HQ em um quadro: Jodorowsky for kids, por Arno e Jodorowsky

Holibanum, Alef-Thau, Diamante, Malkuth e Hogl... caem (Jodorowsky, Arno, 1989): Certamente não é recomendável escrever sobre uma obra da qual constam oito volumes e que atravessou duas décadas tendo-se lido apenas um deles, mas, apesar de em alguma instância isso aqui consistir nisso mesmo, tentarei fazer o possível para que este possa ser um texto honesto. Afinal, é função da seção "HQ em um quadro" capturar algo de essencial nos quadrinhos a partir de uma única imagem, e resolvi tornar esta pequena reflexão desafiadora justamente por esta dificuldade. De qualquer forma, confesso que comprei essa HQ pelo preço 1 (um) Euro, numa promoção da incrível Elektra Cómics em Madrid, e não sabia que era o miolo de uma série grande. A ideia aqui é atingir o âmago desta história de maneira volátil, rápida, e se possível, certeira. O que vemos aqui são cinco personagens da série "As aventuras de Alef-Thau"... caindo. Esta cena está no Volume 5 da saga: El Emperador Cojo (em espanhol); L'Empereur Boîteux, no original. O contexto da imagem merece uma linha: o grupo cai porque foge, através de um rio, de uma infestação de "vírus hipertrofiados" que consome tudo que a circunda. No final das contas, eles caem num local seco, porque a presença da imortal Diamante faz desaparecer tudo que tenta matá-la, incluindo o rio e os vírus. A paisagem é de um colorido vívido e claro, e as formações rochosas são lindas, angulosas e fluidas, algo como a Chapada dos Veadeiros aqui no DF. A geologia e a botânica do mundo mágico é um dos atrativos desta HQ. Parece uma maluquice? Pois bem-vindo ao mundo de Alejandro Jodorowsky, o inimitável criador desta história. Selecionei este quadro com os cinco aventureiros porque ele parece expressar, de maneira metonímica, os componentes básicos deste universo: senso de aventura, o sentimento do companheirismo, o risco constante, o mundo fantástico, a chance ao improvável. O que chama a atenção nesta série é o fato de o grande Jodoroswky, autor de filmes incríveis, como A Montanha Sagrada (chancelado por John Lennon) e El Topo, e da enormemente cultuada série Incal, com Moebius, ter escolhido trabalhar, paralelamente à sua obra-prima, nos anos 80 e 90, com uma série de fantasia quase infanto-juvenil, elaborada no traço límpido (quase linha-clara) do desenhista Arno. "As aventuras de Alef-Thau" pode não conter as reviravoltas catastróficas, os desdobramentos metafísicos, a inflexão religiosa e as culturas intensamente alienígenas do Incal, mas certamente guardam seu valor. Para situar o leitor: "Alef-Thau" se passa um mundo ilusório (?) de fantasia que é na realidade um jogo (literalmente) entre os chamados imortais. O personagem principal e título da saga, uma figura élfica, começa como um aleijado sem braços, nem pernas e nem perspectivas, que vai ascendendo espiritualmente enquanto seu corpo se recompõe, membro a membro.

Se a história parece insólita, tenho certeza de que não soará tão estranha àqueles já familiares ao universo do Jodorowsky. Cineasta, quadrinista, mago, ator, mímico, dramaturgo, tarólogo. A tudo compete este homem. Suas obras são mergulhadas numa busca por transcendência, onde figuras que se tornaram signo de alteridade, como bruxos, aleijados, anões e assassinos, buscam sua própria forma de redenção mística. Cabalismo, sociedades secretas, hermetismo e bruxaria não são elementos estranhos à ordem cósmica estabelecida por Jodorowsky, e eles podem aparecer tanto no passado distante ou inexistente (caso da fantasia de Alef-Thau) quanto no futuro cyberpunk pós-apocalíptico (caso de Incal). Seu interesse pela moralidade e pelo limiar da sexualidade rendeu também outras obras clássicas, como Os Bórgias (com Manara) e La folle du sacré-couer (também com Moebius). Mas o que parece ser mais primordial na obra deste grande mestre é sem dúvida o aproveitamento de uma estética surrealista como foco de resistência: a uma tradição narrativa ordinativa, bestializante e ilusória; a uma ordem lógica racionalista do pensamento, francamente aprisionadora; a uma série de barreiras psicológicas e espirituais que impedem o desabrochar de um inconsciente livre, totalizante, produtor de um verdadeiro self.

Alef-Thau traz estes elementos de maneira leve, aventureira e contagiante, como se fosse O Senhor dos Anéis que tivesse tomado, digamos, um quarto de ácido. A série é ajudada pelo desenho luminoso e super colorido de Arno, grande ilustrador que, por sinal, faleceu em 1996 e veio a aparecer como personagem na continuidade da série (coisas de Jodô). Mesmo assim, Alef-Thau não é desprovida de enredamentos instigantes, lisérgicos, non-sense ou, em última instância, completamente incompreensíveis, tais como, apenas na edição que eu li: 1) uma personagem, Malkuth, que se suicida transformando-se em energia vital para vir a ser... a nova perna de Alef-Thau. 2) uma cidade habitada apenas por pessoas feias, defeituosas ou velhas, que foram expulsas do celestial Reino do Centro Maestro, lugar encantado que aceita apenas pessoas "perfeitas", pois que seu ideal máximo é a beleza. 3) uma personagem-imortal (Diamante) que morre e renasce como um bebê que simplesmente...cresce muito mais rápido que todo mundo e logo é uma adolescente madura que pode procriar com... Alef Thau. A lista poderia prosseguir em torno de viagens astrais e monstros gigantes. Não o faremos, mas resta pensar, em primeiro lugar, na fertilidade de produção de uma mente febril e absolutamente desvinculada de qualquer premissa clássica que é a de Jodoroswky. E, em segundo e último lugar, em quão longe podem ir as HQs e a ficção em geral para adolescentes, e em quão rasos estes produtos realmente são em suas versões mais populares (literatura de vampiros, filmes de super-herói, séries de zumbis... melhor parar por aqui) . (CIM)    

Horror à brasileira

por Ciro I. Marcondes

Revistas de terror brasileiro sempre me provocaram, desde a infância, um temor incômodo, inefável, de alguma maneira lovecraftiano: são páginas que perturbam a consciência antes mesmo de serem abertas. Como a menção do Necronomicon em Evil Dead, basta uma vislumbrada na capa para que um sujeito seja atormentado por noites e noites sem dormir. Como em Lovecraft, no meu imaginário, o terror destas revistas advinha daquilo que ocultavam, e não do que revelavam. Se, por acaso, de alguma forma eu quisesse abrir aquelas caixas de Pandora, um vislumbre de rabo de olho naquelas formas demoníacas, naqueles seres canibais, bestiais, e, talvez principalmente, naquela exótica e esotérica associação entre monstros, psicopatas, assassinatos e sacrifícios com mulheres belas e nuas, atos sexuais selvagens e toda forma de erotismo, tudo aquilo era capaz de criar uma paradoxal relação de temor absoluto com fascínio, atração, talvez obscura lascívia. 

O terror no quadrinho brasileiro data especialmente (mas não só) dos anos 50, e teve longo reinado. Foram dezenas (talvez centenas) as publicações nacionais dedicadas ao gênero, que teve seu auge nos anos 60 e 70. Vale registrar as revistas Sobrenatural, Pesadelo, Calafrio, Mestres do terror, além da própria Spektro, que é tema deste texto. No início, houve a importação de material vagabundo americano (o exímio material da EC só veio a aparecer por aqui nos anos 90), que também estava em voga até a caça às bruxas de meados dos anos 50, em títulos como Terror Negro, Gato Preto e Sobrenatural. Depois, com a censura do material americano promovida pela campanha de Wertham, o material estrangeiro deu uma refugada, o que permitiu que se abrissem as portas ao material nacional e seus clássicos autores, muitos deles estrangeiros radicados no Brasil, como Rodolfo Zalla, Jayme Cortez, Eugênio Colonnese e Nico Rosso. Históricos ilustradores brasileiros despontaram: Flávio Colin, Júlio Shimamoto, Ofeliano. A história é muito longa e cheia de desdobramentos para ser contada aqui. O que importa é que em 1977 estreia, pela editora Vecchi, Spektro – a revista do terror, e, em 2013, uma Spektro veio parar em minhas mãos. Nas palavras do mestre Moacy Cirne: “A revista Spektro, enquanto foi publicada, constituiu-se, a partir do número 2, em nossa principal publicação de terror, desde os tempos heroicos da Editora Outubro”.

A capa: desenho de Ofeliano

A edição número 15 de Spektro (de 1980) me trouxe a oportunidade de abrir a velha caixa de Pandora e me defrontar com aquela curiosidade auspiciosa despertada em mim por estes quadrinhos na infância. Os temas continuam aterradores. As visões, passados anos, ainda perturbadoras. São todo tipo de demônios, pactos sangrentos, mortes perturbadoras, rituais de sexo e sangue, e até curiosidades como um conto obscuro de Balzac e uma história sci-fi ilustrada por ninguém menos que John Byrne! Nem tudo de primeira. Muito material é claudicante, sem ritmo narrativo, com finais abruptos e forçados, arte primária, coisas muito gore e desnecessárias. Mesmo assim, vale lembrar uma história de demônios esotéricos, tirada de cordel, ilustrada por um jovem e promissor Watson Portela; um clássico de “cangaceiros do inferno”, por Gustavo Augusto e Antonino Homobono; e um monstruoso conto de seres reptilianos, por Fernando Silva.

Spektro e os espelhos

Porém, o que me motivou a escrever este texto foi certamente a história que abre a edição, chamada “A casa dos espelhos”, não apenas por reunir quase uma espécie de dream team do quadrinho brasileiro de terror, mas por referenciar um tema de fortes conotações metafísicas, de macabro horror psicológico, ligando, sob uma mesma teia, coisas como visões infernais especulares, suicídios, orgias e guerras. Aqui, mais distante do compêndio trash/gore/erótico que caracteriza as outras histórias, encontramos um verdadeiro aprofundamento na fisiologia e psicologia primárias do terror. 

Um jovem e macabro Watson Portela

Supostamente baseada nos relatos jornalísticos (verdadeiros... e sabotados) do misterioso Jonas Beltron, que “era escalado pelo editor do extinto jornal ‘A noite em notícias’ para cobrir os mais fantásticos casos sobrenaturais” (segundo o clássico editor da Spektro, Otacílio d’Assunção, o velho Ota), “A casa dos espelhos” é um mosaico de histórias insólitas envolvendo interessante moldura: o próprio Jonas Beltron aparece como personagem para visitar uma sombria mansão com salões e quartos obsessivamente recobertos por espelhos, carregada de um passado com inquilinos sombrios, com o objetivo de entrevistar o único morador sobrevivente – o caquético mordomo Juvêncio.

O texto da HQ é de Basílio de Almeida, e ela é ilustrada por Shimamoto (na sequências da moldura), Watson Portela, Flávio Colin e H. Yoshinobu (aparentemente, um pseudônimo do próprio Shima). Em todas as terríveis histórias relatadas pelo mordomo, a presença dos espelhos surte um efeito diferente, revelando um aspecto novo como possibilidade de representação do terror. Na primeira, desenhada por Watson, por exemplo, emerge o aspecto sobrenatural, quando nos é apresentado o casal que construiu a casa: um magnata do comércio e “uma mulher vaidosa e narcisista que teve a ideia dos espelhos”. A história se torna lúgubre e ao mesmo tempo exoticamente atraente quando a vaidosa esposa, abandonada sexualmente pelo impotente marido, passa a buscar saciação com uma criatura demoníaca, de aspecto felino, que atravessa os espelhos para sugar seu sangue e fazer sexo com ela. 

O espelho: fragmentador da subjetividade

A menção, no texto da HQ, a uma mulher “narcisista”, por pulp que seja, não aparece à toa. O contato com o espelho, construtor de um mundo simbólico e outro imaginário, segundo a psicanálise de Jacques Lacan, é o que fabrica, na primeira infância, nossa identidade narcísica, aquilo que nos constitui enquanto fantasia de sujeito. A mesma imagem especular, prismada em fantasmas e doppelgangers (duplos de nós mesmos no mundo) será responsável mais tarde não por nos unificar, mas por fragmentar nossa consciência, trazendo à tona o medo da morte, do esfacelamento da identidade e da subjetividade. A figura de um duplo, tão bem representada em qualquer espelho, será não mais um signo de configuração de nossa presença no mundo, mas um aviso terrível de nossa desintegração. Um mesmo dispositivo é acionado para nossa pulsão de vida (Eros) e de morte (Thanatos), e daí certamente vem a associação tão comum entre o terror e o erotismo: ela revela a relação íntima entre nosso instinto de criar e destruir, de amar e matar, como lados de uma mesma moeda. 

O virtuosismo de Shimamoto

Os outros “causos” de “Casa dos espelhos” corroboram estas ideias. E com bônus: se a arte de Watson Portela é ainda muito primária e com pouca mobilidade na primeira história, na segunda, desenhada pelo tal “Yoshinobu” (nome do meio de Shimamoto), temos acesso a uma arte de terrível (no bom sentido) expressionismo, com ângulos virtuosos e um riscado diagonal, aproveitando o ciaroscuro, que tornaram célebres os desenhos do nosso ilustrador de origem japonesa. Também a história ganha em densidade dramática, quando acompanhamos um outro morador da casa, refugiado da segunda guerra e ex-colaborador nazista, que precisa injetar drogas na veia para poder dar vazão a bad trips escapistas, torturantes e avassaladoras. Já sem a afetação do espelho como passagem para um duplo maligno e diabólico, aqui a tensão se dá entre a solidão claustrofóbica do junkie e a reverberação de suas alucinações no espelho. Shima usa hiper-closes, zoom, vortex e diversos recursos gráficos diferentes para detalhar com exuberância o enclausuramento macabro do colaborador, que acaba se suicidando no final. 

Os playboys dos episódio de Colin

A cereja do bolo, no entanto, fica por conta de “Juventude transviada”, o capítulo de “A casa dos espelhos” ilustrado pelo magnífico Flávio Colin. Para quem ainda não conhece, Colin é um dos mais frutíferos e inovadores ilustradores brasileiros de todos os tempos, tendo atuado até os anos 2000. Seu estilo, icônico, pendendo ao cartunesco, é inconfundível, tendo sido pioneiro em uma época em que o realismo figurativista estava muito mais em voga nos quadrinhos. Não à toa, pode-se dizer que ele se adianta a desenhistas como Mike Mignola ou Mike Allred no sentido de verter os quadrinhos para um patamar mais minimalista. Seu capítulo em “Casa dos espelhos” é também um dos mais brutais: a casa, desta vez, é alugada por um grupo de playboys que passam noites fazendo orgias de sexo e drogas dentro do salão principal da casa, até que um deles começa a surtar e comete um assassinato à queima-roupa. Este acontecimento leva a uma série de outras atrocidades, incluindo roletas russas e torturas, até que todos na casa estejam devidamente mortos no momento em que são encontrados pelo porteiro Juvêncio. O tratamento do roteiro, por mais que peque um pouco no quesito do moralismo, é absolutamente frio e observacional, transformando a experiência, para o leitor, em algo ao mesmo tempo voyeurístico e perverso.

Colin: estilo minimalista

A assombrosa maturidade destas histórias me leva a pensar na imensa quantidade de outras boas publicações em quadrinhos que estão perdidas por aí, décadas depois de sua edição original, sem oportunidade de serem lidas pelo cada vez mais assíduo público leitor de quadrinhos no Brasil. Fica claro que precisamos urgentemente de republicação deste material, em impressões e papel de qualidade devida. Em uma só história encontramos elementos do horror metafísico, do horror do sexo, do horror da guerra, do horror do vício, do horror bestial da juventude e do horror do autorreconhecimento. Não faltava originalidade de ideias, nem um approach artístico e nem uma estética propriamente dita a estes quadrinhos. De alguma forma, a ideia do espelho fica aqui para lembrarmos que precisamos reconstruir a imagem e a história das nossas publicações e traçar enfim uma genealogia da trajetória das nossas HQs, com tudo em catálogo e em boa qualidade, como nunca deveria ter deixado de ser.

Roleta russa

CURSO HISTÓRIA DOS QUADRINHOS: TRAJETÓRIA DE UMA ARTE SEQUENCIAL


Ministrado pelos criadores de RAIO LASER

PROGRAMA DO CURSO

EMENTA:

As histórias em quadrinhos têm como marco inaugural uma publicação de 1895, mesmo ano da primeira exibição cinematográfica pública, realizada pelos irmãos Lumière. Elas se inserem na história e na cultura do século XX como um fenômeno de grande influência social e aceitação popular, lentamente requisitando seu lugar no universo das artes. Meio de alta maleabilidade e possibilidades expressivas, os quadrinhos se adaptam a todo gênero de modalidades narrativas: do horror à comédia. Da sátira social ao abstracionismo. Da contracultura à autobiografia. Da fantasia à política. O objetivo deste curso é percorrer um pouco da história desta mídia, em geografias distintas, abarcando também uma introdução à teoria dos quadrinhos.
PROFESSORES:

Ciro I. Marcondes é professor, crítico e pesquisador de Histórias em Quadrinhos e Cinema. Foi professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, do curso de Cinema do IESB e de Audiovisual no Unicesp. Atualmente cursa doutorado em Comunicação no PPG-FAC da UnB, na linha Imagem e Som. É mestre em Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB). Possui graduação em Letras – Português pela Universidade de Brasília. É o editor do site www.raiolaser.net, especializado em crítica de Histórias em Quadrinhos. Participou da tradução do livro "A Narrativa Cinematográfica", de François Jost e André Gaudreault (Editora da UnB). Produziu verbetes para o "Dicionário de Comunicação" (Ed. Paulus) e produziu o curso "História do Cinema Mundial", em oito módulos, juntamente à UnB e ao GDF. Já ministrou cursos como “História do Cinema”, “Crítica de cinema e análise fílmica”, “Hitchcock e a ilusão do cinema”, “Cinema e filosofia”, para o Espaço Cult, Centro Cultural Banco do Brasil e Espaço Varanda.

Pedro Brandt, jornalista brasiliense formado pela Universidade Católica de Brasília, 31 anos, passou pela editoria de cultura dos jornais Tribuna do Brasil (2005-2007), Jornal de Brasília (2007-2008) e Correio Braziliense (2008-2012), nas quais escreveu sobre diversos assuntos, com destaque para música e histórias em quadrinhos. Produziu e apresentou durante cinco anos (2006-2011), junto com Fernando Rosa, o programa Senhor F, na Rádio Cultura FM de Brasília, com enfoque diferenciado nos clássicos, obscuridades e novidades do rock. Pedro também é produtor eventual de shows e estreia em breve seu selo discográfico, Discos Além. Escreve regularmente para o site especializado em quadrinhos Raio Laser.
CRONOGRAMA:

Aula 01 (07/10) - O surgimento dos quadrinhos + primeiros quadrinhos: ainda no século XIX, os quadrinhos despontaram como mídia influente, industrializada, de conteúdo anárquico e politicamente incorreto. Krazy Kat; Little Nemo; Mutt and Jeff; O menino amarelo. Os funnies e a popularidade das family strips.

Aula 02 (09/10) - Era de ouro americana + o quadrinho de horror (período clássico): a era clássica dos quadrinhos e a ascensão do heroísmo (Flash Gordon, Tarzan, Príncipe Valente, Dick Tracy). A criação do comic book e do super-heróis (Superman; Batman). Will Eisner e Spirit. A popularidade da EC Comics e dos quadrinhos de horror, guerra e ficção científica. O código de censura e o fim da era de ouro.

Aula 03 (14/10) - A cultura da BD e o quadrinho francobelga: os quadrinhos de tradição francófona em duas frentes. A rivalidade entre as revistas Spirou e Tintin e o quadrinho de humor (gros nez e linha clara). Jerry Spring, Lucky Luke, Spirou, Tintim, Asterix, Gaston Lagaffe. O quadrinho adulto francobelga a partir das revistas Pilote e Métal Hurlant. Autores: Dionet, Moebius, Druillet, Lob, Bilal, Jodorowsky, Tardi, etc.

Aula 04 (16/10) – O quadrinho italiano (fumetti) + o quadrinho japonês (mangá): introdução à cultura de HQ pulp das bancas italianas com faroeste (Tex, Ken Parker, Mágico Vento), aventura e horror (Martin Mistere, Dylan Dog, J. Kendall). O quadrinho autoral italiano: Crepax, Manara, Serpieri, Magnus, Liberatori, Tamburini). A cultura de quadrinhos japonesa em seus âmbitos histórico, social, industrial. Mangás e gekigás. Autores: Osamu Tezuka, Hayao Miiazaki, Katsuhiro Otomo, Suehiro Maruo, Yoshihiro Tatsumi.

Aula 05 (21/10) – O super-herói das eras de prata e bronze + O quadrinho nacional: o retorno à cultura de super-heróis a partir da ascensão da Marvel nos anos 1960. Stan Lee, Jack Kirby, Steve Ditko, John Buscema, etc. O dilema do herói na era do Vietnã e no flower power. O amadurecimento dos super-heróis no final dos anos 80 e o surgimento do anti-herói: Frank Miller, Grant Morrison, Neil Gaiman, Brian Bolland, Dave Gibbons. A trajetória do quadrinho brasileiro, desde os primórdios (Angelo Agostini a Tico-tico) até nomes históricos como Maurício, Ziraldo, Henfil, Angeli, Laerte, Glauco, Mozart Couto, Shimamoto, Colin, chegando à contemporaneidade.

Aula 06 (23/10) – Os quadrinhos underground (Comix) e o quadrinho autoral contemporâneo: a cultura de subversão do quadrinho independente americano dos anos 60. De Zap Comix a American Splendor e Raw (Crumb, Shelton, Spain, Pekar, Spiegleman, etc). O amadurecimento dos quadrinhos autorais a partir dos anos 80. Love and rockets e a revolução indie. Autores contemporâneos: Adrian Tomine, Alison Bechdel, Daniel Clowes, Charles Burns, Craig Thompson, etc.

Mais informações:

http://www.cultvideo.com.br

Spirit e a teoria do caos

Spirit e a teoria do caos

Em vários quadrinhos de Will Eisner, mas especialmente radiografado em sua obra-prima Avenida Dropsie, de 1995, há um fator de complexidade que faz emergir dois patamares de tessitura das histórias. Explico-me: em Dropsie, há um emaranhado incontável de fatores imprevisíveis – incêndios, guerras, suicídios, mortes acidentais, mercado imobiliário, etc , etc – além de outros mais facilmente calculáveis – levas de imigrantes, intolerância étnica, crescimento industrial, etc , etc – que fazem Eisner dirigir o sentido de um bairro em Nova York, de seu precoce estabelecimento no Séc. XIX até a sua ruína, afundada por crises financeiras, manipulações especulativas e invasão de sem-teto, no final do Séc. XX. O significado que o autor queria dar a isso é bastante claro num primeiro plano: as cidades, prédios e estabelecimentos em geral possuem uma história própria, uma trajetória que se assemelha de alguma forma à de um organismo vivo; um organismo formado pelos vivos. Daí sua vivificação do espaço, o uso dos quadros vazados ou sangrados (que fazem a HQ “respirar”), de sua preocupação em trazer vida também à estrutura espacial de formação da HQ como um todo, aproveitando tanto o espaço interno quanto externo dos quadrinhos

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Botando moral

Qual o limiar da moralidade nos comics?

O artigo de S. Seelow, “Frank Miller,Batman e o choque de civilizações”, publicado no Monde, (claro, sem querer) coloca uma questão interessante, diria mesmo de ordem, sobre o universo dos quadrinhos. Entre as polêmicas em torno do neo-conservadorismo de Miller, o autor achou por bem recorrer a um atalho, para dizer o mínimo, discutível: para explicar as reações negativas de fãs (note-se: desprezando as positivas) o texto afirma categoricamente que “o universo dos comics tem inspiração majoritariamente humanista e liberal”. Não sei bem o que quis dizer com “humanista”, mas o “liberal”, claramente é evocado num sentido meio pacifista, imoralista. Vindo de um jornal francês, ironicamente, vem-nos logo a lembrança, não direi do choque, mas de certo paralelismo entre duas subculturas bem conhecidas: a dos comics americanos e a das bandes dessinées franco-belgas (camada subliminar que me parece importante).

A pergunta que falta é a seguinte: entre os principais apelos do universo cultural norte-americano (e falo, evidentemente, não apenas dos quadrinhos) não está justamente seu moralismo fantasticamente (ia dizendo: fanaticamente) monolítico? “Heróis e vilões” (mocinhos e bandidos, diriam nossos pais, avós) simbiótica, surrealisticamente unidos, do espaço sideral ao velho oeste, até que a morte os separe...? A fórmula, claro, é bem ampla, mas no caso dos quadrinhos é preciso ir além; diria que não se trata apenas de uma forte característica mas da fórmula mais geral de seu sucesso e popularidade. Mesmo no cinema, provavelmente devido a seu público mais adulto, sempre houve um equilíbrio maior de gêneros e mensagens. Nos quadrinhos, dado seu papel semi-infantil ou semi-educativo, esse recurso tornou-se uma verdadeira norma formal, tudo o mais sendo “alternativo” (sintomático o surgimento, meio freudiano, dos quadrinhos de terror-erótico...?). Natural que essa tendência se manifestasse com força em solo puritano, certo?

Tex: típico herói americano?

Vamos com calma: 

Tex, herói típico americano é, na verdade, italiano. A atração exercida pelo ambiente desértico serve universalmente como pano de fundo, neutro, a-histórico, transcultural (como naqueles fundos nebulosos de J.-L. David), para o afirmação de uma ética simples, possível apenas num espaço ideal (versões urbanas: Gotham, Metropolis, etc.). É que o velho duelo do bem contra o mal, no fundo sabemos, não é uma bobagem. Bobagem é acreditar que ele é simples ou fácil. (Mesmo um ser-de-nada como Sartre visitou "o diabo e o bom Deus"). Um herói como o amnésico Ken Parker (meu favorito), mais dado a contradições, a mudar de lado, ora com índios, ora no exército, mesmo não repetindo o sucesso de Tex, buscava a tal da “verdade”. Diria que nos quadrinhos, mesmo quando isso não é o principal, permanece certa obrigatoriedade clássica de um chiaroscuro moral. Sendo assim, quem sabe, a exemplo da história da arte, haja certa vantagem em olhar o todo em termos de "clássico" e "anti-clássico".

David: ética simples, fundo simples

Heróis como Capitão América e Super-Homem, por exemplo, mantém esse apelo e parecem mesmo inviáveis sem ele (fórmula compatível com o cômico, com o ridicularizar-se a si próprio, pelo menos desde o final dos anos 80 com a Liga da Justiça, hoje consagrada no cinema com Os Vingadores - ia me esquecendo da série Batman, anos 60!). Anti-heróis como Justiceiro, Wolverine, e mesmo europeus como um Corto Maltese, um Blueberry, são só uns semi-Pilatos: guardam a estranha “mania” de serem bonzinhos. Pagam seu tributo a César. Os recordes de bilheteria dos filmes sobre heróis indicam que o seu simbolismo, o impulso de fazer a coisa certa, permanece vivo.

Certo, existem anti-heróis autênticos e de sucesso -- mais “anti” que “heróis” --, como Elektra (novamente Miller), Ranxerox, etc. O interessante é que são personagens "sem olhar", talvez mais artísticos, mas certamente menos (ou demasiado) humanos. Paira sobre esses quadrinhos uma espécie de nuvem negra de negação e contradição. Um classicista diria que são indispensáveis na medida que permitem renovar nosso gosto pelos clássicos.

Relatividade sem relativismo, moral sem moralismo... Os quadrinhos, atenção historiadores e sociólogos, educaram uma geração!

Elektra: anti-heroína autêntica

Peripécias de Laureline e Valerian

por Ciro I. Marcondes

Uma Pilote com Valerian na capa

Os anos 1960 viram uma intensa virada de paradigma na HQ francesa (BD) graças à publicação de uma revista que faria história, responsável tanto pela maximização do quadrinho de humor escrachado (gros nez), especialmente com Asterix, como pela sua superação, através de outros gêneros que foram tomando corpo e ganhando as páginas da revista, como o faroeste (Blueberry), a aviação (Tanguy e Leverdure), e a ficção científica (Lone Sloane). Autores geniais desta nova fase da BD franco-belga debutaram na Pilote: Bilal, Moebius, Charlier, Druillet, Godard, Lob, Pichard, etc. O gênero sci-fi, intimamente associado ao quadrinho barbárico (veremos), vai ganhar cada vez mais impulso e, no anos 1970, se glorifica com a publicação de Métal Hurlant, nascida das impossibilidades editoriais da Pilote, sendo uma revista com conteúdo de imaginação mais densa e filosófica, de qualidades lisérgicas, eróticas, um ápice. Mas isso é outra história.

Um dos principais quadrinhos da Pilote responsáveis por fazer esta ponte foi justamente a série Valerian, agente espaçotemporal (ou, na edição portuguesa a que tive acesso, agente espácio-temporal), escrita por Pierre Christin e ilustrada por Jean-Claude Mézières. Longe ainda do apelo transcendental das HQs de Druillet, Moebius ou Dionet, Valerian, publicada primeiramente em 1967, é fruto da mentalidade juvenil e transitória da revista. A saga deste simpático agente responsável por patrulhar o tempo e o espaço juntamente com sua namorada Laureline tem contornos mais space-opera, com a presença de grandes impérios galácticos (o da Terra, especialmente), aventuras cruzando o espaço sideral e a aparição de inúmeras culturas alienígenas, antropomórficas ou não, chegando até povos primitivos, barbáricos, pouco evoluídos, que precisam conviver com espécies capazes de construir tecnologias que parecem feitas de pura mágica. Nada que você não tenha visto em Star Wars, mas pensado antes disso.

A origem desse afã pela ficção científica e pela fantasia (e, especialmente, pelos dois juntos no mesmo espaço) certamente está ligada, primeiro, a uma tradição oriunda da sci-fi apocalíptica (Bradbury) e aventuresca (Asimov) da literatura americana dos anos 40 e 50, além dos pulps descartáveis com monstros radioativos e ETs invasores. Os franceses, além disso, tinham em seu imaginário infanto-juvenil a presença de Jules Verne, o que certamente delineou uma tradição de sci-fi em suas fileiras culturais. Por fim, eu suspeito que a mentalidade  new age surgida com o grande despertar da cultura jovem nos anos 60 tenha de alguma forma associado o gênero sci-fi a algum tipo de escrita por excelência da utopia, considerando que o gênero tem esse privilégio de poder ser arriscar literariamente em cenários e contingências radicais para se pensar as culturas humanas, sejam elas a do futuro distante, a do passado arquetípico ou a do sonho.

Laureline: cintura de pilão

A série Valerian, agente espaçotemporal tem longa trajetória (mais de 10 álbuns produzidos pela equipe original, além de ser publicada até hoje e ser base para uma série animada) e consagrou seus autores. Christin, especialmente, chegou a trabalhar com Uderzo e produziu histórias célebres ilustradas pelo lendário Enki Bilal. O volume de Valerian que me chegou em mãos, O embaixador das sombras, é português e foi editado pela Meribérica, tendo sido lançado originalmente pela Dargaud em 1975, pertencendo, portanto, à fase mais avançada do título.

Kafka para crianças

Ponto central: a legenda a descreve bem

Narrada com desenvoltura e toda elaborada no traço elegante, um tanto cartunesco, de Mézières, esta é uma HQ que, por mais que levante algumas pretensões mais inteligentes a respeito de ética e política, não se esquiva de ser um divertimento prioritariamente juvenil. Seja no seu traço lindamente infantilizado, ou no fato de se basear em uma tradição épica (de contar grandes histórias, cheias de peripécias), tudo em Valerian nos remete ao mesmo tempo ao auge da HQ clássica, na era ouro (coisas como Flash Gordon), e a um apontamento para o futuro da HQ francesa – a sci-fi metafísica de Métal Hurlant. A beleza de ler este elo perdido está justamente em voltar a um ágil imaginário de aventuras juvenis (como os livros de Lucky Starr, de Isaac Asimov) sem que elas nos enganem por serem simplesmente pueris. Valerian nos joga no mundo das crianças, mas nos respeitando como adultos, algo que as BDs fazem sem concorrente equiparável na HQ mundial.

Em O embaixador das sombras, Valerian, Laureline e um embaixador terrestre estão se dirigindo a “Ponto Central”, uma espécie de grande babilônia espacial, ao mesmo tempo estação e um aglomerado natural de centenas de culturas de diversas partes do universo que se refugiam por lá. O local é tão vasto e incompreendido que em suas galerias há várias zonas abandonadas, aquáticas ou mesmo não-mapeadas. Em uma espécie de “golpe de Estado”, tanto Valerian quanto o embaixador são sequestrados por uns tipos um tanto terroristas, e Laureline fica sozinha na imensidão de Ponto Central, tendo em mãos apenas um animal capaz de transmutar qualquer coisa em outra (“magicamente”) e como ajudante um paspalho oficial responsável pela recepção do embaixador.

Astúcia!

O embaixador das sombras é uma HQ muito versátil, dinâmica e engenhosa por uma série de fatores: em primeiro lugar, o protagonismo é revertido. Valerian, naturalmente, é o herói da série, com sua altivez suicida e blasé, à Corto Maltese, mas, neste volume, quem manda ver é Laureline – destinada a enfrentar uma multidão de alienígenas inescrupulosos, mercenários, muitas vezes lúbricos, até que possa resgatar os “frágeis” homens sequestrados. Mais uma vez fazendo jus à tradição épica que a BD resgata dos clássicos greco-latinos (Odisseia, Eneida, etc.) Laureline não tem outra opção a não ser sobrelevar a característica épica mais polivalente: a astúcia.

Os Shingouz

Como ágil diplomata e às vezes como sorrateira negociadora, ela vai atravessando um mar kafkiano de pistas em zonas cada vez mais perigosas até que possa obter o paradeiro de Valerian. Percebam: primeiro, ela negocia com os horripilantes e pouco confiáveis Shingouz, mistura de morcegos com tamanduás, que os levam até os Kamunik, centauros medievais dados a provações e testes de resistência, que os levam até os sórdidos e ameboides Suffus, que dominam o mundo dos prazeres e das fantasias, e os reconduzem até os libidinosos Bagoulins, que, por meio de alucinações, os fazem chegar até os Groubos, que se parecem com dinossauros aquáticos e andam junto com os Zuurs, águas-vivas capazes de travar contato telepático, e assim sucessivamente...

A cadeia kafkiana pela qual essa garota tem de passar (um pequeno calvário feminino), como se pode ver, é imensa e muito fértil na variedade tanto morfológica quanto cultural de alienígenas. Certamente Christian nutria imenso prazer nesta arte demiúrgica de criação de mundos, culturas e seres que inundam a ficção-científica e a fantasia como um todo, assemelhando-se a Borges no seu bestiário (O livro dos seres imaginários). Este prazer, o de criar e o de travar contato com novos mundos, fruto da especulação livre da imaginação, certamente é um dos trunfos destes dois gêneros, que se inserem nestas zonas libertárias da mente, nestas possibilidades de desamarração do cotidiano em coisas outras, que desimpedem princípios rigorosos de realidade e nos permitem almejar saltos em queda livre existencial. Daí, talvez, a presença dos dois gêneros misturados em obras híbridas, como a space opera ou space fantasy, como já vimos em Storm, O andarilho dos limbos, Agaragem hermética e, é claro, em Star Wars.

Os Suffus

Em O embaixador das sombras, o final não desmente essa lógica híbrida, essa fusão do arcaico com o futuro tecnológico (como se, urobóricos que somos, nosso futuro avançado necessariamente nos trouxesse de volta à nossa origem primitiva – uma coisa, assim, meio 2001, meio Nietzsche). Valerian estava, afinal de contas, em uma das últimas e mais escondidas portas de Ponto Central, onde uma sociedade selvagem, aparentemente aborígine, vivendo bucolicamente na praia há milhares de anos, detém o conhecimento sobre o universo.

Os Kamunik: onde a fantasia medieval se funde ao sci-fi

Bons selvagens?

Essa regressão rosseauniana, apesar de extremamente apressada (como todo tipo de transição em Valerian) coloca em choque as duas visões tradicionais da ficção-científica apresentadas a Laureline em suas peripécias: a da babilônia futurística e mágica, onde inexiste a ética e tudo é comprado através da subversão e da perversão (do alma, dos bens materiais, do corpo); e a do paraíso utópico em que, passados todos os estágios da civilização, retorna-se a um universo zen embrionário (como um útero ou um paraíso perdido), minimalista, de eterno retorno de todas as coisas. Se uma história tão simples é capaz de trazer um pouco de Homero, Kafka, Rousseau ou Nietzsche às crianças, não há porque se queixar das incoerências e trapalhadas narrativas que poderiam ser denunciadas nesta clássica BD.

Valerian pode ter envelhecido em vários aspectos, mas o entusiasmo juvenil de sua essência permanece intocado, e é isso que importa para que siga sendo lida.

HQ em um quadro: de volta às Tartarugas Ninja, por Peter Laird e Jim Lawson

Leonardo anuncia a morte de Mestre Splinter (Peter Laird, Jim Lawson, 2003): as HQs das Tartarugas Ninja fizeram grande sucesso ao tentar parodiar o estilo e índole violentas de Frank Miller em meados dos anos 80, e até hoje são algum objeto de culto (especialmente as primeiras), com muita gente considerando-as algo "sombrias", "violentas", "underground", "sérias", etc. Mesmo assim, o jeitão pop de coisa inocente e feita pra crianças que as criações de Peter Laird e Kevin Eastman atingiram com a super popularidade do desenho animado clássico (dos anos 90) e dos filmes fez com que muita gente jamais se interessasse por estas obscuras HQs. Incluindo eu mesmo. Até agora. Não que eu tenha efetivamente corrido atrás dos gibis originais, supostamente itens de colecionador nos dias de hoje, mas o acaso e a sensacional arte do ilustrador Jim Lawson acabaram fazendo com que as TMNT topassem com os olhos daqui da Raio Laser num sebo bastante maltrapilho ("Beco"?) de Porto Alegre. A estante de quadrinho era extensa, mas a grande maioria das coisas eram HQs em formato americano de todos os tipos, coisas lançadas no Brasil, X-Men, super-heróis, coisas assim. Já quase em estado de desistência diante de tanto material inócuo e sem graça, eis que vem aos meus olhos um primeiro plano chapadão de uma tartaruga ninja ostentando terrível expressão de constrangimento, com as placas do peitoral arranhadas - excelente ilustração - e o logotipo diretaço escrito logo acima: "TMNT". Achei tudo aquilo muito cool e, devido ao estado zero bala da revista, gastei uns 4 contos nela e em mais duas outras edições para sacar de qual era. Tratava-se (informei-me depois) de uma edição da quarta fase da revista, que tem publicações irregulares, com o cânone bastante interrompido (chateando os fãs), quase sempre publicado pela editora criada pelos autores originais, a Mirage Publishing (há uma fase, hoje apócrifa, publicada pela Image). O mais legal é que, a despeito de ser uma edição americana de 2003, o texto da HQ é de ninguém menos que um dos criadores dos mutantes, o gente boa Peter Laird. Laird, surpreendentemente, mesmo décadas depois, ainda leva jeito com a coisa, foi o que percebi. De leitura rápida, cheia de imagens silenciosas e quadrinização voraz que nos faz atravessar as páginas com volúpia de coisa pop bem feita, a inconclusa história desta edição número 10 traz dois plots que começavam em edições anteriores e terminam em posteriores, à tradicional maneira americana (criada pela Marvel, especificamente). O quadro que ilustra este post é o último da história, mas ele é precedido por sinais premonitórios, com algumas sequências inteligentes, sensíveis e bem-feitas do cotidiano do Mestre Splinter: o velho rato alimenta seu gato, passarinhos, toma chá, etc, no que parece uma casa de campo onde ele pode dedicar-se aos afazeres da idade avançada. 

Há uma certa beleza de um senso-comum-zen nestas sequências, de quadrinização delicada, efeitos de câmera lenta, zoom-out, grandes primeiros-planos e recursos que, por básicos que sejam, muitos iniciantes e até quadrinistas experientes simplesmente não dominam. Splinter passa a sofrer de algum mal interno (um ataque cardíaco? Um AVC?), e lentamente vamos sendo informados de que o sensei das tartarugas está a perecer. Eu não cheguei a ler a edição número 11, então não sei se Splinter efetivamente morre. Eu sei que poderia descobrir isso baixando a próxima edição na Internet, mas, de alguma maneira, prefiro ficar com o tom de epitáfio que se carrega nesta história, e com a trajetória peculiar do volume que eu adquiri no sebo. Sei que estes quadrinhos seriados tendem inevitavelmente a se estragarem, vítimas de seu próprio modelo de novela, e prefiro, neste caso, criar algum tipo de mitologia pessoal.  Esta edição não traz apenas este plot de Splinter, mas também outros que parecem traduzir bem o estilo contemporâneo de Laird: são coisas que misturam aliens com ficção científica, nanorrobótica, terrorismo digital, coisas da cultura contemporânea, firmada de maneira madura, específica, detalhada, geeky, para adolescentes inteligentes. Claro que, coroando a pequena sorte de ter topado inadvertidamente com esta edição, fica o que me chamou a atenção originalmente: a arte de Lawson é de um detalhismo esplêndido, toda angulosa, aproveitando ao máximo os requadros dinâmicos, elegantemente plasmados nas páginas, num preto-e-branco cheio de expressões caricatas, personagens com ótimo design e um apurado senso sobre como se fazer quadrinhos de aventura sem que eles sejam simplesmente horrendos ou ridículos. As tartarugas em si, vale lembrar, pouco aparecem na história, porque passam a diegese toda sedadas, mas despertam justamente nas últimas páginas para trazer um teor dramático, espécie de falha trágica, ao final da edição. O anúncio consternado de Leonardo, porta-voz do grupo, é o suficiente para mim: não tenho intenção de ler mais coisas das TMNT, já que esta experiência basta por esta vida. (CIM)