Horror à brasileira

por Ciro I. Marcondes

Revistas de terror brasileiro sempre me provocaram, desde a infância, um temor incômodo, inefável, de alguma maneira lovecraftiano: são páginas que perturbam a consciência antes mesmo de serem abertas. Como a menção do Necronomicon em Evil Dead, basta uma vislumbrada na capa para que um sujeito seja atormentado por noites e noites sem dormir. Como em Lovecraft, no meu imaginário, o terror destas revistas advinha daquilo que ocultavam, e não do que revelavam. Se, por acaso, de alguma forma eu quisesse abrir aquelas caixas de Pandora, um vislumbre de rabo de olho naquelas formas demoníacas, naqueles seres canibais, bestiais, e, talvez principalmente, naquela exótica e esotérica associação entre monstros, psicopatas, assassinatos e sacrifícios com mulheres belas e nuas, atos sexuais selvagens e toda forma de erotismo, tudo aquilo era capaz de criar uma paradoxal relação de temor absoluto com fascínio, atração, talvez obscura lascívia. 

O terror no quadrinho brasileiro data especialmente (mas não só) dos anos 50, e teve longo reinado. Foram dezenas (talvez centenas) as publicações nacionais dedicadas ao gênero, que teve seu auge nos anos 60 e 70. Vale registrar as revistas Sobrenatural, Pesadelo, Calafrio, Mestres do terror, além da própria Spektro, que é tema deste texto. No início, houve a importação de material vagabundo americano (o exímio material da EC só veio a aparecer por aqui nos anos 90), que também estava em voga até a caça às bruxas de meados dos anos 50, em títulos como Terror Negro, Gato Preto e Sobrenatural. Depois, com a censura do material americano promovida pela campanha de Wertham, o material estrangeiro deu uma refugada, o que permitiu que se abrissem as portas ao material nacional e seus clássicos autores, muitos deles estrangeiros radicados no Brasil, como Rodolfo Zalla, Jayme Cortez, Eugênio Colonnese e Nico Rosso. Históricos ilustradores brasileiros despontaram: Flávio Colin, Júlio Shimamoto, Ofeliano. A história é muito longa e cheia de desdobramentos para ser contada aqui. O que importa é que em 1977 estreia, pela editora Vecchi, Spektro – a revista do terror, e, em 2013, uma Spektro veio parar em minhas mãos. Nas palavras do mestre Moacy Cirne: “A revista Spektro, enquanto foi publicada, constituiu-se, a partir do número 2, em nossa principal publicação de terror, desde os tempos heroicos da Editora Outubro”.

A capa: desenho de Ofeliano

A edição número 15 de Spektro (de 1980) me trouxe a oportunidade de abrir a velha caixa de Pandora e me defrontar com aquela curiosidade auspiciosa despertada em mim por estes quadrinhos na infância. Os temas continuam aterradores. As visões, passados anos, ainda perturbadoras. São todo tipo de demônios, pactos sangrentos, mortes perturbadoras, rituais de sexo e sangue, e até curiosidades como um conto obscuro de Balzac e uma história sci-fi ilustrada por ninguém menos que John Byrne! Nem tudo de primeira. Muito material é claudicante, sem ritmo narrativo, com finais abruptos e forçados, arte primária, coisas muito gore e desnecessárias. Mesmo assim, vale lembrar uma história de demônios esotéricos, tirada de cordel, ilustrada por um jovem e promissor Watson Portela; um clássico de “cangaceiros do inferno”, por Gustavo Augusto e Antonino Homobono; e um monstruoso conto de seres reptilianos, por Fernando Silva.

Spektro e os espelhos

Porém, o que me motivou a escrever este texto foi certamente a história que abre a edição, chamada “A casa dos espelhos”, não apenas por reunir quase uma espécie de dream team do quadrinho brasileiro de terror, mas por referenciar um tema de fortes conotações metafísicas, de macabro horror psicológico, ligando, sob uma mesma teia, coisas como visões infernais especulares, suicídios, orgias e guerras. Aqui, mais distante do compêndio trash/gore/erótico que caracteriza as outras histórias, encontramos um verdadeiro aprofundamento na fisiologia e psicologia primárias do terror. 

Um jovem e macabro Watson Portela

Supostamente baseada nos relatos jornalísticos (verdadeiros... e sabotados) do misterioso Jonas Beltron, que “era escalado pelo editor do extinto jornal ‘A noite em notícias’ para cobrir os mais fantásticos casos sobrenaturais” (segundo o clássico editor da Spektro, Otacílio d’Assunção, o velho Ota), “A casa dos espelhos” é um mosaico de histórias insólitas envolvendo interessante moldura: o próprio Jonas Beltron aparece como personagem para visitar uma sombria mansão com salões e quartos obsessivamente recobertos por espelhos, carregada de um passado com inquilinos sombrios, com o objetivo de entrevistar o único morador sobrevivente – o caquético mordomo Juvêncio.

O texto da HQ é de Basílio de Almeida, e ela é ilustrada por Shimamoto (na sequências da moldura), Watson Portela, Flávio Colin e H. Yoshinobu (aparentemente, um pseudônimo do próprio Shima). Em todas as terríveis histórias relatadas pelo mordomo, a presença dos espelhos surte um efeito diferente, revelando um aspecto novo como possibilidade de representação do terror. Na primeira, desenhada por Watson, por exemplo, emerge o aspecto sobrenatural, quando nos é apresentado o casal que construiu a casa: um magnata do comércio e “uma mulher vaidosa e narcisista que teve a ideia dos espelhos”. A história se torna lúgubre e ao mesmo tempo exoticamente atraente quando a vaidosa esposa, abandonada sexualmente pelo impotente marido, passa a buscar saciação com uma criatura demoníaca, de aspecto felino, que atravessa os espelhos para sugar seu sangue e fazer sexo com ela. 

O espelho: fragmentador da subjetividade

A menção, no texto da HQ, a uma mulher “narcisista”, por pulp que seja, não aparece à toa. O contato com o espelho, construtor de um mundo simbólico e outro imaginário, segundo a psicanálise de Jacques Lacan, é o que fabrica, na primeira infância, nossa identidade narcísica, aquilo que nos constitui enquanto fantasia de sujeito. A mesma imagem especular, prismada em fantasmas e doppelgangers (duplos de nós mesmos no mundo) será responsável mais tarde não por nos unificar, mas por fragmentar nossa consciência, trazendo à tona o medo da morte, do esfacelamento da identidade e da subjetividade. A figura de um duplo, tão bem representada em qualquer espelho, será não mais um signo de configuração de nossa presença no mundo, mas um aviso terrível de nossa desintegração. Um mesmo dispositivo é acionado para nossa pulsão de vida (Eros) e de morte (Thanatos), e daí certamente vem a associação tão comum entre o terror e o erotismo: ela revela a relação íntima entre nosso instinto de criar e destruir, de amar e matar, como lados de uma mesma moeda. 

O virtuosismo de Shimamoto

Os outros “causos” de “Casa dos espelhos” corroboram estas ideias. E com bônus: se a arte de Watson Portela é ainda muito primária e com pouca mobilidade na primeira história, na segunda, desenhada pelo tal “Yoshinobu” (nome do meio de Shimamoto), temos acesso a uma arte de terrível (no bom sentido) expressionismo, com ângulos virtuosos e um riscado diagonal, aproveitando o ciaroscuro, que tornaram célebres os desenhos do nosso ilustrador de origem japonesa. Também a história ganha em densidade dramática, quando acompanhamos um outro morador da casa, refugiado da segunda guerra e ex-colaborador nazista, que precisa injetar drogas na veia para poder dar vazão a bad trips escapistas, torturantes e avassaladoras. Já sem a afetação do espelho como passagem para um duplo maligno e diabólico, aqui a tensão se dá entre a solidão claustrofóbica do junkie e a reverberação de suas alucinações no espelho. Shima usa hiper-closes, zoom, vortex e diversos recursos gráficos diferentes para detalhar com exuberância o enclausuramento macabro do colaborador, que acaba se suicidando no final. 

Os playboys dos episódio de Colin

A cereja do bolo, no entanto, fica por conta de “Juventude transviada”, o capítulo de “A casa dos espelhos” ilustrado pelo magnífico Flávio Colin. Para quem ainda não conhece, Colin é um dos mais frutíferos e inovadores ilustradores brasileiros de todos os tempos, tendo atuado até os anos 2000. Seu estilo, icônico, pendendo ao cartunesco, é inconfundível, tendo sido pioneiro em uma época em que o realismo figurativista estava muito mais em voga nos quadrinhos. Não à toa, pode-se dizer que ele se adianta a desenhistas como Mike Mignola ou Mike Allred no sentido de verter os quadrinhos para um patamar mais minimalista. Seu capítulo em “Casa dos espelhos” é também um dos mais brutais: a casa, desta vez, é alugada por um grupo de playboys que passam noites fazendo orgias de sexo e drogas dentro do salão principal da casa, até que um deles começa a surtar e comete um assassinato à queima-roupa. Este acontecimento leva a uma série de outras atrocidades, incluindo roletas russas e torturas, até que todos na casa estejam devidamente mortos no momento em que são encontrados pelo porteiro Juvêncio. O tratamento do roteiro, por mais que peque um pouco no quesito do moralismo, é absolutamente frio e observacional, transformando a experiência, para o leitor, em algo ao mesmo tempo voyeurístico e perverso.

Colin: estilo minimalista

A assombrosa maturidade destas histórias me leva a pensar na imensa quantidade de outras boas publicações em quadrinhos que estão perdidas por aí, décadas depois de sua edição original, sem oportunidade de serem lidas pelo cada vez mais assíduo público leitor de quadrinhos no Brasil. Fica claro que precisamos urgentemente de republicação deste material, em impressões e papel de qualidade devida. Em uma só história encontramos elementos do horror metafísico, do horror do sexo, do horror da guerra, do horror do vício, do horror bestial da juventude e do horror do autorreconhecimento. Não faltava originalidade de ideias, nem um approach artístico e nem uma estética propriamente dita a estes quadrinhos. De alguma forma, a ideia do espelho fica aqui para lembrarmos que precisamos reconstruir a imagem e a história das nossas publicações e traçar enfim uma genealogia da trajetória das nossas HQs, com tudo em catálogo e em boa qualidade, como nunca deveria ter deixado de ser.

Roleta russa

CURSO HISTÓRIA DOS QUADRINHOS: TRAJETÓRIA DE UMA ARTE SEQUENCIAL


Ministrado pelos criadores de RAIO LASER

PROGRAMA DO CURSO

EMENTA:

As histórias em quadrinhos têm como marco inaugural uma publicação de 1895, mesmo ano da primeira exibição cinematográfica pública, realizada pelos irmãos Lumière. Elas se inserem na história e na cultura do século XX como um fenômeno de grande influência social e aceitação popular, lentamente requisitando seu lugar no universo das artes. Meio de alta maleabilidade e possibilidades expressivas, os quadrinhos se adaptam a todo gênero de modalidades narrativas: do horror à comédia. Da sátira social ao abstracionismo. Da contracultura à autobiografia. Da fantasia à política. O objetivo deste curso é percorrer um pouco da história desta mídia, em geografias distintas, abarcando também uma introdução à teoria dos quadrinhos.
PROFESSORES:

Ciro I. Marcondes é professor, crítico e pesquisador de Histórias em Quadrinhos e Cinema. Foi professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, do curso de Cinema do IESB e de Audiovisual no Unicesp. Atualmente cursa doutorado em Comunicação no PPG-FAC da UnB, na linha Imagem e Som. É mestre em Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB). Possui graduação em Letras – Português pela Universidade de Brasília. É o editor do site www.raiolaser.net, especializado em crítica de Histórias em Quadrinhos. Participou da tradução do livro "A Narrativa Cinematográfica", de François Jost e André Gaudreault (Editora da UnB). Produziu verbetes para o "Dicionário de Comunicação" (Ed. Paulus) e produziu o curso "História do Cinema Mundial", em oito módulos, juntamente à UnB e ao GDF. Já ministrou cursos como “História do Cinema”, “Crítica de cinema e análise fílmica”, “Hitchcock e a ilusão do cinema”, “Cinema e filosofia”, para o Espaço Cult, Centro Cultural Banco do Brasil e Espaço Varanda.

Pedro Brandt, jornalista brasiliense formado pela Universidade Católica de Brasília, 31 anos, passou pela editoria de cultura dos jornais Tribuna do Brasil (2005-2007), Jornal de Brasília (2007-2008) e Correio Braziliense (2008-2012), nas quais escreveu sobre diversos assuntos, com destaque para música e histórias em quadrinhos. Produziu e apresentou durante cinco anos (2006-2011), junto com Fernando Rosa, o programa Senhor F, na Rádio Cultura FM de Brasília, com enfoque diferenciado nos clássicos, obscuridades e novidades do rock. Pedro também é produtor eventual de shows e estreia em breve seu selo discográfico, Discos Além. Escreve regularmente para o site especializado em quadrinhos Raio Laser.
CRONOGRAMA:

Aula 01 (07/10) - O surgimento dos quadrinhos + primeiros quadrinhos: ainda no século XIX, os quadrinhos despontaram como mídia influente, industrializada, de conteúdo anárquico e politicamente incorreto. Krazy Kat; Little Nemo; Mutt and Jeff; O menino amarelo. Os funnies e a popularidade das family strips.

Aula 02 (09/10) - Era de ouro americana + o quadrinho de horror (período clássico): a era clássica dos quadrinhos e a ascensão do heroísmo (Flash Gordon, Tarzan, Príncipe Valente, Dick Tracy). A criação do comic book e do super-heróis (Superman; Batman). Will Eisner e Spirit. A popularidade da EC Comics e dos quadrinhos de horror, guerra e ficção científica. O código de censura e o fim da era de ouro.

Aula 03 (14/10) - A cultura da BD e o quadrinho francobelga: os quadrinhos de tradição francófona em duas frentes. A rivalidade entre as revistas Spirou e Tintin e o quadrinho de humor (gros nez e linha clara). Jerry Spring, Lucky Luke, Spirou, Tintim, Asterix, Gaston Lagaffe. O quadrinho adulto francobelga a partir das revistas Pilote e Métal Hurlant. Autores: Dionet, Moebius, Druillet, Lob, Bilal, Jodorowsky, Tardi, etc.

Aula 04 (16/10) – O quadrinho italiano (fumetti) + o quadrinho japonês (mangá): introdução à cultura de HQ pulp das bancas italianas com faroeste (Tex, Ken Parker, Mágico Vento), aventura e horror (Martin Mistere, Dylan Dog, J. Kendall). O quadrinho autoral italiano: Crepax, Manara, Serpieri, Magnus, Liberatori, Tamburini). A cultura de quadrinhos japonesa em seus âmbitos histórico, social, industrial. Mangás e gekigás. Autores: Osamu Tezuka, Hayao Miiazaki, Katsuhiro Otomo, Suehiro Maruo, Yoshihiro Tatsumi.

Aula 05 (21/10) – O super-herói das eras de prata e bronze + O quadrinho nacional: o retorno à cultura de super-heróis a partir da ascensão da Marvel nos anos 1960. Stan Lee, Jack Kirby, Steve Ditko, John Buscema, etc. O dilema do herói na era do Vietnã e no flower power. O amadurecimento dos super-heróis no final dos anos 80 e o surgimento do anti-herói: Frank Miller, Grant Morrison, Neil Gaiman, Brian Bolland, Dave Gibbons. A trajetória do quadrinho brasileiro, desde os primórdios (Angelo Agostini a Tico-tico) até nomes históricos como Maurício, Ziraldo, Henfil, Angeli, Laerte, Glauco, Mozart Couto, Shimamoto, Colin, chegando à contemporaneidade.

Aula 06 (23/10) – Os quadrinhos underground (Comix) e o quadrinho autoral contemporâneo: a cultura de subversão do quadrinho independente americano dos anos 60. De Zap Comix a American Splendor e Raw (Crumb, Shelton, Spain, Pekar, Spiegleman, etc). O amadurecimento dos quadrinhos autorais a partir dos anos 80. Love and rockets e a revolução indie. Autores contemporâneos: Adrian Tomine, Alison Bechdel, Daniel Clowes, Charles Burns, Craig Thompson, etc.

Mais informações:

http://www.cultvideo.com.br

Spirit e a teoria do caos

Spirit e a teoria do caos

Em vários quadrinhos de Will Eisner, mas especialmente radiografado em sua obra-prima Avenida Dropsie, de 1995, há um fator de complexidade que faz emergir dois patamares de tessitura das histórias. Explico-me: em Dropsie, há um emaranhado incontável de fatores imprevisíveis – incêndios, guerras, suicídios, mortes acidentais, mercado imobiliário, etc , etc – além de outros mais facilmente calculáveis – levas de imigrantes, intolerância étnica, crescimento industrial, etc , etc – que fazem Eisner dirigir o sentido de um bairro em Nova York, de seu precoce estabelecimento no Séc. XIX até a sua ruína, afundada por crises financeiras, manipulações especulativas e invasão de sem-teto, no final do Séc. XX. O significado que o autor queria dar a isso é bastante claro num primeiro plano: as cidades, prédios e estabelecimentos em geral possuem uma história própria, uma trajetória que se assemelha de alguma forma à de um organismo vivo; um organismo formado pelos vivos. Daí sua vivificação do espaço, o uso dos quadros vazados ou sangrados (que fazem a HQ “respirar”), de sua preocupação em trazer vida também à estrutura espacial de formação da HQ como um todo, aproveitando tanto o espaço interno quanto externo dos quadrinhos

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Botando moral

Qual o limiar da moralidade nos comics?

O artigo de S. Seelow, “Frank Miller,Batman e o choque de civilizações”, publicado no Monde, (claro, sem querer) coloca uma questão interessante, diria mesmo de ordem, sobre o universo dos quadrinhos. Entre as polêmicas em torno do neo-conservadorismo de Miller, o autor achou por bem recorrer a um atalho, para dizer o mínimo, discutível: para explicar as reações negativas de fãs (note-se: desprezando as positivas) o texto afirma categoricamente que “o universo dos comics tem inspiração majoritariamente humanista e liberal”. Não sei bem o que quis dizer com “humanista”, mas o “liberal”, claramente é evocado num sentido meio pacifista, imoralista. Vindo de um jornal francês, ironicamente, vem-nos logo a lembrança, não direi do choque, mas de certo paralelismo entre duas subculturas bem conhecidas: a dos comics americanos e a das bandes dessinées franco-belgas (camada subliminar que me parece importante).

A pergunta que falta é a seguinte: entre os principais apelos do universo cultural norte-americano (e falo, evidentemente, não apenas dos quadrinhos) não está justamente seu moralismo fantasticamente (ia dizendo: fanaticamente) monolítico? “Heróis e vilões” (mocinhos e bandidos, diriam nossos pais, avós) simbiótica, surrealisticamente unidos, do espaço sideral ao velho oeste, até que a morte os separe...? A fórmula, claro, é bem ampla, mas no caso dos quadrinhos é preciso ir além; diria que não se trata apenas de uma forte característica mas da fórmula mais geral de seu sucesso e popularidade. Mesmo no cinema, provavelmente devido a seu público mais adulto, sempre houve um equilíbrio maior de gêneros e mensagens. Nos quadrinhos, dado seu papel semi-infantil ou semi-educativo, esse recurso tornou-se uma verdadeira norma formal, tudo o mais sendo “alternativo” (sintomático o surgimento, meio freudiano, dos quadrinhos de terror-erótico...?). Natural que essa tendência se manifestasse com força em solo puritano, certo?

Tex: típico herói americano?

Vamos com calma: 

Tex, herói típico americano é, na verdade, italiano. A atração exercida pelo ambiente desértico serve universalmente como pano de fundo, neutro, a-histórico, transcultural (como naqueles fundos nebulosos de J.-L. David), para o afirmação de uma ética simples, possível apenas num espaço ideal (versões urbanas: Gotham, Metropolis, etc.). É que o velho duelo do bem contra o mal, no fundo sabemos, não é uma bobagem. Bobagem é acreditar que ele é simples ou fácil. (Mesmo um ser-de-nada como Sartre visitou "o diabo e o bom Deus"). Um herói como o amnésico Ken Parker (meu favorito), mais dado a contradições, a mudar de lado, ora com índios, ora no exército, mesmo não repetindo o sucesso de Tex, buscava a tal da “verdade”. Diria que nos quadrinhos, mesmo quando isso não é o principal, permanece certa obrigatoriedade clássica de um chiaroscuro moral. Sendo assim, quem sabe, a exemplo da história da arte, haja certa vantagem em olhar o todo em termos de "clássico" e "anti-clássico".

David: ética simples, fundo simples

Heróis como Capitão América e Super-Homem, por exemplo, mantém esse apelo e parecem mesmo inviáveis sem ele (fórmula compatível com o cômico, com o ridicularizar-se a si próprio, pelo menos desde o final dos anos 80 com a Liga da Justiça, hoje consagrada no cinema com Os Vingadores - ia me esquecendo da série Batman, anos 60!). Anti-heróis como Justiceiro, Wolverine, e mesmo europeus como um Corto Maltese, um Blueberry, são só uns semi-Pilatos: guardam a estranha “mania” de serem bonzinhos. Pagam seu tributo a César. Os recordes de bilheteria dos filmes sobre heróis indicam que o seu simbolismo, o impulso de fazer a coisa certa, permanece vivo.

Certo, existem anti-heróis autênticos e de sucesso -- mais “anti” que “heróis” --, como Elektra (novamente Miller), Ranxerox, etc. O interessante é que são personagens "sem olhar", talvez mais artísticos, mas certamente menos (ou demasiado) humanos. Paira sobre esses quadrinhos uma espécie de nuvem negra de negação e contradição. Um classicista diria que são indispensáveis na medida que permitem renovar nosso gosto pelos clássicos.

Relatividade sem relativismo, moral sem moralismo... Os quadrinhos, atenção historiadores e sociólogos, educaram uma geração!

Elektra: anti-heroína autêntica

Peripécias de Laureline e Valerian

por Ciro I. Marcondes

Uma Pilote com Valerian na capa

Os anos 1960 viram uma intensa virada de paradigma na HQ francesa (BD) graças à publicação de uma revista que faria história, responsável tanto pela maximização do quadrinho de humor escrachado (gros nez), especialmente com Asterix, como pela sua superação, através de outros gêneros que foram tomando corpo e ganhando as páginas da revista, como o faroeste (Blueberry), a aviação (Tanguy e Leverdure), e a ficção científica (Lone Sloane). Autores geniais desta nova fase da BD franco-belga debutaram na Pilote: Bilal, Moebius, Charlier, Druillet, Godard, Lob, Pichard, etc. O gênero sci-fi, intimamente associado ao quadrinho barbárico (veremos), vai ganhar cada vez mais impulso e, no anos 1970, se glorifica com a publicação de Métal Hurlant, nascida das impossibilidades editoriais da Pilote, sendo uma revista com conteúdo de imaginação mais densa e filosófica, de qualidades lisérgicas, eróticas, um ápice. Mas isso é outra história.

Um dos principais quadrinhos da Pilote responsáveis por fazer esta ponte foi justamente a série Valerian, agente espaçotemporal (ou, na edição portuguesa a que tive acesso, agente espácio-temporal), escrita por Pierre Christin e ilustrada por Jean-Claude Mézières. Longe ainda do apelo transcendental das HQs de Druillet, Moebius ou Dionet, Valerian, publicada primeiramente em 1967, é fruto da mentalidade juvenil e transitória da revista. A saga deste simpático agente responsável por patrulhar o tempo e o espaço juntamente com sua namorada Laureline tem contornos mais space-opera, com a presença de grandes impérios galácticos (o da Terra, especialmente), aventuras cruzando o espaço sideral e a aparição de inúmeras culturas alienígenas, antropomórficas ou não, chegando até povos primitivos, barbáricos, pouco evoluídos, que precisam conviver com espécies capazes de construir tecnologias que parecem feitas de pura mágica. Nada que você não tenha visto em Star Wars, mas pensado antes disso.

A origem desse afã pela ficção científica e pela fantasia (e, especialmente, pelos dois juntos no mesmo espaço) certamente está ligada, primeiro, a uma tradição oriunda da sci-fi apocalíptica (Bradbury) e aventuresca (Asimov) da literatura americana dos anos 40 e 50, além dos pulps descartáveis com monstros radioativos e ETs invasores. Os franceses, além disso, tinham em seu imaginário infanto-juvenil a presença de Jules Verne, o que certamente delineou uma tradição de sci-fi em suas fileiras culturais. Por fim, eu suspeito que a mentalidade  new age surgida com o grande despertar da cultura jovem nos anos 60 tenha de alguma forma associado o gênero sci-fi a algum tipo de escrita por excelência da utopia, considerando que o gênero tem esse privilégio de poder ser arriscar literariamente em cenários e contingências radicais para se pensar as culturas humanas, sejam elas a do futuro distante, a do passado arquetípico ou a do sonho.

Laureline: cintura de pilão

A série Valerian, agente espaçotemporal tem longa trajetória (mais de 10 álbuns produzidos pela equipe original, além de ser publicada até hoje e ser base para uma série animada) e consagrou seus autores. Christin, especialmente, chegou a trabalhar com Uderzo e produziu histórias célebres ilustradas pelo lendário Enki Bilal. O volume de Valerian que me chegou em mãos, O embaixador das sombras, é português e foi editado pela Meribérica, tendo sido lançado originalmente pela Dargaud em 1975, pertencendo, portanto, à fase mais avançada do título.

Kafka para crianças

Ponto central: a legenda a descreve bem

Narrada com desenvoltura e toda elaborada no traço elegante, um tanto cartunesco, de Mézières, esta é uma HQ que, por mais que levante algumas pretensões mais inteligentes a respeito de ética e política, não se esquiva de ser um divertimento prioritariamente juvenil. Seja no seu traço lindamente infantilizado, ou no fato de se basear em uma tradição épica (de contar grandes histórias, cheias de peripécias), tudo em Valerian nos remete ao mesmo tempo ao auge da HQ clássica, na era ouro (coisas como Flash Gordon), e a um apontamento para o futuro da HQ francesa – a sci-fi metafísica de Métal Hurlant. A beleza de ler este elo perdido está justamente em voltar a um ágil imaginário de aventuras juvenis (como os livros de Lucky Starr, de Isaac Asimov) sem que elas nos enganem por serem simplesmente pueris. Valerian nos joga no mundo das crianças, mas nos respeitando como adultos, algo que as BDs fazem sem concorrente equiparável na HQ mundial.

Em O embaixador das sombras, Valerian, Laureline e um embaixador terrestre estão se dirigindo a “Ponto Central”, uma espécie de grande babilônia espacial, ao mesmo tempo estação e um aglomerado natural de centenas de culturas de diversas partes do universo que se refugiam por lá. O local é tão vasto e incompreendido que em suas galerias há várias zonas abandonadas, aquáticas ou mesmo não-mapeadas. Em uma espécie de “golpe de Estado”, tanto Valerian quanto o embaixador são sequestrados por uns tipos um tanto terroristas, e Laureline fica sozinha na imensidão de Ponto Central, tendo em mãos apenas um animal capaz de transmutar qualquer coisa em outra (“magicamente”) e como ajudante um paspalho oficial responsável pela recepção do embaixador.

Astúcia!

O embaixador das sombras é uma HQ muito versátil, dinâmica e engenhosa por uma série de fatores: em primeiro lugar, o protagonismo é revertido. Valerian, naturalmente, é o herói da série, com sua altivez suicida e blasé, à Corto Maltese, mas, neste volume, quem manda ver é Laureline – destinada a enfrentar uma multidão de alienígenas inescrupulosos, mercenários, muitas vezes lúbricos, até que possa resgatar os “frágeis” homens sequestrados. Mais uma vez fazendo jus à tradição épica que a BD resgata dos clássicos greco-latinos (Odisseia, Eneida, etc.) Laureline não tem outra opção a não ser sobrelevar a característica épica mais polivalente: a astúcia.

Os Shingouz

Como ágil diplomata e às vezes como sorrateira negociadora, ela vai atravessando um mar kafkiano de pistas em zonas cada vez mais perigosas até que possa obter o paradeiro de Valerian. Percebam: primeiro, ela negocia com os horripilantes e pouco confiáveis Shingouz, mistura de morcegos com tamanduás, que os levam até os Kamunik, centauros medievais dados a provações e testes de resistência, que os levam até os sórdidos e ameboides Suffus, que dominam o mundo dos prazeres e das fantasias, e os reconduzem até os libidinosos Bagoulins, que, por meio de alucinações, os fazem chegar até os Groubos, que se parecem com dinossauros aquáticos e andam junto com os Zuurs, águas-vivas capazes de travar contato telepático, e assim sucessivamente...

A cadeia kafkiana pela qual essa garota tem de passar (um pequeno calvário feminino), como se pode ver, é imensa e muito fértil na variedade tanto morfológica quanto cultural de alienígenas. Certamente Christian nutria imenso prazer nesta arte demiúrgica de criação de mundos, culturas e seres que inundam a ficção-científica e a fantasia como um todo, assemelhando-se a Borges no seu bestiário (O livro dos seres imaginários). Este prazer, o de criar e o de travar contato com novos mundos, fruto da especulação livre da imaginação, certamente é um dos trunfos destes dois gêneros, que se inserem nestas zonas libertárias da mente, nestas possibilidades de desamarração do cotidiano em coisas outras, que desimpedem princípios rigorosos de realidade e nos permitem almejar saltos em queda livre existencial. Daí, talvez, a presença dos dois gêneros misturados em obras híbridas, como a space opera ou space fantasy, como já vimos em Storm, O andarilho dos limbos, Agaragem hermética e, é claro, em Star Wars.

Os Suffus

Em O embaixador das sombras, o final não desmente essa lógica híbrida, essa fusão do arcaico com o futuro tecnológico (como se, urobóricos que somos, nosso futuro avançado necessariamente nos trouxesse de volta à nossa origem primitiva – uma coisa, assim, meio 2001, meio Nietzsche). Valerian estava, afinal de contas, em uma das últimas e mais escondidas portas de Ponto Central, onde uma sociedade selvagem, aparentemente aborígine, vivendo bucolicamente na praia há milhares de anos, detém o conhecimento sobre o universo.

Os Kamunik: onde a fantasia medieval se funde ao sci-fi

Bons selvagens?

Essa regressão rosseauniana, apesar de extremamente apressada (como todo tipo de transição em Valerian) coloca em choque as duas visões tradicionais da ficção-científica apresentadas a Laureline em suas peripécias: a da babilônia futurística e mágica, onde inexiste a ética e tudo é comprado através da subversão e da perversão (do alma, dos bens materiais, do corpo); e a do paraíso utópico em que, passados todos os estágios da civilização, retorna-se a um universo zen embrionário (como um útero ou um paraíso perdido), minimalista, de eterno retorno de todas as coisas. Se uma história tão simples é capaz de trazer um pouco de Homero, Kafka, Rousseau ou Nietzsche às crianças, não há porque se queixar das incoerências e trapalhadas narrativas que poderiam ser denunciadas nesta clássica BD.

Valerian pode ter envelhecido em vários aspectos, mas o entusiasmo juvenil de sua essência permanece intocado, e é isso que importa para que siga sendo lida.

HQ em um quadro: de volta às Tartarugas Ninja, por Peter Laird e Jim Lawson

Leonardo anuncia a morte de Mestre Splinter (Peter Laird, Jim Lawson, 2003): as HQs das Tartarugas Ninja fizeram grande sucesso ao tentar parodiar o estilo e índole violentas de Frank Miller em meados dos anos 80, e até hoje são algum objeto de culto (especialmente as primeiras), com muita gente considerando-as algo "sombrias", "violentas", "underground", "sérias", etc. Mesmo assim, o jeitão pop de coisa inocente e feita pra crianças que as criações de Peter Laird e Kevin Eastman atingiram com a super popularidade do desenho animado clássico (dos anos 90) e dos filmes fez com que muita gente jamais se interessasse por estas obscuras HQs. Incluindo eu mesmo. Até agora. Não que eu tenha efetivamente corrido atrás dos gibis originais, supostamente itens de colecionador nos dias de hoje, mas o acaso e a sensacional arte do ilustrador Jim Lawson acabaram fazendo com que as TMNT topassem com os olhos daqui da Raio Laser num sebo bastante maltrapilho ("Beco"?) de Porto Alegre. A estante de quadrinho era extensa, mas a grande maioria das coisas eram HQs em formato americano de todos os tipos, coisas lançadas no Brasil, X-Men, super-heróis, coisas assim. Já quase em estado de desistência diante de tanto material inócuo e sem graça, eis que vem aos meus olhos um primeiro plano chapadão de uma tartaruga ninja ostentando terrível expressão de constrangimento, com as placas do peitoral arranhadas - excelente ilustração - e o logotipo diretaço escrito logo acima: "TMNT". Achei tudo aquilo muito cool e, devido ao estado zero bala da revista, gastei uns 4 contos nela e em mais duas outras edições para sacar de qual era. Tratava-se (informei-me depois) de uma edição da quarta fase da revista, que tem publicações irregulares, com o cânone bastante interrompido (chateando os fãs), quase sempre publicado pela editora criada pelos autores originais, a Mirage Publishing (há uma fase, hoje apócrifa, publicada pela Image). O mais legal é que, a despeito de ser uma edição americana de 2003, o texto da HQ é de ninguém menos que um dos criadores dos mutantes, o gente boa Peter Laird. Laird, surpreendentemente, mesmo décadas depois, ainda leva jeito com a coisa, foi o que percebi. De leitura rápida, cheia de imagens silenciosas e quadrinização voraz que nos faz atravessar as páginas com volúpia de coisa pop bem feita, a inconclusa história desta edição número 10 traz dois plots que começavam em edições anteriores e terminam em posteriores, à tradicional maneira americana (criada pela Marvel, especificamente). O quadro que ilustra este post é o último da história, mas ele é precedido por sinais premonitórios, com algumas sequências inteligentes, sensíveis e bem-feitas do cotidiano do Mestre Splinter: o velho rato alimenta seu gato, passarinhos, toma chá, etc, no que parece uma casa de campo onde ele pode dedicar-se aos afazeres da idade avançada. 

Há uma certa beleza de um senso-comum-zen nestas sequências, de quadrinização delicada, efeitos de câmera lenta, zoom-out, grandes primeiros-planos e recursos que, por básicos que sejam, muitos iniciantes e até quadrinistas experientes simplesmente não dominam. Splinter passa a sofrer de algum mal interno (um ataque cardíaco? Um AVC?), e lentamente vamos sendo informados de que o sensei das tartarugas está a perecer. Eu não cheguei a ler a edição número 11, então não sei se Splinter efetivamente morre. Eu sei que poderia descobrir isso baixando a próxima edição na Internet, mas, de alguma maneira, prefiro ficar com o tom de epitáfio que se carrega nesta história, e com a trajetória peculiar do volume que eu adquiri no sebo. Sei que estes quadrinhos seriados tendem inevitavelmente a se estragarem, vítimas de seu próprio modelo de novela, e prefiro, neste caso, criar algum tipo de mitologia pessoal.  Esta edição não traz apenas este plot de Splinter, mas também outros que parecem traduzir bem o estilo contemporâneo de Laird: são coisas que misturam aliens com ficção científica, nanorrobótica, terrorismo digital, coisas da cultura contemporânea, firmada de maneira madura, específica, detalhada, geeky, para adolescentes inteligentes. Claro que, coroando a pequena sorte de ter topado inadvertidamente com esta edição, fica o que me chamou a atenção originalmente: a arte de Lawson é de um detalhismo esplêndido, toda angulosa, aproveitando ao máximo os requadros dinâmicos, elegantemente plasmados nas páginas, num preto-e-branco cheio de expressões caricatas, personagens com ótimo design e um apurado senso sobre como se fazer quadrinhos de aventura sem que eles sejam simplesmente horrendos ou ridículos. As tartarugas em si, vale lembrar, pouco aparecem na história, porque passam a diegese toda sedadas, mas despertam justamente nas últimas páginas para trazer um teor dramático, espécie de falha trágica, ao final da edição. O anúncio consternado de Leonardo, porta-voz do grupo, é o suficiente para mim: não tenho intenção de ler mais coisas das TMNT, já que esta experiência basta por esta vida. (CIM)

Contos sobre a decomposição: conheça Al Feldstein

por Ciro I. Marcondes

Al Feldstein é mais um daqueles nomes que hoje pairam sob obscura sombra na história das HQs. Seu trabalho como editor, ilustrador e, principalmente, de roteirista nas clássicas publicações da EC Comics nos anos 50 (e posteriormente em MAD) hoje parece, especialmente no Brasil, relegado a um vão ostracismo, quando quadrinhos de horror, crime e ficção científica, tão populares naquela segunda aurora para o comic book, vão se tornando não apenas obsoletos, mas verdadeiras peças de arqueologia. Um pulo na banca de jornal hoje e tudo o que se vê são dezenas de publicações com os mesmos super-heróis de sempre, apenas remodelados para um design contemporâneo (de traço realista e fino, pouco estilizado, geralmente colorido em computação gráfica), com a diferença de sua ética e estética serem estrategicamente adaptados ao gosto contemporâneo. Um nojo, em geral. Quadrinhos de péssimo gosto, sem imaginação ou variabilidade de gênero.

Não deixa de ser irônico, portanto, que os quadrinhos da EC, tão vilipendiados nos anos 50 devido a uma vultosa caça às bruxas promovida tanto por setores moralistas da sociedade, quanto por intelectuais, quanto pelo próprio governo americano, sejam hoje lidos por aficcionados e colecionadores como trabalhos de qualidade estética, laboratório para grandes desenhistas (como Wally Wood, Bill Elder e John Severin) e como inventário de incríveis histórias, escabrosas, delirantes, anormais, detestáveis. O “mau gosto” e o tom altamente politicamente incorreto dos quadrinhos de horror e crime da EC, passados mais de 60 anos de suas publicações originais, se tornaram quadrinhos de culto, ousados, fora dos padrões de qualquer época para as HQs, verdadeiros tesouros elaborados por mentes delirantes que viam este salto politicamente incorreto como um passo além dos quadrinhos de aventuras, super-heróis e family strips que vinham sendo publicados nos Estados Unidos desde os anos 1930.

Al Feldstein foi um dos nomes principais desta geração e formava, juntamente com o editor-chefe Bill Gaines e o multi-talentoso roteirista e desenhista Harvey Kurtzman, a tríade que tornou a EC uma editora lendária. Caçada pela censura durante os anos de chumbo do macartismo, a EC não durou muito tempo, mas os três títulos de horror da editora, Tales from the Crypt (anteriormente Crypt of Terror), The Vault of Horror e The Haunt of Fear marcaram época ao apostar em temas-tabu como canibalismo, esquartejamento, putrefação, além de todo tipo de horror psicológico. Feldstein acreditava que era hora de a EC deixar de copiar histórias de crime que faziam sucesso em outras editoras (títulos como Crime does not Pay) e criar um gênero autêntico que os fizesse ser, por sua vez, copiados pelas outras editoras. Daí o insight de debater com Gaines a criação de revistas de horror escatológico, quase explícito, beirando o exploitation e o gore, tão populares hoje em dia, inspirado em aterradoras novelas de horror para o rádio dos anos 30.

A despeito da contribuição de Bill Gaines na hora de elaborar os argumentos, ou do resto do espetacular time da EC nos títulos de ficção-científica, guerra e crime, é o trabalho de Feldstein em Tales from the Crypt e nos outros títulos de horror que vai catapultar a EC a tornar-se o maior sucesso comercial dos quadrinhos americanos dos anos 50. Suas histórias possuíam certo senso de ironia e humor escarninho, bastante perversos, traduzidos especialmente no final com um twist grotesco de horror que nos leva, por exemplo, a imaginar situações que podem ser resumidas nas seguintes storylines: “um sujeito apaixonado por sua falecida amada que se tranca por acidente em seu mausoléu e é obrigado a se alimentar dela para sobreviver”; “um caçador e colecionar de troféus de caça que se vê caçado por um homem insano que transforma sua própria cabeça em um troféu humano”; “um homem que conduz uma carroça escondendo por dentro dela, atrás de seu corpo, um gêmeo siamês morto e apodrecido”, dentre centenas de atrocidades, enterramentos de pessoas vivas, mortes hediondas, monstros e criaturas pútridas que retornam para saciar quaisquer sedes de vingança que possuam. Para melhor pensar o estilo de Feldstein e seus quadrinhos, selecionei, para fazer um pequeno comentário, três histórias que compartilham, de alguma forma, um tema comum: a incapacidade de morrer ou os efeitos da postergação da morte.

Três níveis de postergação da morte

Na primeira delas, que vem a ser a melhor dentre as três, Feldstein cria um exótico efeito de suspense médico, deixando o leitor à deriva por quase todas as 7 tradicionais páginas das histórias da EC. The living death foi publicada em Tales from the crypt número 24, em 1951, e foi ilustrada com o traço tortuoso e deformativo de Graham Ingels, deixando os personagens da história com aspecto agressivo e grosseiro, o que não era novidade para os padrões da EC. Ao longo de uma narrativa sisuda, pontuada por muitos letreiros (este aspecto literário também era comum nos textos de Feldstein, que era mais uma mente criadora de histórias escabrosas do que propriamente um narrador habilidoso), somos apresentados a um conflito digno do final do século XIX: dois médicos, amigos de faculdade, anteveem futuros diferentes para a medicina, ao mesmo tempo em que amam a mesma mulher, Laurie. Enquanto Lester Jerome acredita que a maioria das doenças ocorre através de processos da mente (flertando com a pré-psicanálise de Charcot e Breuer, mesmo que mais de 50 anos depois que estas questões tomaram outros rumos na neurologia e na psicologia), Arnold Manning torna-se um halopata mais tradicionalista, sucesso em sua área. Jerome acaba se casando com Laurie, mas seus métodos (que incluem a hipnose) o levam ao obscurantismo, enquanto Manning alcança a glória como médico de renome. A ironia do destino leva a esposa de Jerome a desenvolver um câncer com pouquíssima probabilidade de cura. Tratada no hospital de Manning, a junta médica decide que o tratamento do médico famoso seria melhor do que os métodos pouco testados do marido dela. Laurie é tratada por Manning e morre, para o desespero de Jerome, que vocifera com olhar de desespero e vingança: “eu poderia ter salvado ela!”

A história poderia se encerrar neste caso por si só, já que estamos lendo um texto com um drama humano bastante razoável, com interessante insight sobre visões da medicina, ilustrado por uma arte simples, mas suficientemente brutal, seca e aterradora. Porém, Feldstein nos leva a um novo plot twist quando o próprio Manning é acometido por um câncer quase incurável, o que o leva a abandonar seus próprios métodos e a procurar, anos depois, o velho colega e rival pouco ortodoxo para tentar salvar sua vida. Amargurado e rancoroso, Jerome acaba aceitando realizar o tratamento por hipnose, infligindo-lhe a sugestão de “jamais morrer”, “independente de quaisquer circunstâncias”, “até que ele diga a palavra ‘Laurie’”. O que se sucede é bizarro. Manning efetivamente morre, quando seu coração sofre uma parada cardíaca, mas seu cadáver continua a emitir sons e grunhidos, mexendo-se grosseiramente, em algum centro motor, indefinidamente. E, por indefinidamente, considere-se meses. Manning treme e grunhe gemidos de dor até que a junta médica decide chamar o médico que o havia tratado: Jerome. É neste momento que emerge o único aspecto mais gore da história, justamente no último quadro, quando, em meio a resmungos, Jerome pronuncia a palavra “Laurie” e quebra a hipnose depois de meses. Instantaneamente, o corpo de Manning passa a putrefazer-se até virar uma massa disforme.

Apesar do final grosseiro (bem ao sabor da EC) e com um quê meio “WTF?”, a história de Jerome e Manning não deixa de ser uma das mais excepcionais de Feldstein, não apenas por não trazer monstros e elementos sobrenaturais, mas também por envolver sentimentos complexos como a vingança e a redenção, o amor e a competitividade profissional, além de um debate estranho a respeito do real alcance da hipnose, de um verdadeiro conceito de morte, alma, e do decaimento do corpo humano. Neste caso, o prolongamento da vida se dá por meio da sugestão sobre a mente, o que sugere uma separação em relação ao corpo, que insiste em morrer.

É um caso semelhante do que ocorre em Judy, you’re not yourself today, que Feldstein escreveu para Tales from the crypt  N° 25, ilustrada por ninguém menos que um precoce Wally Wood. Nesta curiosa história, uma formosa e loira dona de casa chamada Judy abre sua porta para uma velha mendiga que acaba por se revelar uma espécie de bruxa após praticar temível feitiço: à procura de um corpo jovem com o qual possa trocar de almas, ela encontra na beleza de Judy a saída perfeita, e executa a bruxaria. Aterradora, essa história se foca no choque com que a moça percebe a troca de corpos, tendo se tornado agora uma figura decrépita, frágil e horrenda. O marido de Judy, Donald, consegue, através de plano mirabolante, reverter o processo e assassinar a velha bruxa. O plot twist, neste caso, se dá quando, meses depois, mesmo com a velha enterrada no porão, a alma da bruxa consegue novamente fazer o feitiço se reverter, e Judy, de repente, se vê incorporada novamente no que restou, putrefato, do corpo morto. Judy se reergue, agora um monstro em decomposição, resistente à morte. 

Neste caso, a vida é prolongada por algum tipo de recurso sobrenatural, não tão sofisticado quanto a sugestão que rompe o equilíbrio entre morte e vida da história anterior, mas amparado por uma espécie de vontade recorrente e interminável de continuar vivendo, representado na alma demoníaca da bruxa. O que é mais exótico e perturbador é imaginar que, de alguma forma, e por algum mecanismo que desafia todo tipo de resolução que inclua o assassinato, o tempo, o enterro e a decomposição, os demônios sempre encontram alguma maneira de retornar e possuir os vivos.

Nossa última fábula de morte e decomposição foi retirada do imaginário do grande autor de ficção-científica Ray Bradbury, que transitava entre o pulp e a especulação filosófica, e cujas histórias foram em grande parte adaptadas por Feldstein (um grande fã do autor, que também reconhecia a qualidade da EC e firmou parceria) para os quadrinhos. The Black ferris foi publicada em Haunt of Fear N° 18, em 1953, e também apareceu por aqui na saudosa edição número 1 de Cripta do Terror, da editora Record, que saiu em 1991. Aqui, uma dupla de garotos vai a um parque de diversões velho durante uma noite sombria e presencia um acontecimento extraordinário: um homem adulto sobe na roda-gigante e, após algumas voltas controladas por um operador corcunda e cego, retorna... como um criança! O princípio todo da história é fabuloso e imaginativo, e parte da ideia de que esta roda gigante, com algum tipo de propriedade mágica sobre o tempo, acelera ou reduz (dependendo do sentido para o qual a roda está girando) o envelhecimento de quem está dentro dela. A trama se desdobra sobre um golpe praticado por este homem misterioso, que ora aparece como menino, ora aparece como adulto. O clímax ocorre justamente no final, quando as crianças procuram sabotar o plano maléfico deste homem-menino e abatem o operador cego, enquanto a roda gira para o futuro. O resultado, com a roda girando sem parar e o homem gritando freneticamente “parem a roda!”, não poderia ser menos assombroso: quando a polícia efetivamente consegue parar a roda, jaz apenas um esqueleto do homem, envelhecido “demais” pelo mecanismo de tal exótica máquina do tempo.

Se no primeiro caso temos um rompimento das relações normais entre mente e corpo através do procedimento meio mecânico e meio espiritual que é a hipnose, provocando o prolongamento de uma vida através de morte, e no segundo temos a insistência de um ser de pura vontade inefável de continuar existindo e se perpetuando (um espírito demoníaco), neste terceiro caso temos uma guinada completamente mecânica, quando o decaimento ou não do corpo e o prolongamento da vida é realizado por algo inteiramente externo: uma máquina, e, mais interessante ainda, uma máquina do tempo. Aqui, Feldstein encerra essa forçosa “trilogia” ao colocar cada um dos potenciais de ressurgimento ou apodrecimento do corpo e da alma em um limiar que inclui o mundo mecânico, da matéria, ou o mundo espiritual, da mente. Não que estas histórias, ingênuas e fabulosas apenas, em suas origens, se proponham a que sejam lidas em tal lente “metafísica”, mas não deixa de soar interessante imaginarmos que tais arquétipos como o da hipnose, dos demônios ou das máquinas do tempo possam ressoar uma significação comum, enredada: a do horror. Horror do prolongamento da vida. Horror do medo da morte.