamente no campo de batalha, em meio a perigos constantes, sendo feliz desta forma e aceitando tal plenitude intensamente, sem se culpar ou recuar diante das ameaças do mundo sobrenatural.

O clamor da batalha era algo esperado e até aclamado em seu ser e as capas de Frazetta captaram essa personalidade forte e selvagem, ainda que de uma sabedoria de vida peculiar. As imagens de capa de Frazetta beberam dessa rica fonte literária do gênero da fantasia, mas traduziram de forma suis generis

essa fonte de modo a tornar tal imagem um padrão, tanto nos quadrinhos como em outras mídias visuais. As imagens agenciaram toda uma gama de outras ilustrações que mais tarde seriam a tônica do personagem nas mídias como um todo.

Aliás, em um texto introdutório de uma narrativa de quadrinhos dos anos 1980, Glenn Lord reiterou que Frazetta teve um papel ainda mais ativo na construção da imagem de Conan perante a cultura midiática como um todo do que todos os escritores de contos dos anos posteriores à década de 1930.

Novamente, nosso enfoque precisa reiterar alguns pontos. A visão de barbárie nas ilustrações de capas de Frazetta sobre Conan, extraída de passagens da literatura howardiana, é bastante específica e não deve ser tomada como mera expressão genérica de visões de mundo sobre a barbárie como um todo, ainda que exista uma visão comum ou múltiplas visões que podem ser mensuradas em um estudo acadêmico. As palavras de Peter Burke sobre a “leitura de uma imagem enquanto um mero reflexo ou instantâneo fotográfico da realidade acabar conduzindo a uma interpretação errônea” são relevantes para compreendermos o papel do ilustrador na própria construção dessa imagem.

Muito mais do que expressar visões gerais da sociedade sobre a barbárie, as capas de Frazetta

 ajudaram a estabelecer e/ou mesmo a consolidar essa imagem específica, vinculando Conan ao bárbaro por excelência e a condutas tomadas como típicas de um bárbaro. Selvageria e sanguinolência se tornaram cada vez mais sinônimo de barbárie e nos parece que essas imagens contribuíram para isso, ainda que com certas doses de idealizações do ser bárbaro.

Se, nos anos 1930, a imagem de Conan o aproximava do “bom selvagem” protetor da pureza humana e de mulheres em perigo, pelo menos como imagem de capa da Weird Tales, nos anos 1960 essa imagem se transformou. O Conan de Frazetta se tornaria a base visual do Conan e da própria barbárie que seriam difundidas nas histórias em quadrinhos das décadas seguintes, responsáveis por iniciar a consolidar o personagem como um ícone da cultura popular do século XX.

O Conan da Marvel Comics dos anos 1970-1980: entre Windsor-Smith e John Buscema

Em 1970, a empresa Marvel Comics pagou uma licença de dois mil dólares por edição para publicar narrativas de Conan, dividindo suas tramas em dois tipos de formatos voltados para públicos diferentes. A publicação em estilo magazine intitulada, The savage sword of Conan, de 1974, era voltada para um público um pouco mais adulto, enquanto que o público infanto-juvenil tinha outra revista, anterior àquela e em estilo comics, publicada a partir de outubro de 1970, denominada simplesmente de Conan, the barbarian, com tramas mais simples e com menos teor de violência ou apelo sexual.

O responsável por trazer o bárbaro para a empresa do ramo de quadrinhos que mais crescia nos EUA foi o escritor/editor Roy Thomas, que se manteve à frente do personagem nas duas publicações por longos anos. As palavras de Thomas sobre o assunto demonstram que as capas de Frazetta dos contos republicados de Howard ou mesmo aqueles criados por Sprague de Camp e Lin Carter eram mais famosas do que os próprios contos literários originais howardianos, pelo menos entre aqueles do ramo de quadrinhos da época. Vejamos o excerto que se segue:

"Eu era editor associado na época, e as pessoas me enviavam todas essas cartas de leitores que diziam que nós deveríamos trazer personagens dos livros para os quadrinhos. Havia quatro coisas que continuavam chegando: uma era o Conan, de Robert Howard, ou algo do gênero – Howard era o autor mais mencionado. As outras três eram Tolkien (autor de o Senhor dos Anéis), Doc Savage (personagem da literatura pulp dos anos 1930) e Edgar Rice Burroughs, com coisas como Tarzan e John Carter of Mars. Nós tentamos todos eles e acabamos conseguindo todos, menos Tolkien. Eu preparei um memorando para o editor Martin Goodman dizendo por que deveríamos licenciar um personagem – não me lembro porque simplesmente não criamos um novo. Acho que Lee (Stan Lee, o criador da maior parte dos super heróis da empresa, tais como Homem-Aranha, Hulk e Quarteto Fantástico) não sabia ao certo o que era Espada e Feitiçaria e eu mesmo não havia lido o suficiente na época. Eu não tinha lido muito de Howard, havia apenas comprado alguns de seus livros por causa das capas de Frazetta, mas nunca os havia lido de fato."

Ao ser quadrinizado pela Marvel, Conan se popularizou, iniciando sua consolidação como um personagem icônico do século XX, ao mesmo tempo em que se tornou o modelo de todo um gênero de fantasia, influenciando outras tantas mídias, suportes e narrativas fantásticas semelhantes. Não devemos esquecer, aliás, que os estudos sobre cultura visual partem da premissa da necessidade de compreensão da produção, circulação e consumo de imagens, tal como estabelecido por Nicolas Mirzoeff com seu conceito de “mundo como imagem”. A esse propósito, o pesquisador Ulpiano Bezerra de Meneses reitera a necessidade em se “retraçar a biografia, a carreira e a trajetória das imagens”.

Saído da literatura pulp e difundido nos anos 1960 nas capas dos livros de contos com ilustrações de Frank Frazetta, Conan chegou pela primeira vez aos quadrinhos pelas mãos de um jovem desenhista, desconhecido na época, chamado Barry Windsor-Smith, que concebeu um Conan “muito ágil, esguio e com cabelos compridos à moda glam rock”. Vejamos a primeira capa de Conan, Tne Barbarian, com o traço do referido desenhista:

É difícil não perceber na capa o padrão tradicional das pulps, com um Conan em primeiro plano rodeado de inimigos, portando uma espada e tendo uma mulher em apuros a seus pés, uma marca presente nas capas do bárbaro desde os anos 1930. Aliás, os estudos em cultura visual igualmente reiteram a importância de captarmos reminiscências de média e longa duração histórica em imagens específicas, tal como elucidado por Ulpiano Meneses.

Além disso, é preciso não esquecer o importante conceito de “iconosfera”, tratado pelo mesmo estudioso, que pode ser traduzido como o conjunto de imagens socialmente veiculadas e disponíveis em dado contexto histórico. Observando a primeira capa de Conan sob o traço de Windsor-Smith, é possível observar o estilo dinâmico característico dos quadrinhos de super-heróis Marvel da época. No caso da capa acima, não muito diferente do estilo estético do inigualável Jack Kirby, considerado o maior ilustrador da Marvel de todos os tempos e que fez escola no mundo das comics.

A capa de Conan, The Barbarian nº 1 em muito se assemelha a outras capas de super-heróis Marvel dos anos 1970, especificamente aquelas que traziam personagens mitológicos e/ou de fantasia, reforçando a ideia de iconosfera, mencionada acima. Segue abaixo um exemplo do personagem mitológico, Thor, pelo estonteante “pincel” de Kirby:

O personagem aqui, tal como o Conan da capa anterior, evoca desespero e fúria ante uma horda que o cerca, com balões de chamada para os leitores não muito diferentes das chamadas em recordatórias da capa do bárbaro cimério. O estilo ação-para-ação, muito comum no traço de Kirby e outros artistas da Marvel, da maneira como é apontado por Scott McCloud, está presente na capa e na narrativa em arte sequencial do interior de ambas as revistas.

Estamos sugerindo com isso que da mesma forma que as capas pulps dos anos 1930 seguiam seu próprio modelo, ou seja, seus padrões estéticos e artísticos de acordo com imagens disponíveis de seu contexto ou mesmo de seu suporte midiático específico, as capas do cimério nos quadrinhos dos anos 1970 igualmente seguiram seus respectivos padrões estéticos, históricos e midiáticos.

O ar belicoso de Frazetta está igualmente acentuado na imagem de capa de Conan, com um bárbaro igualmente cercado por hordas inimigas, incluindo seres bestiais do mundo sobrenatural. O rosto estampado de fúria e terror também mimetiza em parte a arte de Kirby e mesmo de Frazetta, no último caso, adaptada para as narrativas dos quadrinhos. O tom épico belicista na capa de Conan é um tanto distinto das capas dos anos 1940/1950 e bastante aproximado ao das capas da Lancer Press dos anos 1960, só que agora com tons mais vivos, típicos das publicações de quadrinhos Marvel.

A quadrinização de Conan na editora estadunidense deve-se a diversos fatores, sendo alguns deles bastante pontuais. Um deles relaciona-se ao direcionamento corporativo da Marvel, que, no final da década de 1960 e início da década seguinte, estava ampliando seu público leitor e seus preços de capa, envolvendo leitores universitários que cresceram lendo quadrinhos de super-heróis e que agora possuíam condições financeiras de bancar coleções mensais mais sofisticadas.

Além disso, havia uma nova geração de profissionais tomando conta do mercado de quadrinhos da indústria cultural nos EUA, jovens talentosos intelectualizados que igualmente cresceram lendo quadrinhos e que agora queriam explorar o universo do realismo emocional através de dilemas sociais ou mesmo mediante o cotidiano das lutas das minorias pelos direitos civis, tudo isso mesclado ao escapismo lúdico idealizado dos quadrinhos Marvel.

Muitos desses jovens quadrinistas eram verdadeiros apologistas das grandes editoras e de seus icônicos personagens, levando a profissão quase que como um credo de fãs desses respectivos personagens. Talentosos artistas do porte do já mencionado Thomas, além de Dennis O’Neil, Chris Claremont, John Byrne, Frank Miller, Jim Starlin, dentre outros, ampliaram os limites dos quadrinhos da indústria cultural, em comunhão com a energia cultural dos anos 1970, embebida de autocrítica, eminentemente antiautoritária e que degustava filmes hollywoodianos anti-establishment do porte de O Poderoso Chefão, Perseguidor Implacável, Desejo de Matar, Taxi Driver e Perdidos na Noite.

Taxi Driver: Nova Hollywood

Tais autores e quadrinistas, além de elevar os questionamentos sociais dos quadrinhos da indústria cultural, buscando temas polêmicos como o uso e o tráfico de drogas, a violência urbana e doméstica, o racismo, a guerra do Vietnã, o alcoolismo, a metalinguagem e o sexismo, igualmente trouxeram aspectos e temas dos quadrinhos de terror, fantasia, ficção e de detetives dos anos 1930, muitos dos quais influenciados pela própria literatura pulp.

Conan foi quadrinizado ao lado de outros personagens pulps do porte de The Shadow, de Edgar Rice Borroughs, adaptado por Len Wein e Michael Kaluta; Doc Savage, de Lester Dent; e o próprio Tarzan, que na Marvel foi adaptado pelo mesmo Roy Thomas, ao mesmo tempo em que era criado um herói inspirado nele chamado Ka-Zar.

Os quadrinhos da indústria cultural viviam um momento de complexificação de seus temas e estilos diante das exigências de um público leitor mais sofisticado e com maior poder aquisitivo e as primeiras adaptações de Conan não podem ser desvinculadas de todos esses fatores. Ainda sim, a revista Conan, the barbarian era bastante leve e lúdica diante desse movimento com toques realistas regados a violência, suspense e terror, não dando conta das novas demandas dos leitores um pouco mais velhos.

As exigências desse público, os interesses corporativos da Marvel em ampliar as vendas e o próprio culto de Roy Thomas ao traço de Frazetta em Conan levaram-no a se unir ao talentoso ilustrador John Buscema em outra publicação sobre o bárbaro, dessa vez em preto e branco e com um tom mais pesado, muito próximo ao da literatura pulp howardiana.

Buscema

Tratava-se do já mencionado título Savage sword of Conan, publicado a partir de 1974, possuindo o traço mais marcante do bárbaro nas histórias em quadrinhos, aquele do inigualável ilustrador John Buscema, famoso quadrinista que até então era responsável pela arte de personagens icônicos da Marvel do porte de Thor, Vingadores e Surfista Prateado. Buscema tornou-se o ilustrador de Conan nos dois títulos mensais da editora, porém, na revista em preto e branco chegou ao auge criativo, aproveitando-se do jogo de luz e sombras para consolidar um Conan mais robusto e viril, quase que uma representação de um verdadeiro “titã de bronze”, como constantemente era descrito por Howard nos contos literários originais.

A Marvel já tentara adaptar o personagem em narrativas mais adultas e em formato magazine preto e branco, como o exemplo da publicação intitulada Savage tales, de 1971, mas foi na publicação de 1974 que Thomas e Buscema encontraram o tom ideal do personagem nos quadrinhos, começando por adaptar os contos originais de Howard, usando, inclusive enunciados inteiros extraídos desses respectivos contos. Mesmo quando as narrativas eram inovadoras, elas continham o tom howardiano, seja em razão da ausência de uma cronologia para as aventuras do cimério, seja pela presença do tema da oposição entre civilização e barbárie que caracterizavam as primeiras narrativas.

O diferencial das narrativas em quadrinhos de Thomas e Buscema vincula-se ao tom mais desafiador das tramas em termos de ação e emoção, narrativas mais aventureiras a explorar os limites físicos do personagem, muitas delas munidas de valores importantes para os jovens rebeldes da geração 1970. Podemos destacar aqui a defesa do indivíduo e das liberdades individuais contra autoridades instituídas por coletivos específicos (Exército, Igreja e Estado, por exemplo), quase que a epopeia de um espírito juvenil livre e eminentemente belicoso a se desvincular das amarras sociais existentes, o que, em nossa sociedade, seriam vistas como criações dos adultos e progenitores dos jovens leitores.

As imagens de Conan ilustradas por Buscema expressam o apelo da liberdade individual de um bárbaro em relação às normas sociais das civilizações de seu mundo ficcional. O personagem aparenta ser um bloco sólido de pura selvageria, liberdade, ar sisudo, força física e mental, uma resistência sem igual diante das agruras da vida e da luta pela sobrevivência nas fronteiras mais distantes da civilização, normalmente rodeado pelas mesmas mulheres que constantemente necessitavam de sua proteção nas capas pulps dos anos 1930.

Novamente a questão de gênero está presente, definindo-se as imagens por pares binários: o ser masculino protetor como a antítese do ser feminino a ser protegido, o ser bárbaro selvagem e instintivo como a antítese do ser civilizado, normalmente tomado nos contos e nas HQs como eminentemente ganancioso e decadente, tema usual nos contos literários, mas que nas imagens de Buscema ganham contornos extremos. O traço em preto e branco produz uma silhueta sombria que confere a Conan a melancolia e a selvageria dos contos literários originais howardianos sem, no entanto, transparecer que sua figura pereceria perante quaisquer obstáculos, incluindo aqueles advindos do mundo sobrenatural.

O traço de Buscema eleva Conan a um homem situado para além da fronteira das normas existentes, estando às margens da civilização. Trata-se da representação visual de um espírito livre que não se desdobra frente a quaisquer problemas a serem enfrentados. Além disso, seu porte físico se torna ainda mais avantajado do que o ágil e esguio Conan do traço de Barry Windsor-Smith, mais próximo aqui ao traço de Frank Frazetta.

A título de informação, podemos retraçar as características físicas dos super-heróis e as influências existentes no esboço dessas respectivas características.

Entre os anos 1930-1950, os super-heróis tiveram suas imagensassociadas aos homens fortes dos circos, com seus portes físicos em blocosólido e seus colants multicoloridos,o que influenciou a anatomia física e os uniformes dos personagens da chamada “Erade Ouro” dos quadrinhos

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Em meados da década de 1950 e, depois, ao longo da década de 1960, que compreende o início da chamada “Era de Prata” das comics, os super-heróis se tornaram fisicamente menos robustos, mais ágeis, esguios, com portes físicos mais definidos, muitas vezes mimetizando os atletas olímpicos de corrida de curta distância ou os astronautas da corrida espacial, quando não o homem comum, visto que aspectos de realismo começaram a fazer parte das narrativas em quadrinhos do gênero.

Os anos 1970-1980 trouxeram de volta as idealizações físicas dos personagens de quadrinhos de super-heróis, agora com a influência marcante dos fisiculturistas (pelos menos em relação aos homens, visto que as mulheres normalmente eram retratadas com portes físicos de modelos famosas ou mesmo de atrizes de Hollywood). Não se pode, portanto, deixar de associar a imagem de Conan de narrativas de quadrinhos pós anos 1970 dessa estética específica, visto que sua quadrinização ocorreu em uma empresa especializada em super-heróis, sendo efetuada por artistas que faziam parte desse gênero específico de quadrinhos e que eram influenciados pelas características artísticas, estéticas e históricas do referido gênero e do suporte midiático em questão.

Lou Ferrigno (dir.): nos 1970's

Lembremos também que o auge do fisiculturismo se deu no mesmo contexto de lançamento das primeiras revistas em quadrinhos de Conan, mais especificamente no final dos anos 1960 e durante a década de 1970 como um todo. Nesse momento, figuras como Arnold Schwarzenegger, Lou Ferrigno e Frank Columbus apareciam costumeiramente em capas de revistas especializadas sobre fisiculturismo, revistas essas situadas nas prateleiras das bancas de revistas não muito distantes das comics books.

O fisiculturismo começou a ser visto na televisão, em eventos beneficentes para estimular as atividades físicas ou até como recuperação de presidiários, aparecendo igualmente em filmes-documentários sobre o esporte, como é o caso do reconhecido filme-documentário Pumping iron, veiculado em 1975.

Para muitos estudiosos do assunto, esta foi a chamada “Época de Ouro” dos torneios de fisiculturismo, dentre os quais, o Mister Universo, torneio com atletas amadores e o Mister Olympia, eminentemente profissional e deveras conceituado entre os atletas mais renomados do esporte até os dias de hoje. Esses torneios tornaram o fisiculturismo quase que um padrão cultural corporal mercadológico ansiado por muitos jovens, principalmente no final dos anos 1970 e a partir da década de 1980 em diante.

Não é a toa que o primeiro filme de Conan foi estrelado pelo mais cultuado fisiculturista da época, e, segundo muitos especialistas, o maior nome do esporte da história, atleta esse que em termos de porte físico e definição corporal muito se parece com o bloco sólido de massa muscular desenhado por John Buscema nas revistas em estilo magazine, como The savage sword of Conan.

Não podemos deixar de comentar também que a magazine em preto e branco lançada em 1974 não precisou se adequar à autocensura do famigerado Código de Ética dos Quadrinhos (Comics Code Authority), criado pelas próprias editoras em 1954. A criação desse mecanismo de autocensura ocorreu devido a perseguições que as comic books sofreram nos EUA na década de 1950, seja em razão da paranoia anticomunista insuflada pelo macarthismo, seja em função da influência nefasta da obra The seduction of the innocent, do psiquiatra alemão Fredric Wertham, que relacionou de forma imprudente e carente de qualquer validação o problema da delinquência juvenil com a leitura de quadrinhos, principalmente aquelas narrativas de terror, super-heróis e fantasia.

As grandes editoras estadunidenses procuraram se colocar de fora dos “holofotes” do Estado e de sansões regulatórias que pudessem impedir ou limitar a distribuição e, consequentemente, as vendas de seus quadrinhos. Para tais motivos, as grandes editoras criaram um código de ética próprio que literalmente autocensurava diversos aspectos das publicações em estilo comics, proibindo temas diversos e coibindo a liberdade criativa dos argumentistas e ilustradores do respectivo suporte midiático.

Não fazendo parte desse esquema de autocensura, muito em função do tipo de publicação em estilo magazine em preto e branco, do direcionamento ao público leitor e também devido ao contexto dos anos 1970, no qual artistas e editores cada vez mais não aceitavam o enquadramento das normas limitantes do código, as narrativas de Conan em Savage sword of Conan veicularam diversas liberdades criativas e imagéticas, sem quaisquer “freios”. Com isso, a revista apresentou cenas de violência explícita e certo teor sexual, concedendo liberdade criativa que a publicação em estilo comics de Conan não possuía por estar subordinada ao supracitado código.

As capas da revista The savage sword of Conan seguiam em parte o padrão das pulps dos anos 1930 e igualmente das capas de livros de contos da Lancer Press dos anos 1960. Tratam-se de capas coloridas, desenhadas por diversos artistas convidados, que normalmente colocavam em cena um musculoso Conan em estilo John Buscema com alguma linda mulher seminua a seus pés. Artistas do porte de Boris Valejo, Earl Norem, Dan Adkins, dentre outros, captaram as ilustrações típicas das HQs de seu contexto e mesclaram-nas aos temas tradicionais das capas pulps dos anos 1930.

O musculoso Conan era cada vez mais o típico fisiculturista temerário com alguma arma branca em mãos vertendo sangue, sempre pronto para enfrentar algum monstro genérico saído do mundo sobrenatural. Normalmente ao seu lado há uma linda mulher em perigo, remetendo diretamente às capas pulps, mas com a arte adaptada ao estilo Marvel de uma publicação magazine sem as censuras.

Na maioria das vezes, as capas não tinham qualquer relação com a narrativa em arte sequencial do interior da revista, demonstrando o apelo da imagem para além da própria narrativa em termos de veiculação e vendagem. Além disso, cada um dos artistas convidados emprestava seu estilo a um padrão pré-estabelecido e deveras apelativo para o público jovem masculino, sedento por tramas com poucos freios em termos de violência, liberdade e sexualidade, o que propiciou sucesso imediato de vendas da referida publicação.

Nos quadrinhos não existia mais a imagem daquele Conan quarentão da Weird Tales dos anos 1930, o bárbaro mimetizado na figura de Tarzan com doses de “filosofia rousseauniana”, colocado usualmente em uma posição defensiva e até existencial diante de alguma criatura bestial ou mitológica.

Nos quadrinhos Marvel da revista Savage sword of Conan observa-se a imagem que se consolidou na cultura midiática industrial como um todo: a imagem de um homem violento, sanguinolento e temerário, munido de armas brancas vertendo sangue e que se colocava em posição de ataque frente a qualquer desafio, fosse um desafio humano ou sobre-humano. Faltava apenas o cinema para consolidar essa imagem do bárbaro cimério e da barbárie como um todo, o que ocorreu em 1982 com o primeiro filme de Conan.

CCXP 2016: Medo e delírio em SP

por Marcos Maciel de Almeida

Após 2 edições finalmente consegui dar um pulo na Meca da diversão e do entretenimento nerd nacional. Meu objetivo era saciar a curiosidade e saber se o evento era tudo isso mesmo. Posso dizer que o resultado, no geral, foi bastante positivo.

Nos corredores da CCXP 2016

Já sabia - e pude confirmar - que, em convenções deste porte, é imprescindível focar nas atividades que realmente interessam, já que há enormes chances de ficar hipnotizado por atrações secundárias. E, quando isso acontece, a frustração pode bater forte, ao se perceber que o que realmente se queria fazer ficou para um depois que jamais chegará. Tendo isso em mente, saí à caça do que me importava: comprar revistas atrasadas da série Mágico Vento, da editora italiana Bonelli, publicada no Brasil pela Mythos. A empreitada foi um sucesso, talvez até grande demais. Eu, que só tinha cerca de 30 números deste fumetti, encontrei mais de 80 revistas que não possuía dando sopa por lá. Chegou um ponto em que estava torcendo para não encontrar mais nada, para que o bolso parasse de reclamar.

Mundo CCXP

Com a sensação de ter cumprido a primeira "obrigação", resolvi partir para a fase dois: obter autógrafos de meus quadrinistas favoritos. Autógrafos? Sim, autógrafos. Ainda fiquei pensando se valeria a pena perder tempo com isso, já que, na prática, um autógrafo não é muito mais que uma assinatura num pedaço de papel. Mas basta chegar perto da data do evento que meu espírito de fanboy renasce freneticamente. Com a experiência adquirida do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) 2015, resolvi levar apenas edições finas, para não abarrotar ainda mais minha mochila.

Alan Davis, Simon Bisley, Bill Sienkiewicz e Jae Lee, here I go.

Todos foram bastante simpáticos, com exceção do primeiro, que se recusava a tirar fotos e autografar caso não houvesse contrapartida$. O encontro com Jae Lee também fugiu à normalidade. Foi muito esquisito esbarrar com um de meus maiores ídolos, um cara que – para mim – não deve nada para qualquer dos medalhões modernos dos quadrinhos, ali sozinho, sem filas nem nada. Fiquei tão atônito que não consegui articular uma conversa que fizesse um mínimo de sentido. Ele foi tão gente boa e simples que foi difícil acreditar que era ele mesmo. Era por demais humano. Era por demais terreno. Foi triste constatar que o público da convenção dava mais bola para o trailer das novas atrações de Hollywood e para o Trono de Ferro de Game of Thrones (nada contra, ok?) que para o desenhista bochechudo de ascendência sul-coreana.

Jae Lee e fã babão

Uma coisa que me chama a atenção neste tipo de encontro é que, por mais que tente, não consigo ficar bem informado sobre quem é quem nos quadrinhos atuais. Devido à própria natureza, a nona arte é, antes de tudo, individual e pessoal. Graças ao relativo baixo custo de produção e consequente grande poder de difusão desta mídia, é praticamente impossível prestar atenção em tudo que está saindo e saber quem são as novas estrelas ascendentes. Mesmo assim, não canso de me surpreender com a grande quantidade de criadores famosos– para os outros, mas não para mim ainda - presentes no evento.

Com as fotos devidamente registradas e os gibis autografados, parti para os painéis. Teve muita coisa boa no último dia: aula de desenho com Alan Davis, revisão da trajetória do Peter Kuper, debate sobre etnia nos quadrinhos. Em resumo, deu para fazer de tudo um pouco e ir embora com a sensação de dever cumprido. Quer dizer, tudo um pouco não. Havia áreas "proibidas", como a região dos cinemas, em que os fãs se digladiavam para tentar ver um pouquinho de atores (?) como Vin Diesel, e um carinha ou outro da série Harry Potter. Estes territórios, inexpugnáveis, eram o habitat natural do fã primordial deste tipo de convenção, o nerd de ocasião. Conversando com várias pessoas que pretendiam ir à CCXP, percebi que muitos nem sabiam o que queriam ver. O importante era estar lá para ver, ser visto e, claro, angariar uns "likes" no facebook.

Debate

Masterclass com Alan Davis

Não chegarei ao extremo de fazer coro com o mestre Alan Moore que, recentemente, afirmou que gostava dos quadrinhos quando ninguém gostava deles, mas parece-me claro que a existência da Legião dos Fãs de Última Hora não pode ser ignorada. Este fato não é necessariamente ruim, visto que, na essência, o que ainda movimenta a indústria nerd é o rico dinheirinho dos aficionados, sejam eles hardcore ou novatos. Mas faz sentido gastar uma dinheirama numa estátua do Sandman se você nunca leu um gibi dele? Meu ponto é que essas comiccons da vida surgiram a partir de encontros de fãs de HQ, arte que nem sempre recebe o devido carinho neste tipo de evento (alô San Diego ComicCon!).

Bonecos e estátuas fizeram a "alegria" dos fãs

Diante da quantidade de pessoas numa convenção desta magnitude, fator que dificulta a realização de atividades tão banais quanto caminhar, sou forçado a fazer a seguinte pergunta: quem tem mais direito a frequentar este tipo de convenção: os fãs de verdade que formaram o substrato sob o qual foi erguida essa Disneylândia gibizística ou os recém convertidos que gastam somas estratosféricas em camisetas, bonecos, filmes e assemelhados? Em outras palavras, quem merece o tapete vermelho? Os fãs "roots" que estavam lá antes do "Faça-se a luz!" ou a massa endinheirada ávida por lotar o evento? Seja qual for a resposta, somente aqueles com maior disposição para enfrentar a maratona sobreviverão. O vilão Apocalipse dos X-men pode começar a sua seleção dos mais fortes ao final do quarto dia de CCXP.

Boiada, multidão zumbi, autômatos. Chame do quiser, mas os deslocamentos do público até a chegada ao portão da convenção me lembraram muito o manejo de seres descerebrados. Abre uma cancela aqui, afasta uma grade acolá. E assim a massa vai sendo tocada. Condicionados para chegar à convenção ao raiar do dia e marchar incansavelmente até a próxima atração não é comportamento diferente daquele das coletividades acima mencionadas. Aliás, que tal fazer um filme zumbi numa comiccon da vida, hein? Alô George Romero!

Admirável gado novo

Ano passado, meu amigo e guru quadrinístico Lima Neto escreveu uma resenha intitulada

Três dias em Hicksville: cobertura do FIQ!

 Ali ele estabeleceu um vínculo entre os frequentadores do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), realizado bienalmente em Belo Horizonte, com os habitantes da cidade fictícia de Hicksville, na qual todas as pessoas possuem – em maior ou menor medida – vínculos pessoais ou profissionais com os quadrinhos. Como já deve ter ficado evidente até aqui, este não é o caso da CCXP. Nesta convenção, os últimos habitantes de Hicksville lutam pela sobrevivência, encarando a barra de enfrentar um apocalipse zumbi. Tentando encontrar refúgio nas lojas que ainda vendem quadrinhos, verdadeiras fortalezas/santuários que os protegem da loucura que assola os corredores, eles buscam explicações racionais para uma realidade na qual imperam instinto e consumismo sem controle.

Fã descerebrado e Bill Sienkiewicz

Rafael Coutinho e Gabriel Góes expandem os quadrinhos em Brasília

Yes! Entre os dias 27 e 30 de outubro, Rafael Coutinho desembarca em Brasília junto ao parça (brasiliense) Gabriel Góes para realizar, no Espaço Cult, a "Oficina de Desenho e Narrativa para Quadrinhos", que eles já haviam realizado com sucesso em Sampa e outras cidades. Para quem não habita o planeta quadrinho há algum tempo, Coutinho, filho de Laerte, realizou "Cachalote" (com Daniel Galera) e "O beijo adolescente", dois dos trabalhos mais significativos das HQs brasileiras nos últimos tempos. Além disso criou o selo Narval, responsável por desaguar os autores mais instigantes da nova geração de quadrinistas brasileiros. Já Góes, figura muito conhecida em Brasília (e não só), tem em seu currículo as prestigiadas revistas "Samba" e "Kowalski", além de muitos trabalhos autorais e duas elogiadas adaptações de Nelson Rodrigues junto a Arnaldo Branco.

Esta Oficina promete ser um grande estímulo ao quadrinista brasiliense e uma chance para dar aquela velha "movimentada na cena". Participe! As matrículas podem ser realizadas online aqui.

Sobre a Oficina: OFICINA DE DESENHO E NARRATIVA PARA QUADRINHOS

Com Rafael Coutinho e Gabriel Góes

O Espaço Cult realiza entre 27 e 30 de outubro o curso Oficina de Desenho e Narrativa, que promove um entendimento diferenciado da produção de histórias em quadrinhos. Os alunos serão estimulados a deixar de lado conceitos pré-estabelecidos, como a obrigatoriedade de um desenho virtuoso ou a necessidade de histórias lineares com começo, meio e fim. Ao invés disso, o foco dos professores – o brasiliense Gabriel Góes e o paulistano Rafael Coutinho – será na compreensão dos sentidos, daquilo que nos emociona como autor e leitor. O que, por exemplo, prende nossa atenção numa conversa entre amigos? Ou na observação de uma cena cotidiana que assistimos em casa, no trabalho ou na rua? Que sequência de imagens nos encanta, surpreende ou até mesmo repele? A partir dessas reflexões, serão promovidos exercícios de histórias curtas com enfoque na construção de enredos, percepção de ritmo, diálogos e no uso das imagens.

Sobre os professores:

Rafael Coutinho é editor, artista plástico e quadrinista. Filho do também quadrinista Laerte, nascido em São Paulo em 1980, formou-se em Artes Plásticas pela UNESP em 2004. Dono da Editora Narval, fundada por ele em 2010, publicou mais de vinte títulos. Como autor, é conhecido pela graphic novel Cachalote (Quadrinhos na Cia – 2010), pela série em quadrinhos O beijo adolescente (Ed. Cachalote) e pelas ilustrações de recente adaptação de As aventuras do Barão de Munchausen (Cosac Naify – 2014).

cargocollective.com/rafaelcoutinhoartbr

Gabriel Góes é ilustrador, quadrinista e artista plástico. Suas ilustrações foram publicadas em jornais e revistas. É coautor, entre outros projetos, das revistas SAMBA, Kowalski e F A B I O. Adaptou para os quadrinhos, com roteiros de Arnaldo Branco, O beijo no asfalto e Vestido de noiva, obras de Nelson Rodrigues.

www.flickr.com/photos/7childrensbar

CAVALEIRO DAS TREVAS III, LIVRO DOIS: LEITURA PARA “NÚMERO 2” – 2º ensaio

por Márcio Jr.

A esmagadora maioria dos gibis mensais norte-americanos possui 22 páginas de quadrinhos propriamente ditos. Estamos, obviamente, falando de mainstream, comic books, super-heróis. Existem algumas justificativas para isso. A mais comum é que se o desenhista produzir uma página por dia, ao final do mês, descontando os finais de semana, ele terá feito um gibi inteiro. Faz sentido.

Minha tese, porém, é outra. Um gibi de 22 páginas corresponde exatamente ao tempo que se gasta numa ida ao banheiro para executar o glorioso “número 2”. A não ser que o roteirista seja o verborrágico Chris Claremont.

Você chega, abaixa as calças e senta no trono da privacidade absoluta – ou quase, no caso de ter filhos pequenos em casa. Ali, trabalho sujo e leitura ligeira andam de mãos dadas, numa simultaneidade que remete ao nado sincronizado. Movimentos peristálticos e satisfação mental. 22 páginas depois, missão cumprida. Missão dupla, diga-se de passagem. O gibi foi devorado do começo ao fim, sem sobras indesejáveis para momentos posteriores. E o estado da matéria no forévis ainda não se petrificou a ponto de exigir uma ducha. Todos saem ganhando.

Gibi de super-herói é, definitivamente, leitura de banheiro.

Batman: O Cavaleiro das Trevas, não.

A empreitada original de Frank Miller na mini-série de 1986 estava longe de ser leitura ligeira. Havia tramas e subtramas, overdose de informação, sofisticação gráfica e narrativa acachapante – além de cada edição ter praticamente o dobro de páginas de um comic book usual. Ou seja, torrar O Cavaleiro das Trevas no banheiro equivaleria a tomar um vinho de boa safra acompanhado de Cheetos para degustação. Algo seria fatalmente desperdiçado.

Não se trata aqui de dizer que literatura de banheiro tenha obrigatoriamente qualidade inferior. Taxionomias da modernidade não me parecem muito apropriadas para lidar com o tema. Li muitos contos de Bukowski confinado entre paredes azulejadas. O vampiro Dalton Trevisan parece talhar suas sintéticas obras-primas para estes ambientes ecoantes. Enfim, o que está em questão no W.C. é a equação que articula as seguintes variáveis: tempo, conteúdo passível de ser integralmente consumido neste tempo, fisiologia e higiene. Nada mais sacal que parar a leitura no meio de um parágrafo – ou entre dois quadros de uma HQ.

O Livro Dois de Cavaleiro das Trevas III: A Raça Superior tem 28 páginas, mas cabe direitinho na latrina. Ao contrário da seminal e inovadora série feita por Miller no século passado, é um gibi muito parecido com outros tantos que circulam atualmente. Fácil ler numa sentada.

Carrie Kelley, a Robin, está presa. No Livro Um, havia sido pega usando o manto do morcego. A edição é praticamente sobre sua espetacular fuga das garras da polícia de Gotham. Nem tão espetacular assim, a bem da verdade.

Frank Miller sempre foi um quadrinista com alma de cineasta. Seu storytelling – dos mais vigorosos que as HQs já deram à luz – tem esse componente cinemático no DNA. Invocado com cinema noir e filmes policiais, o autor sempre pareceu se deliciar em criar fugas eletrizantes. Quem se lembra de como o Mercenário escapou da prisão antes de assassinar Elektra, sabe bem do que estou falando. Neste Livro Dois de DK III, contudo, não temos Miller desenhando. Talvez, sequer esteja roteirizando pra valer. Não dá para saber ao certo o que vem de sua pena ou da de Brian Azzarello. Daí que a fuga de Carrie Kelley, ainda que possua ritmo, soa inverossímil demais, super-heroística demais. Andy Kubert, com certeza, contribui para isso.

A pouca inspiração gráfica apresentada na primeira edição da série se confirma em definitivo neste Livro Dois. Andy emula diagramações de página e enquadramentos criados por Frank Miller em Batman: O Cavaleiro das Trevas. O resultado atingido, todavia, não passa de um pastiche, uma caricatura (pobre) da obra original. 

A Gotham City que o atual desenhista nos oferece é uma triste diluição da sombria e vigorosa megalópole gótica mostrada em 1986.O próprio desenho de Andy Kubert se mostra menos cuidadoso que o habitual. E não se trata de síntese ou estilização, mas tão somente de um Andy Kubert inferior a si mesmo. Tempo curto para a produção? Não sei dizer. Mas ainda que não seja a pior arte do mundo, é muito pouco para um Cavaleiro das Trevas – mesmo este rescendendo a caça-níquel.

Existem dois tipos de arte-finalistas: aqueles que se esmeram ao máximo em manter as características do desenho original a lápis, e aqueles que se apropriam dele, imprimindo ali uma assinatura inconfundível. Klaus Janson pertence a esta segunda estirpe. É um papa da arte-final, responsável por salvar centenas de páginas criadas por desenhistas medíocres. Em DK III, infelizmente, tem se mostrado tímido e por demais preocupado em preservar o trabalho de Andy Kubert. Um erro.

Erro que se agrava se lembrarmos que, além de arte-finalista de primeiríssima linha, Janson é também um craque do desenho. Quando o próprio Frank Miller abandonou o lápis e passou a apenas escrever (e esboçar) as histórias do Demolidor, Klaus Janson assumiu o trabalho, mantendo o nível lá em cima. Alguns, inclusive, dizem que é o período mais bonito da longa primeira jornada de Miller à frente do personagem. Volto a pensar em limites de tempo para a produção de Raça Superior. De qualquer forma, tenho absoluta convicção que uma saída infinitamente melhor que a escalação de Andy Kubert como desenhista, seria deixar o velho Sr. Janson tomar conta de toda a arte de DKIII. Basta ver as capas variantes que ele criou para a série.

Consumada a fuga de Carrie, a HQ toma um novo rumo que faz avançar um pouco mais a narrativa: os kryptonianos da cidade engarrafada de Kandor são libertados pelo Átomo. Surge então Quar, que não precisa de mais de seis páginas para se apresentar por completo: líder religioso fanático e extremista, dono de um harém de esposas, assassino purificador de todos que não comungam de seu credo. Seria o Oriente Médio uma embaixada de Kandor na Terra? O espectro de Frank Miller finalmente se mostra em DKIII. 

O gibizinho deste Livro Dois é protagonizado pela Mulher-Maravilha e desenhado pelo hermano Eduardo Risso. Oba! Parceiro de longa data de Brian Azzarello – com quem fez a já clássica 100 Balas –, Risso traz munição gráfica de alto calibre para a série. O artista é um fenômeno na composição das páginas e no uso de amplas massas de sombra em preto chapado. Aqui, aparece mais leve e comedido, flutuando nas pequenas dimensões do formatinho. As cores de Trish Mulvihill são as mais inteligentes (e competentes) até o momento.

Na curta HQ, um tenso encontro entre a Mulher-Maravilha e sua filha (com o Superman) Lara – que começa a confirmar para si um papel fundamental na trama. O conflito de gerações, o embate com os pais e os questionamentos da juventude vêm à tona. São temas universais. Escapar dos clichês – ou executá-los com maestria – é condição indispensável ao sucesso de A Raça Superior

Ao final da segunda edição de DKIII, tem-se a nítida impressão que a HQ ainda não decolou. Alguns fios de trama, não muitos, foram lançados. A leitura, ligeira, não é desagradável. Mas ainda está muito aquém do relevo que um Cavaleiro das Trevas exige. Com praticamente a mesma quantidade de páginas destas duas edições, o primeiro número da série original já havia virado o mundo dos quadrinhos de cabeça para baixo. A Raça Superior ainda tem sete “livros” para mostrar que não é só mais uma leitura de banheiro, dentre tantas outras. Afinal, pelo menos aqui em casa, todo dia tem “número 2”.

Talco de vidro: Inescapável armadilha mental

por Marcos Maciel de Almeida

Confesso que não estava familiarizado com a obra do fluminense Marcello Quintanilha. Sabia que ele tinha ganhado o prêmio de melhor HQ Policial no Festival de Angoulême na França, com o gibi Tungstênio. Sabia também que ele tinha lançado alguns álbuns pela Conrad, inclusive o Fealdade, quando ainda assinava como Marcello Gaú. Bem, posso dizer que, depois de Talco de Vidro, minha opinião sobre o quadrinista passou da simpatia neutra pela admiração e pelo reconhecimento de estar diante de uma estrela em formação. Que gibi!

Leitor de quadrinhos há pelo menos três décadas percebo, com grande felicidade, o momento especial por que passa o quadrinho nacional atualmente. Antes, a HQ brasileira lutava para encontrar sua identidade e parecia sempre estar querendo se adequar aos modelos estrangeiros, principalmente o comic americano. Sim, tínhamos grandes autores pertencentes à vertente crítica/humorística como Angeli, Laerte e Glauco, mas sempre tive a sensação de que esses criadores faziam parte de um “gueto”, enquanto a maioria dos quadrinistas remava sem rumo definido. Lourenço Mutarelli também era outro autor marginal, no bom sentido da palavra. Não estou afirmando que hoje exista um movimento que possa ser denominado de Novo Quadrinho Brasileiro. Na minha modesta opinião, os autores deixaram de buscar um modelo e decidiram trilhar o próprio caminho, que aponta para o trabalho independente, livre e autoral. Acredito que a identidade nacional quadrinística, hoje, se afirma mais pela heterogeneidade que o contrário. É mais fácil dizer o que ela não é, do que saber o que ela é. Enfim, essa é outra história. O que importa, nesse momento, é reconhecer o talento de Quintanilha, retrato dessa geração que vem transformando o quadrinho nacional.

Lendo algumas críticas sobre as principais qualidades do autor, uma delas é frequentemente exaltada: a capacidade em reproduzir o linguajar coloquial do brasileiro, especialmente levando em consideração que Quintanilha está radicado na Espanha há quinze anos. Essa habilidade fica patente na HQ Tungstênio, que se passa em Salvador, e também na Talco de Vidro. Mais que isso, o autor demonstra considerável talento em retratar situações cotidianas, óbvias, que todos vivenciamos, mas não paramos para refletir ou identificar. Sabe aquelas coisas que só reparamos quando alguém aponta o dedo e nos mostra didaticamente? Pois é, Quintanilha é mestre nisso.

Para um amigo meu, a leitura dos trechos iniciais de Talco de Vidro é semelhante a assistir a uma novela do Manoel Carlos, especialista em contar, com os exageros típicos do gênero, o cotidiano dos membros da classe média alta carioca e suas interações com as outras classes sociais. Sim, a leitura inicial pode parecer apenas mais uma narrativa sobre a vida de uma moça de Niterói, mas há uma sensação de incômodo latente na história. Uma percepção, por vezes subliminar, de que há algo de podre abaixo da camada de normalidade.

A protagonista, Rosângela, tem uma vida estável e aparentemente feliz. É dentista, tem vida financeira confortável, e mora em bairro nobre de Niterói. O marido é médico cardiologista renomado, cujo sucesso parece não ter nem o céu como limite. Entretanto, sutilmente, o autor dá pistas de que a personagem não teria tanto mérito nas conquistas de sua vida: a faculdade – de prestígio – foi bancada pelo pai, que também pagou o consultório. Seu carro, caríssimo, foi presente do marido. Sugere-se, então, certa dependência financeira e emocional de Rosângela em relação aos entes queridos.

Rô acredita pertencer a um grupo diferenciado de indivíduos. Seres superiores que transitam pela cidade sabendo que há cercas invisíveis que os separam do restante da população. Ao se relacionar com as pessoas da “casta inferior”, ela sempre faz questão de colocar as pessoas em seu devido lugar, já que não seriam boas o bastante para fazer parte de seu círculo íntimo. Em visita à tia, por exemplo, ao ouvir da última que o ventilador tinha que ficar ligado o dia inteiro, comenta: “Lá em casa é o ar condicionado”, como que para ressaltar a diferença social entre ambas. Este escudo aparentemente impenetrável de altivez tem, entretanto, uma rachadura inicialmente imperceptível, mas que se revela insuportável: a inveja nutrida pela protagonista em relação à prima, Daniele.

Porque invejar a prima, que era mais pobre, morava em bairro humilde e tinha a vida marcada pela infelicidade? Afinal, não haveria justificativa para invejar alguém com pai alcoólatra, que não terminou a faculdade, é divorciada... Entretanto, uma característica da prima não permitia que Rô se considerasse superior em todos os aspectos. Invejava, com todas suas forças, o sorriso de Daniele. Assim, aos poucos, passamos a assistir à transformação da inveja da protagonista em uma verdadeira obsessão, que a levará por uma trilha escura que poderá se tornar irreversível.

O pontapé inicial para o desmoronamento da vida de Rosângela é a descoberta de que a prima está namorando. A partir desse momento, a vida da dentista não é mais boa o bastante. Seu marido – que era o pai e companheiro que qualquer mulher gostaria de ter – passa a ser visto como um ser execrável. Seu odor se torna insuportável. Essa nova percepção de Rosângela está diretamente ligada ao novo momento da prima. Se ela está namorando, o marido médico tornou-se descartável. Casamento já era. O importante agora é curtir a vida. Namorar sem compromisso. Entregar-se a diversos parceiros. Tudo para se aproximar – e claro, superar – do estilo de vida de Daniele.

A narrativa da “queda” da protagonista é recheada de metáforas. Acompanhem a sequência abaixo, que mostra o turbilhão que despertou na mente de Rosângela nos momentos posteriores à descoberta de que a prima tinha virado a página com o ex-marido. São os primeiros sintomas de mal estar provocados por uma inveja avassaladora, que não passará em branco.

A arte é um capítulo à parte. Hábil desenhista, Quintanilha registra com talento a montanha russa de emoções pela qual transita a protagonista. Orgasmos com cara de sofrimento, alegria forçada e depressão extrema são retratados com grande sensibilidade. Vejam o olhar transtornado da protagonista ao descobrir que a prima não viria para uma consulta ansiosamente esperada, na qual Rô mostraria quem estava “por cima da carne seca”:

A boa utilização das retículas na construção dos quadros, da vestimenta e até do corpo dos personagens contribui para a composição das cenas, “colorindo” as páginas em preto e branco. Finalmente, o título. Ao pensar em talco lembramos de um produto higienizador e perfumado, com propriedades de cura. O talco nessa HQ, entretanto, é outro. É de vidro. É cortante. É como a vida de Rosângela. Uma análise mais ligeira sugere conforto, bem estar e alegria. Sob os olhos do microscópio, entretanto, a visão é outra. Há algo apodrecendo ali, à espera de um gatilho para que possa vir à tona. E quando esse momento chegar não será mais possível conter o monstro faminto da inveja.

HQ em um quadro: o solipsismo de Modred the Mystic, por Bill Mantlo e Sonny Trinidad

O narrador sugere que Modred vê monstros e dragões no lugar de soldados, carros e armas (Bill Mantlo, Sonny Trindad, 1975): dia desses ganhei um presente que adoro: um gibi velho, puído, um pouco mofado. Tive que deixar algumas leituras da fila para trás para me dedicar a este novo artefato. Trata-se de uma revista da Marvel original de 1975. Nada raro ou obscuro, que fique claro. Mas eu sou daqueles que gosta de primeiro cinema, dixieland jazz, maxixe, golden age comic strips, coisas velhas. Um gibi Marvel dos anos 70 é como uma pequena viagem no tempo àquela época louca: páginas de anúncios como "have your poems set to music", "free one million cash", "hipnotize!", "authentic Superman costume", etc. Além dos próprios anúncios da Marvel: adesivos para caderno, fantasias dos Vingadores para crianças, um correio super "hip" assinado pelo Stan Lee. Fresh vintage!

Mas nada disso se compara à leitura de um bom gibi da era de bronze. Veja este caso. Ele faz parte de uma série chamada "Marvel Chillers", que está entre o super-herói e o terror ainda um tanto inspirada no grafismo do horror clássico dos anos 40 e 50. Mesmo assim, o conteúdo é bem mais supers. Durou apenas sete edições, duas com Modred, the Mystic, um personagem de quinta criado por Marv Wolfman que apareceu depois em algumas histórias dos Vingadores; e as outras cinco com a sensual e mais famosinha Tigra, the Were-Woman. A minha edição é a número dois. Portanto, o fim do arco de Modred, cuja primeira aparição havia sido no número um. Não esperava nada, mas encontrei um texto consistente de Bill Mantlo, com diálogos elaborados e ótimos (e bem irônicos) recordatórios (ou recitativos), além de uma arte satisfatória por parte de Sonny Trindad, prejudicada pela coloração de impressão paupérrima (imagino que em 3 cores), mas que adiciona certo charme à coisa. 

Modred, na verdade, é um ótimo personagem. Oriundo do século VI, da terra de Camelot, ele é o aprendiz de mago do grande Velho Gervasse, o "segundo maior mago do Reino" (perdendo pra um enlouquecido Merlim, é claro). Ambíguo, impetuoso, descontrolado e submisso às suas paixões, Modred acaba cedendo a forças obscuras quando invoca um poder das trevas presente no livro Darkhold e, exaurido num duelo contra o oculto, acaba congelado no tempo, paralisado, até que acorda no presente (isto é, 1975). O enredo lembra a série Camelot 3000, e eu não me surpreenderia se Modred tivesse em algum nível sido uma inspiração.

Os já citados bons recordatórios (numa época em que não era tabu caprichar nos recordatórios, hoje considerados "literários" demais para a "arte livre" dos quadrinhos - completa besteira) e o fato de Modred acordar em uma sociedade moderna são importantes aqui. No quadro que destaquei, Modred acaba de "invadir" o presente e está cercado pela polícia de Londres. O recordatório se questiona assim: "como um ser acostumado com carroças puxadas por cavalos e arco-e-flecha irá reagir quando confrontado com tão modestas maravilhas tecnológicas da era das máquinas como... os carros e as armas de fogo?" Acontece que o que vemos na imagem do requadro não são carros e armas de fogo, e sim... monstros humanoides com lanças e dragões!  É uma linda possibilidade filosófica, a do solipsismo. Sem nos explicar, o texto em quadrinhos (palavra + imagem) nos informa que Modred, vindo de outra época, é incapaz de "processar" a visão de seres e tecnologias que não existem em seu mundo. Logo, seu cérebro os verte em algo familiar (supondo que monstros e dragões existam em sua mágica Camelot). Ele está vivendo em solipsismo (só ele enxerga seu mundo; seu mundo só existe pra ele). Isso lembra aquela história de que os índios não viram os navios europeus chegando porque seus cérebros não estavam culturalmente e cognitivamente programados para compreender aquela visão (o que deve ser um lorota das boas). Ou a interessante recente pesquisa que afirma que não podíamos ver a cor azul até tempos modernos, já que as línguas e textos antigos não a mencionam (e ela pouco aparece na natureza). O solipsismo é uma condição meio "beco-sem-saída" filosófica que nos aprisiona num dos muitos paradoxos da ontologia. Afinal, como efetivamente provar que não somos todos solipsistas? 

Esta história de Modred é interessante em vários aspectos: comprova a grande fase de amadurecimento do texto em quadrinhos que é a era de bronze, quando as histórias já são direcionadas para um fã mais crescido e a continuidade delas se dá com amarras sólidas, poderia dizer literariamente (pulp, que seja) trabalhadas, sem perder o encanto delirante da era de prata. Mas nada justifica um insight tão fascinante e bem sacado quanto este do solipsismo de Modred. Afinal, o recordatório não nos diz "vejam! ele troca carros por dragões". Ele apenas indica a condição e mostra, num plano-ponto-de-vista, o olhar de Modred, o que dá uma ideia do estado alucinado em que vive o personagem. Uma coisa pescada assim, no meio de uma leitura sem qualquer memória ou prestígio, vinda de um gibi puído. É assim que eu gosto das coisas. (CIM

Especial Editora Mino: 4 resenhas (padrão RL) + ótima entrevista!

por Ciro I. Marcondes (resenhas) e Pedro Brandt (entrevista)

Quiral

Na ativa desde 2014, a Editora Mino juntou em pouco tempo um catálogo admirável, com obras de novatos e veteranos produzidas com caprichado acabamento editorial (papel bom, capa dura, impressão de qualidade, etc.) e uma curadoria que foge de obviedade e é afeita ao risco. 

Além das obras resenhados abaixo, a Mino lançou recentemente Quadrinhos insones, de Diego Sanchez, e os primeiros títulos de autores estrangeiros pela editora: o perturbador Zonzo, de Joan Cornellà, e o divertido (e fofo!) Fungos, de James Kochalka. Em breve, chegam às livrarias O Diabo e eu, HQ inspirada na vida do bluesman Robert Johnson, de autoria de Alcimar Frazão, e Shaolin Cowboy, do monstro Geof Darrow.

Responsáveis pela Mino, o casal paulista Lauro Larsen e Janaína De Luna conseguiu realizar este que é sonho de muitos fãs de quadrinhos: abrir a própria editora e lançar títulos e autores nos quais acreditam. 

Em entrevista por e-mail, eles contam um pouco como foi colocar isso em prática (“As pessoas são apaixonadas por quadrinhos, mas não entendem nada de negócios. Tem que ter planejamento...”), comentam as escolhas do que publicam (“Porra, como é que sabe se determinado autor não vende se ninguém nunca o lançou de maneira decente?”), lembram como se iniciaram no mundo dos quadrinhos e ainda tecem palpites e arriscam previsões sobre o cenário nacional de HQ (“Acho que o futuro vai ser massa!”). (PB)

Caso queira enviar seu material para ser resenhado na Raio Laser, o endereço é o seguinte:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070

CRÍTICA

Aventuras na Ilha do Tesouro

Pedro Cobiaco

(Mino, 2015, 144 p.): De certa forma, a graphic Aventuras na ilha do tesouro, de Pedro Cobiaco (filho do Fábio), e a série O beijo adolescente, de Rafael Coutinho, tratam da mesma reflexão: a difícil tarefa de esquadrinhar ou compreender as growing pains da nova geração de adultos (Y ou millenial) a partir de referências internas, de um pensamento endógeno a eles próprios. Ambos acabam recaindo em uma estrutura fabulística ou mítica, aproveitando elementos da cultura pop ligados a esta galera (os super-heróis no Beijo; uma coisa Alice meets Hora de Aventura no Ilha) para criar uma história eminentemente metafórica, mas ao mesmo tempo muito divertida, sobre este conflito de gerações. Ambos também carregam nas tintas psicodélicas para construir um imaginário vívido, elástico, com uma profusão intensa de camadas visuais e cores, dotando esta geração com uma racionalidade e intuição propriamente lisérgicas, algo que reverbera em suas ações políticas, sua sexualidade, sua identificação com o mundo. 

A grande diferença é que Coutinho, muito mais velho, faz algo mais pensado e intelectual, com referências à historiografia de ouro dos quadrinhos e uma trama elaborada a longo prazo, com arcos narrativos delineados e conflitos que se desdobram dentro de certos padrões de previsibilidade. É um experimento de epistemologias geracionais (por assim dizer) que se encontram, mas não se tocam: O beijo adolescente é a própria cidade de Kandor

que Coutinho cultiva dentro de sua redoma, e isso traz vantagens e desvantagens em relação a Aventuras na ilha do tesouro, que tem uma pulsão muito mais voraz e selvagem. Ler este trabalho se parece mais, na própria sensitividade da coisa, com uma projeção para dentro da cabeça dos millenials. Não é à toa. Cobiaco tem 20 anos de idade, e todo esse desaguar psicodélico se espraia em referências, possibilidades e desdobramentos estéticos. Trata-se de uma história livre, à deriva, desenfreada, por vezes sem lógica, sem função, afogada num oceano de emoções.

Mas, é claro, Cobiaco não é nenhum naïve. Está lá uma carga referências bem sacadas, de Magritte e  Hokusai a Lord of the flies e o supracitado Corto Maltese, como espécie de elo afetivo que une o aspecto metalinguístico da graphic ao coração de seu ímpeto aventuresco. Mas isso tudo não impede que a HQ pareça urgentemente autêntica e atual: na observação microdetalhada da linguagem dos quadrinhos, na submersão no caldeirão surrealista que é a experiência de lê-la, em seu conflito geracional atávico, na androginia queer de seus personagens. Porém, aquilo que, nesta HQ, de longe ultrapassa O beijo adolescente em urgência, de certa forma perde para a obra de Coutinho em meticulosidade, sobriedade, bom senso.

Explico: Aventuras na ilha do tesouro é um bildungsroman (romance de formação) gráfico. Esta formação aparece em duas frentes: por meio do Capitão, um personagem livre que vive, com outras figuras (jovens, modernas, encantadas e encantadoras), em uma ilha (espécie de Éden teen dos anos 2010) que é devassada por uma geração de velhos conhecida como “guarda real” e que acaba com o sonho “Lagoa azul + Tame Impala” que estava sendo construído por aquela sociedade de millenials. O Capitão então vai encontrar seus demônios existenciais, exilado, à deriva. Em outra frente, temos o próprio autor (na verdade uma ficção de si próprio), que aparece com uma espécie de máscara do Rorschach que reflete os movimentos emocionais dele a respeito da perda do pai (metafórico ou não), e os processamentos deste luto. Há inteligência metalinguística nesta parte, muito malabarismo visual e um ótimo dialogo geracional entre o próprio Pedro e seu pai, Fábio, um quadrinista mais clássico (veja a resenha abaixo). A fenda geracional, nas duas frentes, é claramente o que move as camadas simbólicas de Aventuras na ilha do tesouro

O que pega, por vezes, é que esse transbordamento todo, vertido em complexidade (todo um dispositivo de linguagem e camadas simbólicas) e pura emoção de artista (o jorrar psicodélico) deixa a história um pouco como um sujeito com DDA que não consegue se concentrar em nada. Há um momento em que o próprio Cobiaco, vertido como autor fictício, denuncia a farsa: “história egoísta que só faz sentido para mim”. Pode até ser, mas não precisa acusar. É inevitável, portanto, dizer o que já deve estar claro – esta graphic é um raio x desta geração no que ela tem de melhor e pior: expressão e vacuidade. Como os requadros do último capítulo (silenciosos, instintivos, aquecidos) denunciam, o processo todo de Aventuras na ilha do tesouro funciona como rito de passagem em todas as suas contradições, em brutal honestidade. Neste sentido, ler este trabalho em conjunto com O beijo adolescente funciona como estar dos dois lados de um espelho invertido, com uma geração ajudando a compreender os erros e acertos da outra. É um momento delicado e sensível (para não dizer apenas histórico) para a HQ brasileira.  

Quiral – Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho (Mino, 2015, 44 p.): Acompanho o trabalho de Damasceno e Garrocho desde os tempos do "Quadrinhos Rasos" e, desde que reclamei que o trabalho deles era “fofo” demais (o que de certa forma virou uma piada sobre certo tipo de quadrinho nacional), eles parece que resolveram entrar de mala e cuia nesta seara (vide Bidu: caminhos, Cosmonauta Cosmo, etc.). Nada contra, realmente, mas em Quiral a dupla, versátil e talentosa, mostra visível amadurecimento, mesmo que insistam em alguma meiguice um tanto piegas. Em primeiro lugar, temos uma narrativa dupla, o que é interessante por si: duas histórias (uma de um pirata solitário no passado; outra de uma jovem meio cientista e voluntariosa no presente) são contadas paralelamente, quadro-a-quadro, com design e coloração específica para cada. Em segundo lugar, o tom maduro na expectativa de inversão de valores: embora ambos os personagens vivam em ambiente praiano de caçadores de monstros gigantes (sim, uma coisa Pacific Rim misturado com A ilha do tesouro), o pirata, renomado matador destas criaturas, se sente solitário, exausto, inseguro. Já a moça, inquieta, inspirada pelas anotações do pirata no passado, pretende ousadamente seguir seu legado. São perspectivas invertidas.

Quiral é delicado, sim, com cores amenas e uma beleza contemplativa no leiaute suave das páginas. Apesar de ser uma história de monstros e piratas, não há ação, apenas saudade e sonhos perdidos, e esta vocação, apesar de óbvia para o trabalho dos autores, é trazida à tona aqui com refinamento e bom gosto. Vejam bem a sacada (não genial, mas de tocante simplicidade e bem trabalhada): piratas e monstros gigantes são elementos de quadrinhos “masculinos” estilo filme high-concept de Hollywood. Os autores apenas conjuraram a mágica de encantar esse mundo estéril e brutalizado com um pouco de humanidade. Aquela coisa: extrair, dos estereótipos, arquétipos desconhecidos. Nosso herói é solitário por ser herói, por estar além, por não conseguir se comunicar com qualquer um que retenha suas expectativas. São ideias singelas, desenvolvidas com quase monástica simplicidade, o que torna o quadrinho edificante (e por isso ainda um tanto pueril), mas domado. No final, Quiral até diz a que veio, mas de uma maneira muito minimalista e rápida. Parece o rascunho de um sonho. Uma fantasia de um quadrinho mais robusto, autoral e consistente.  

Goela Negra – Lelis e Ozanam (Mino, 2015, 104 p.): Estações de trem, minas de carvão, abatedouros, moinhos, espeluncas, bares, rostos humanos (muitos rostos humanos): que diabos Lelis não consegue ilustrar, olhando em fotografias ou não, com seu traço de lavagem vertical, de expressão quase pura? Muito diferente de outras obras consagradas, cheias de cores amalgamadas (como Saino a percurá e Clara dos Anjos), em Goela negra este que é um dos nossos maiores ilustradores utiliza o pincel seco em preto e branco para retratar, em escalas narrativas bastante definidas, a tenebrosa realidade dos carvoeiros no norte da França entre o fim do século XIX e os primeiros anos do século XX. Com roteiro, digamos, “correto”, cheio de inferências e bastante engajado do francês Antoine Ozanam, o álbum acompanha a trajetória de Marcel, um operário fodido que vai se jogar numa Paris surreal e enlouquecida pela ganância, pelo crime, pela luxúria, etc., reverberando ecos da revolução industrial e de uma possível revolução anarquista.

Goela negra é uma saga de tom moral e cíclico, tempestuosa e às vezes redundante, cheia de menções a fatos históricos. Os rastros de uma extensa pesquisa podem ser percebidos por toda parte. Se não fosse a arte espectral de Lelis, que contamina cada polegada do quadrinho com a imundice da poluição das carvoarias, é capaz que o roteiro, bem caretinha, se revelasse enfadonho demais. Este álbum é uma prova da qualidade mista, indiscernível, dos quadrinhos enquanto mescla de arte, narrativa e palavra. Se Goela negra resultaria apenas em mais um filme mediano inspirado em Germinal, o mesmo não ocorre aqui (em quadrinhos) porque a arte de Lelis adiciona um componente que não é apenas a beleza visual: é drama, são sentimentos, são intenções verdadeiras, são nuances inalcançáveis pelo texto. É importante frisar sempre a qualidade narrativa da arte nos quadrinhos (e não apenas em sua parte sequencial), e Lelis inflama esta obra com (literalmente) um retrato poderoso de uma sociedade desigual, economicamente complexa, eticamente chegando ao seu limite e na fronteira de uma ruptura ideológica brutal que resultaria no colapso da Primeira Guerra Mundial. Se o texto realista de Ozanam parece fora de moda ou incapaz de dar conta das questões que invoca, temos a sorte de contar com Lelis para retificar estes problemas com uma arte em seu ápice. 

Mayo – Fábio Cobiaco (Mino, 2015, 88 p.): O veterano Fábio Cobiaco (pai do Pedro) resolveu transformar sua empreitada mais longa e ambiciosa em uma minuciosa examinação da era de ouro dos quadrinhos. A história de piratas Mayo, que se passa em Santa Catarina no início da colonização do Brasil, é toda contada em tiras de quatro ou cinco quadros (com eventuais surpresas), a narrativa é atomizada, os personagens se envelopam em arquétipos. O resultado é semelhante ao que o brasiliense Daniel Lopes alcançou com Marco, o macaco do espaço, mas muito mais autoral. Cobiaco cita explicitamente um estudo quase obsessivo da Caniff (Terry e os Piratas) e Pratt (Corto Maltese) para compor a trajetória de uma pirata amaldiçoada, irremediavelmente obstinada, que atravessa o Sul do Brasil em busca de um tesouro que não revela ser exatamente o que seus marinheiros pensam. 

Diferentemente da verborragia quase institucional de Caniff (ainda que fosse um mestre na sutileza da empaginação) ou do aspecto zen beatnick de Pratt, Cobiaco imprime muita virulência e força gráfica em sua narrativa. Seu estilo aqui, ainda que magistral na ilustração dos cenários fantásticos e da vegetação selvagem que os piratas atravessam, é rasgadamente abstrato e propositadamente confuso quando se trata de mostrar os personagens. Por que isso? A impressão que fica é a de que Cobiaco tem consciência sobre um aspecto psicológico de sua HQ, um aspecto denso como a vegetação que vira obstáculo para os seus personagens: a revoada de nanquim e o chapadíssimo preto-e-branco, que deixam cenário, homens e mulheres se confundirem, produz, na recepção estética do leitor, o desconforto que sentem aqueles piratas diante do caos de uma terra nova e primitiva. Aqui, o clássico (histórias de piratas!) adquire senso moderno (diria modernista) com uma profunda mistura da experiência visual da HQ (radicalmente desfigurada) com a experiência existencial dos personagens (literalmente desfigurados).

Vale lembrar a inteligência de Cobiaco no diálogo com o material clássico – não apenas Caniff e Pratt, mas também Charlier em Barba Ruiva, Bourgeon em Os Passageiros do Vento, Mozart Couto, Jayme Cortez, etc. –, que, francamente, pouco aparece nos novos autores de HQ brasileira, mais influenciados por outras mídias e por outras HQs contemporâneas. Mesmo com esse visu retro-modernista, Mayo é uma interessante história de aventura, exemplarmente bem pesquisada, com personagens carismáticos na medida certa, paradoxalmente modesta em sua proposta de fabulação. Alguns podem achar os desenhos irregulares ou abstratos demais; outros, a história um pouco juvenil e simplória. A mim agrada a mistura de Brasil com Conan; de Van Gogh com Alex Raymond.

ENTREVISTA

No perfil da editora no Facebook encontra-se a seguinte frase: “Indo onde nenhuma outra editora jamais esteve”. Apenas uma frase de impacto ou vocês realmente acreditam que a Mino tem um diferencial em relação às colegas de mercado editorial? E que diferencial seria esse?

Lauro: É claro que é um trocadilho meio esdrúxulo com o lance da vaca abduzida e uma piada infame com Star Trek, mas talvez tenha um pouco de verdade nisso. Pelo menos, na nossa intenção. É só olhar nosso catálogo. No primeiro ano, lançamos 11 títulos. 10 deles, 100% nacionais. E com um uma qualidade gráfica que raramente vemos, principalmente em autores nacionais: a maneira de trabalhar os títulos e, principalmente, os autores, a maneira de se posicionar, tentamos fazer diferente. Até na obsessão com o nosso catálogo. Se estamos conseguindo é outra história, mas existe uma intenção, sim, em ir além.

Sanchez

Pelos lançamentos da Mino até o momento é possível perceber uma certa ousadia editorial, já que nem todos os títulos da editora tem cara de best seller. Como vocês, internamente, encaram essas tomadas de decisão?

Janaína: Pra nós isso é muito tranquilo. O potencial de venda não é o primeiro motivo para lançarmos um título. Na verdade, nem o segundo. Não que vender não seja importante. Temos a preocupação de fazer vender os livros que lançamos, e não de lançar livros que vendam. Sem contar que às vezes somos surpreendidos. Livros que todo mundo acha que vai estourar de vender, às vezes não vão tão bem quanto se espera. E às vezes títulos que ninguém imagina, vende pra caramba. Quando eu falo que vendemos mais Diego Sanchez que Mike Deodato, as pessoas acham que estamos brincando. Mas é verdade.  Não que o Deo não venda. Ele vende bem. É que ninguém imagina que o Sanchez venda tanto. Mas na Mino ainda não tivemos nenhuma bola realmente fora. Todos os títulos foram no mínimo como esperávamos. As surpresas foram só boas, mas sabemos que vamos ter um fracasso retumbante a qualquer momento e estamos preparados. Faz parte. Por isso que lançamos coisas que realmente gostamos e trabalhamos para fazer os títulos serem um sucesso.

Harmatã, de Pedro Cobiaco

Lauro: Olha só, não sei se tem essa de não ter cara de best seller. O mercado editorial de quadrinhos no Brasil é tão, mas tão pequeno, que muita coisa não é nem ventilada. Tem um monte de certezas que ninguém sabe de onde as pessoas tiram. “Quadrinho nacional não pode ter um bom acabamento, tem que ser barato”, “tal autor não vende”. Porra, como é que sabe se determinado autor não vende se ninguém nunca o lançou de maneira decente? Quando resolvemos fazer relançamento de material independente, falaram que era furada. Surpresa: em um ano tivemos que reimprimir todos os relançamentos. O Harmatã, do Pedro Cobiaco, tá indo para a terceira reimpressão. Isso é demanda reprimida, isso é encontrar as brechas e trabalhar duro. Nego reclamava para cacete, “gibi nacional de ‘desconhecidos’ em capa dura”? BOA SORTE!” Estamos aí mostrando que muitas vezes no nosso mercado falta é um pouco de coragem.

Temos percebido que a autoindulgência e o corporativismo são características que estão se tornando frequentes entre muitos autores independentes (especialmente entre os novatos). Vocês concordam com essa percepção? 

Lauro: De fato é uma questão, mas não sei se existe uma resposta simples para essa autoindulgência, existe um grande número de fatores que acho acabaram desaguando nisso. Um seria uma sensível falta de uma crítica especializada, gente que se debruce sobre esses trabalhos e sirva como baliza para uma garotada. No vácuo da falta de uma crítica mais seria e responsável, proliferam blogs e afins bastante corporativistas que acabam criando grandes bolhas de nada. Acaba que um leitor curioso que queira começar a ler quadrinhos pode ficar perdido porque, segundo a crítica especializada, na sua grande maioria, todo quadrinho é bom. Aí fica difícil! Pode afastar um monte de gente que, estando sem norte, acabe comprando um monte de coisas bem duvidosas.

Janaina: Mas vamos parar pra pensar: não existe crítica no Brasil, né? Tirando uma coisinha ou outra, simplesmente não existe. Começa pelo fato de que a grande maioria das pessoas que fazem “crítica” de quadrinhos trabalham de alguma forma para a “indústria de quadrinhos”. Aí não dá. Que isenção uma pessoa que trabalhe na Panini, tem pra falar da Panini? E não só isenção, como ele vai meter o cacete? Não dá. Com quadrinho nacional, pior ainda. Sem contar que tem um povo que tem uma ideia maluca de que apontar problemas em determinado título é jogar contra quadrinho nacional. Isso é loucura. Existe textos que são maldosos e desnecessários, eu entendo que não valha a pena ficar apontando o quão ruim é um quadrinho de determinado moleque iniciante. Porém, não se pode falar nem de caras consagrados e coleções de sucesso com grandes editoras por trás. Acho ridículo.

Todo editor começou como leitor. Qual a formação de vocês enquanto leitores de quadrinhos?

 O que gostavam de ler na infância e adolescência? Quem eram seus autores e títulos favoritos? Esses gostos permanecem hoje em dia? O que têm lido e gostado ultimamente?

Lauro: Na verdade, fui alfabetizado pelo meu avô com quadrinhos do Fantasma e do Tarzan. Desde então, li basicamente tudo que eu conseguia pôr a mão. Na infância, o que virava a minha cabeça era Conan. Cara, eu amava o Conan do Gil Kane, Fantasma do Team Fantomen (que eram os responsáveis pelas criações de histórias para os títulos escandinavos do Fantasma), principalmente da dupla Norman Worker e César Spadari. E, talvez, a minha grande paixão dessa fase, os títulos de terror da D-Arte: Shimamoto e Colin até hoje estão entre meus quadrinistas prediletos de todos os tempos. Depois disso acho que tenho que citar a Animal. Nem tenho como calcular o impacto da revista na minha formação. Em uma época sem internet, aquilo tudo era simplesmente GIGANTESCO! Poder encontrar todos aqueles trabalhos em uma banca sebosa no ABC paulista... Continuo lendo tudo que eu consigo colocar a mão. O que tenho curtido muito atualmente: coisas do Box Brown, acho que ele caminha rapidamente para virar um gigante. Os dois últimos gibis lidos foram o Sacred heart, da Liz Suburbia, uma história bem honesta sobre toda a estranheza adolescente e esse pequeno holocausto que todo mundo passa. Li a edição impressa da Fantagraphics, mas dá para ler integral no site dela. O outro foi o Black is the color, da Julia Gfrörer, esse li online mesmo, uma sufocante história de marinheiro. Tô de cara com ela, louco para ler outros quadrinhos dela!

Janaína: Eu fui uma leitora voraz desde a infância. Mas como eu tinha uma biblioteca enorme na minha casa, acabava lendo o que tinha lá. E eu lia de tudo, quadrinhos ou literatura. Na infância, lia muita Luluzinha, Recruta Zero e sou completamente apaixonada por Carl Barks até hoje. Lia um monte de coisas diferentes, tinha muita coisa de contracultura, coisas clássicas. Tinha uns quadrinhos alternativos mexicanos, de Corto Maltese a Little Nemo. Passando por terror brasileiro, como Cripta e umas revistinhas de sacanagem. Isso antes dos meus 11, 12 anos. Fui crescendo e lendo Animal, Laerte, Glauco, Angeli. Os primeiros quadrinhos de super-herói que li foram aqueles clássicos que a Globo lançou uma época. O primeiro arco do Sandman, Elektra, Cavaleiro das Trevas, Piada mortal. Fui meio diferente, só conheci esses quadrinhos depois de velha. Deve ser por isso que minha relação com quadrinho de herói seja diferente. O que eu lia na infância era Crumb.

Quais editoras, brasileiras e estrangeiras, vocês admiram e por que?

Lauro: Brasileira tem a Veneta que é de primeira. Rogério é foda. Ele é o cara que queremos alcançar. A cenoura na frente do cavalo. Ainda bem que ele é velho e deve morrer logo (hehe).

Goela Negra

Janaína: A Bolha tem um cuidado tão grande e uns títulos fantásticos. Traduções incríveis e um acabamento gráfico que dá vontade de comer os livros. A Balão faz um trabalho muito bom também. Nem falo do acabamento, são livros mais simples. Porém o Kroll é extremamente competente e as edições saem redondas. Pena que esse ano eles quase não estão lançando nada. Lá fora, Coconino, Retrofit, Fantagraphics, são tantas...

Qual o caminho para se tornar editor de quadrinho no Brasil? Mais do que gostar de quadrinhos, é necessário saber gerenciar um negócio – qual foi a escola de vocês nesse sentido? E o que vocês diriam para quem quer se tornar editora de quadrinhos no Brasil, que dicas dariam?

Janaína: Acho que isso faz uma puta diferença. Eu já tive duas empresas antes, uma por bastante tempo e outra que eu vendi há pouquíssimo tempo. Então essa parte do planejamento, a parte do negócio mesmo, pra gente é bem mais fácil. Acho que esse é um dos problemas que muita editora de quadrinhos enfrenta. As pessoas são apaixonadas por quadrinhos, mas não entendem nada de negócios. Tem que ter planejamento, controle contábil e todo feijão com arroz que todas as outras empresas têm que ter se quiserem ser saudáveis. Não tínhamos experiência direta como editora, porém, eu sou roteirista de formação e Lauro é designer. Então sabemos o que estamos fazendo. O beabá mais braçal do dia a dia de uma editora aprendemos rápido. Nos preparamos para isso e temos amigos que são incríveis.

Quiral

A Mino paga as contas de vocês? Ou é necessário manter uma outra profissão para se sustentar?

Janaína: A Mino já é lucrativa, sim. Acabamos revestindo grande parte desse dinheiro na própria Mino. Acho que dá pra viver de quadrinho, sim. Temos, pessoalmente, uma estrutura bem pesada. Dois filhos em colégios, casa, carros. Não é fácil, mas dá. Como Lauro tem um ótimo emprego, ele se divide entre os dois lugares. Eu até o meio do ano passado tinha outra empresa, mas vendi e agora dedico todo meu tempo à Mino. Pra gente, por enquanto, está sendo uma boa equação.

Qual o palpite de vocês sobre o futuro da produção de quadrinhos no Brasil? (* a pergunta permite devaneios, fiquem à vontade)

Janaína: Às vezes, fico super empolgada. Acho que tudo vai dar certo. Que os quadrinhos estão bombando. Às vezes, fico meio desanimada. Acho que ficou muito mais fácil fazer quadrinhos e tem muita gente boa fazendo. Tem uma galera nova que tá surgindo que dá orgulho de ver. Porém, temos um longo chão pela frente. Só que mais quadrinhos não significa necessariamente quadrinhos melhores. Acho que a saída é o profissionalismo. É ficarmos cada vez mais sérios. Fazer melhor, estudar mais, nos aprofundarmos mais. O mercado precisa ficar mais profissional em todos os sentidos. Vivemos outro momento. O modelo que tínhamos, e que deu super certo no passado com os quadrinhos de larga escala, com poucas exceções, não é mais viável. Temos que criar um novo modelo. E acho que tá indo. Aos trancos e barrancos, mas tá. Quadrinho alternativo tá meio na moda. Só desanima um pouco às vezes a frivolidade e pouca seriedade que muitos autores dão para suas obras. É quase só hype. Só que aí vemos um Felipe Nunes, um Cobiaquinho, uma Bianca, Mazô, Portugal, a Julia, que é incrível, tantos outros que mal saíram das fraldas e estão tão a fim de mergulhar de cabeça e pensar essa parada seriamente que aí meu coração se enche de esperança.  Acho que o futuro vai ser massa!