Liniers: um cara macanudo





















por Pedro Brandt

Macanudo, em espanhol, quer dizer supimpa, bacana. Ricardo Liniers, o cartunista argentino dono da tirinha de mesmo nome, é um cara pra lá de macanudo. Tive a oportunidade de perceber isso ao vivo, no mês passado, quando conheci o roteirista e desenhista em Brasília. Ele esteve na cidade para falar sobre seu trabalho em duas noites de palestra (29 e 30 de março) no Instituto Cervantes (que promoveu o evento).

Liniers, 37 anos, conquistou os espectadores com carisma e muito bom humor. No final do primeiro dia de palestra, me aproximei para pedir uns autógrafos. O ilustrador Fernando Lopes, meu colega de Correio Braziliense, perguntou se Liniers não teria interesse de fazer um passeio por Brasília na manhã seguinte, para conhecer alguns monumentos da cidade e visitar algumas exposições. Liniers aceitou no ato. Como eu não trabalharia na quarta de manhã, combinei de fazer o rolê com eles.




Passamos pelo Museu da República, Catedral, Esplanada dos Ministérios e Memorial JK. O argentino se impressionou com a arquitetura retro-futurista da capital brasileira. “O visual da cidade me lembra Sleeper”, ele comentou, em alusão ao filme de Woody Allen lançado em 1973 (O dorminhoco). Liniers é gente boníssima, daqueles caras com quem a conversa pode durar horas. Falamos especialmente sobre quadrinhos: autores brasileiros e argentinos, o mercado das HQs nos dois países, etc.

Depois do almoço, levei Liniers para a Cultura do Casa Park, onde cerca de 30 fãs já esperavam para conseguir desenhos, autógrafos e fazer fotos. Ele é o tipo de artista atencioso. Nas fotos, era só sorrisos. Mais do que simplesmente assinar os livros, fazia um desenho em cada um, um diferente do outro, sempre coloridos, caprichados.

Quem também estava na livraria na ocasião era o editor da Zarabatana, Cláudio Martini. Ele tem feito um trabalho elogiável, lançando títulos de qualidade autoral e com ótimo acabamento editorial. Além de Macanudo, a Zarabatana lançou recentemente outros dois materiais argentinos, a revista semestral Fierro Brasil (coletânea de histórias curtas de autores brasileiros e argentinos) e a Noturno, de Salvador Sanz, que está saindo pela Coleção Fierro.

Dois amigos que também estiveram nas palestra de Liniers comentaram a passagem dele por Brasília em seus blogs: o desenhista Caio Gomez e o desenhista/ roteirista/ roqueiro/ camelô Evandro “Esfolando” Viera. Depois da segunda noite de palestra (que eu não pude comparecer), os dois, mais alguns amigos, continuaram ciceroneando o cartunista argentino e o levaram para tomar umas cervas. Caio escreveu um breve relato do encontro. O Evandro foi mais longe, fez umas fotos e ainda uma HQ sobre o assunto. Liniers, cara macanudo que é, quando voltou para casa, agradeceu a recepção brasiliense com uma tirinha muito simpática sobre Brasília.

Cachalote: nossa própria Moby Dick


Por Ciro Inácio Marcondes

Sempre gostei da imagem da baleia cachalote. Ela nada em todos os oceanos e é a única baleia que chega a águas profundas, justificando seus lendários (mesmo que nunca propriamente documentados) combates com lulas gigantes abissais. A cachalote, com sua cabeça enorme e respeitável, é uma baleia dentada, e assombra nosso imaginário por ser também carnívora, ainda quem nem de longe se aproxime da agressividade das orcas, por exemplo. Mas é claro que a cachalote traz consigo um maior status cultural porque a mais famosa de todas as baleias – Moby Dick – é uma cachalote, e isso diz muito sobre esta impressionante e monumental graphic novel de Daniel Galera e Rafael Coutinho lançada em 2010. Em Moby Dick, uma inegável obra-prima da literatura americana e universal, o obcecado capitão Ahab passa, junto a um marujo chamado Ishmael, a vida tentando caçar a monstruosa baleia que lhe devorou a perna, sem receio de atravessar as raias da loucura para conseguir seu objetivo.


Cachalote pode ser considerado, de cara, um divisor de águas nas graphic novels nacionais, não porque nossa tradição em HQ não seja rica, mas sim porque nossa atenção com a arte dos quadrinhos sempre se voltou mais para as tiras ou histórias curtas. O trabalho de estreia nas HQs do escritor gaúcho Daniel Galera e de Rafael Coutinho (um desenhista fora do comum) organiza-se claramente, porém, como um projeto de grande estatura, com intenção de desvirginar este pequeno tabu nacional, e entregar ao público uma experiência megalítica e profunda. Vale, neste caso, a experiência literária e o diálogo com o cinema do escritor/roteirista, que acaba mencionando as outras formas de arte escrita/visual em Cachalote sem que esta seja uma pura viagem do melhor que a narrativa em quadrinhos pode oferecer.

A metáfora da baleia é conhecida e parodiada em todo canto, de X-Men a desenhos de qualidade duvidosa, mas raramente alcança sua densidade integral sem o acompanhamento da narrativa impressionista de Herman Melville. Moby Dick é uma travessia sombria pelas contingências da obsessão de um homem vista (e isso é essencial) pelos olhos de outro homem. De certa forma, Moby Dick nos fala sobre o ato de nos pegarmos acompanhando as buscas centrais das outras pessoas, tragados pelo universo alheio, caçando os cachalotes dos outros. Lembro-me de que meu irmão, num templo budista, descreveu a tentativa de se alcançar a meditação com a eficaz imagem daquele que tenta domar um elefante. Daí para pensarmos que a vida de cada um é uma busca por domar seu próprio paquiderme dos mares (o cachalote) e que, como Ishmael, pegamos carona nos paquidermes dos outros, é um passo simples e uma alegoria tão exata quanto angustiante.

É aqui que Galera e Coutinho nos aparecem como Ishmaels de acordo com suas próprias aptidões, usando a arte da HQ para contar cinco histórias paralelas – de angústias, incertezas e decisões a serem tomadas – que se cruzam apenas num tom factual: o cachalote pessoal que cada personagem precisa domar. Esse leitmotiv não é apenas a força propulsora desta HQ em si, mas também transmite a ideia de que nos valemos deste ato de domar, e que, como o playboy tentando empurrar a baleia no fim da história, jamais conseguimos nos livrar deste monstro interno: ele é constante, parte de nós, e nos resolvemos quando fechamos algum tipo de acordo com ele.

Vale, portanto, relacionar as histórias e a maneira com que este painel ao mesmo tempo narrativo e alegórico é construído em Cachalote. Daniel Galera enfilera cinco padrões de angústia: a de um ator chinês internacional entediado com a falta de sentido de sua vida e o suicídio de seu melhor amigo; a de um humilde atendente que ao mesmo tempo é um mestre da bondage erótica e se sente um objeto de sua principal amante; a de um escultor em crise com seu casamento e que resolve entrar num projeto tosco de cinema independente; a de um escritor depressivo que mantém amizade com sua ex-mulher, mas que não consegue superar o fim do relacionamento; e por fim a angústia de um jovem playboy arrogante e detestável, abandonado por todos, solto em uma peregrinação suicida pela Europa.

Triunfo inquestionável

Estas histórias, tão diferentes em suas meras sinopses, são compensadas no tom que os autores utilizam para erguer a HQ, sem letreiros, com franca alteração no valor e tamanho dos quadros, utilizando-se de grande quantidade de ângulos que valorizem a ação pictórica e a capacidade narrativa dos desenhos em si. O realismo fino de Rafael Coutinho, marcado por contrastes sensíveis e significativos de preto-e-branco, destila camadas narrativas, cria ambientes, demarca passagens de tempo, faz brotar sensações. Poucas vezes vi uma utilização tão refinada de tempos mortos, comuns no cinema, mas difíceis de se determinar com precisão em HQ: instâncias temporais imprecisas misturadas a estados psicológicos diluídos.

Soma-se a isso o talento de Galera para criar personagens de profundidade e detalhismo sem que pareçam forçados, valendo-se de diálogos naturais e surpreendentes, com inflexões robustas e filosóficas, inseridos cirurgicamente no esplendor gráfico de Rafael Coutinho. Cachalote é um triunfo, portanto, porque equaliza com honesto e dedicado trabalho artístico os componentes básicos que fundam a história em quadrinhos: a palavra, o espaço gráfico e o silêncio. Nesta HQ é possível que convivam, ao mesmo tempo, quatro páginas emulando as tomadas repetidas de uma filmagem cinematográfica com sutis (mas não desprezíveis) alterações, produzindo inusitado padrão de diálogo entre os dois meios; e também importantes painéis com requadros panorâmicos de página inteira, como pinturas inseridas no meio da HQ, de grande potencial expressivo e também narrativo – basta lembrar a página da troca de olhares entre o playboy na França e a namorada de seu conhecido, de forte impacto emocional e moral, anunciador do que acontecerá. 

Sem respostas fáceis ou didatismo, mas ao mesmo tempo puro em termos narrativos, Cachalote tem os ingredientes certos para uma grande obra artística. O que há de monstruoso nas buscas e escolhas destes personagens é o mesmo que há de humano neles, e é nesse sentido que uma arte visual e voyerística como as Histórias em Quadrinhos pode nos servir de substituto para o olhar meticuloso e observador de Ishmael sobre a busca de Ahab em Moby Dick: somos todos, aqui, testemunhas oculares desta peregrinação humana em direção a seus cachalotes, e o sentido desta busca, ainda que não vençamos esta baleia, não deixa de ser moral e existencial: morremos se deixamos de buscar. É por nadar nestas águas profundas que Cachalote está sendo recebido como obra-prima dos quadrinhos, e nos resta esperar que isso inspire novos trabalhos do mesmo nível.

Lobo solitário

por Ciro Inácio Marcondes  

É comum que se considere Spirit, publicação dos anos 40 e 50 de Will Eisner (especialmente a fase do pós-guerra) como um modelo de transvisualização do mapeamento visual e espacial e dos raccords propriamente cinematográficos para a linguagem dos quadrinhos. Não há como negar que Spirit, mais antigo e mais evidentemente vinculado a uma cultura pulp do que o gekigá Lobo Solitário, de Kojima e Koike, abre passagem para uma abordagem propriamente moderna nos quadrinhos. Porém, uma leitura cada vez mais progressiva da saga do ronin Itto Ogami e seu “filhote” Daigoro provocam uma impressão muito forte de espanto e paralisia; descoberta e incredulidade; regozijo e até mesmo horror diante de obra tão naturalmente requintada.

Lobo Solitário é uma longa série desenvolvida ao longo dos anos 70, e são muitos os fatores que a tornam objeto canônico indiscutível para a HQ mundial. Se Spirit investia em uma narrativa detalhista centrada na obliquidade da estilística noir, contrapondo planos tortos com hiper-closes e transformando os painéis das páginas em microlentes maleáveis de retardamento/aceleração do tempo e investigação do espaço, os roteiros de Koike, de maneira igualmente brilhante, partem para uma detalhadíssima segmentação do espaço em uma ordem não-narrativa, projetando-se para uma aclimatação de timing perfeito, traduzindo o tom de cada cena através do tamanho e investimento nos painéis. Isso nos deixa conscientes do sentimento do personagem, da movimentação dos ambientes, da temperatura em que estão situados, sem precisar o tempo, mas sem nos confundir, transformando o espaço da HQ em uma profusão de sentidos.

Esta abordagem, que se aproxima do cinema minimalista de Yasujiro Ozu, produz a indescritível sensação de conhecermos os sentimentos dos personagens sem que eles jamais tenham de verbalizar a respeito disso. Não é preciso dizer que este método sofisticado de representação tem implicações muito mais profundas do que a rasa técnica de simplesmente botar o personagem para dizer “eu te amo”, “me sinto mal”, “me sinto triste”, etc. Koike acaba produzindo, portanto, uma obra monumental de ação, mas de dimensão profundamente íntima. Duas histórias situadas no volume 7 lançado pela editora Panini são cabais para compreendermos este efeito simples e intenso de projeção/identificação.

Criança sem infância


Como Spirit, Lobo Solitário tem o (não pequeno) mérito de problematizar fortemente os personagens coadjuvantes, tornando seus dramas, inúmeras vezes, mais interessantes do que os dos protagonistas. A trama principal, como um leitmotiv que gosta de se ocultar e submergir sem que nos apercebamos, circunda uma história de vingança lentamente desenvolvida nos mais de 30 volumes da série. Entretanto, como na maioria das parábolas zen, é elaboração do caminho que produz a significação da obra. Itto Ogami em muitos momentos serve apenas como testemunho para o desenrolar dos mais diversos dramas humanos, e sua humanidade por vezes heróica pode ceder para a nobreza de outros que perecem antes/diante ou nas mãos dele. As histórias que voltam a perspectiva narrativa para o filho Daigoro potencializam em muito esta relação.

Neste volume 7 temos uma primeira história (“O caso do assassino”) em que Ogami está fora para uma missão e Daigoro, uma criança de 4 anos, está solto em uma pequena cidade que vive de extração madeireira. O aprendizado de Daigoro, conforme conferimos com admiração e espanto durante toda a série, é um lento caminho de resignado regime de autocontrole, uma ascese. O garoto precisa encontrar a maturidade no auge de sua incompreensão infantil, levado a decodificar um mundo hostil logo no alvorecer de sua vida. Em seu breve caminho, Daigoro testemunha massacres, aproxima-se da morte e chega a cometer assassinatos. Nesta história, presenciamos a criança num treinamento em perigosas toras de madeira flutuantes, contrastando com cenas de sua profunda solidão, expressada com poder sublime pelo lápis riscado e impressionista de Goseki Kojima. Daigoro fala muito pouco, e sua imagem solitária, sem amigos ou interlocutores, torna-se código na profunda relação do personagem com a própria condição, ao mesmo tempo intuitivamente sábia e naïve.

Tudo isso converte-se nas espantosas decisões morais da criança, que parece sempre nostálgica, porém ascética, quanto à sua condição de criança sem infância. Assim, sem temor, mas consciente de sua frágil existência, Daigoro testemunha o assassinato brutal de uma jovem nobre, revelando a verdade somente após intuitiva e segura ponderação. Esta relação, porém, intensifica-se na história “Código penal, artigo 79”, em que Daigoro, novamente só e aguardando o pai retornar de uma missão, acaba por acidente sendo acusado de furto. Neste caso, a ascese aproxima-se de uma forma animalesca e brutal, tipo de frieza aracnídea, derivada do contato com a absoluta rigidez disciplinar e moral no comportamento do pai. Presenciamos, em primeira instância, a tristeza profunda do menino para o qual o inofensivo universo da feira representa uma barreira intransponível. Kojima inteligentemente alterna letreiros, diálogos e as mais diversas disposições entre os quadros para trazer um Daigoro ao mesmo tempo disciplinado e melancólico. Porém, vítima da armação de uma simpática ladra, uma carteira roubada cai-lhe em mãos, e ele promete cumprir a missão. A partir daí, impressiona a resignação com que ele insiste em não denunciar a ladra e falhar em sua missão. “Era isso que a criança havia aprendido vendo seu pai trabalhar... mesmo sem saber diferenciar o bem do mal... Quando alguém lhe solicita um serviço, o verdadeiro matador cumpre sua missão até o fim...”.

Choca-nos observar repetidamente, exaustivamente, o semblante da criança ensimesmada, profundamente melancólica e resignada, negando-se insistentemente a delatar a ladra, mesmo após ela mesma declarar-se culpada. Vemos a criança ser humilhada e açoitada em praça pública pelas autoridades até que o espanto dos próprios algozes provoca a necessidade urgente de libertar o garoto e livrar-se daquele espírito antípoda e assustador justamente porque tão profundamente enraizado em suas solitárias convicções. Apenas entendemos esta ascese de Daigoro porque Kojima e Koike não poupam páginas em desdobrar a linguagem dos quadrinhos para nos revelar, quase sem diálogos, uma estranha essência humana que captamos pela ordem narrativa sensitiva das páginas de Lobo Solitário. Se Will Eisner usa a HQ como dínamo de múltiplas narrativas sobre a cidade, inaugurando um olhar complexo, a série japonesa fragmenta a perspectiva não tanto no sentido de aprimorar o ato de contar histórias, mas sim de olhar tanto e sob tantas medidas para um personagem, que ele será obrigado a olhar de volta para você. Assim, num passe mágica e encanto, o estado de contemplação da história se torna o nosso próprio,e os quadrinhos se tornam um tipo de mantra.

Xampu e um lado autoral: entrevista com Roger Cruz


Por Pedro Brandt

Folheei uma, duas vezes e nada. Procurei então no índice e fui direto na página. Eu já sabia que o Roger Cruz participaria daquela edição da Metal Pesado e estava ansioso para conferir o resultado – eu era fã do cara, tinha um monte de revistas desenhadas por ele. Logo entendi porque eu não tinha achado a história antes. O Roger ali não era o que eu estava acostumado, o desenhista de comics, mas o Roger autor (RO.C.K.), com um traço bem diferente de todos os que eu já tinha visto ele usar até aquele longínquo 1997. Adorei a HQ! Xampu era o nome. Me identifiquei demais com aquela história de sexo, birita e rock’n’roll – tanto que xeroquei as três páginas da HQ e usei como capa e contracapa do meu fichário de colégio (que foi comigo, guerreiro, até o fim da faculdade). Pouco depois eu li em algum lugar que aquela era uma história de várias que o Roger gostaria de contar. A espera para ler as outras histórias do universo Xampu demorou 13 anos. Em seu blog, o desenhista dava pequenas amostras do trabalho.

Em maio do ano passado, Xampu - Lovely Losers foi lançada pela Devir. A minha ansiedade para conferir a obra foi tão grande quanto aquela de 13 anos atrás. E a minha satisfação ao terminar de ler todo o álbum, comparativamente, foi a mesma da adolescência.

Depois de anos de espera, Roger me provou o talento que eu sempre soube que ele tinha – e que eu acho que não aparecia mais em sua produção para a Marvel havia anos. Em Xampu temos um Roger renovado, criativo, em plena forma tanto como narrador gráfico quanto como contador de história.

Entrevistei o desenhista paulistano por e-mail em junho de 2010. A nossa conversa segue abaixo.
Quando e por que você decidiu que tinha chegado a hora para fazer a HQ?


Isso ocorreu no ano passado, em 2009. Já há alguns anos não sentia o mesmo prazer em desenhar comics por uma série de motivos.
O fato é que hoje eu entendo bem a decisão de alguns amigos que pararam de desenhar para as editoras americanas.

Xampu sempre esteve nos meus planos mas o volume de trabalho para a Marvel inviabilizava qualquer investida no projeto porque pretendia usar outro estilo no título.


E não é fácil fazer uma página de comics de manhã e “virar uma chave” para fazer algo completamente diferente à tarde.
A única opção foi pedir férias por tempo indeterminado na Marvel. 
Isso me deu tempo para amadurecer uma identidade visual para o Xampu.
Nos últimos cinco ou seis anos, entre uma edição de X-Men e outra, tentei finalizar o livro diversas vezes. E sempre que voltava para uma página do Xampu percebia que o traço não fluia como eu queria.
Nessas férias da Marvel consegui produzir o livro de um fôlego só. O que conferiu a unidade que eu buscava desde o início.


Os outros dois volumes já estão prontos? Pode dar uma prévia de como continuam as histórias? Elas terão os mesmos personagens? Quando serão publicadas?


Ainda não. Tenho roteiros escritos para mais ou menos 50 páginas de HQ. O que ainda é bem pouco. Mas pretendo intercalar as próximas edições do Xampu com as edições de Gutigutz.

Alguns personagens deste livro ainda estarão nos próximos mas não serão o foco. As épocas serão outras também. O que signifca que o pano de fundo musical não será tão relevante.


E a Gutigutz, tem previsão de publicação?


Espero terminar o primeiro livro ainda neste ano. Mas, no momento, estou me dedicando a outro projeto pessoal mais urgente e que, por enquanto, não posso divulgar.

Ainda assim, pretendo cumprir o prazo que estabeleci para as Gutigutz. Estou fazendo o mesmo que fiz com Xampu – estabelecendo um prazo. Nem mesmo tentei elaborar uma linguagem que soasse universal para que se adequasse também a mercados no exterior.

Penso que o livro não funcionaria para mim se tivesse isso em mente.

Mas algumas pessoas já me sugeriram apresentar o Xampu para outros mercados. Se houver interesse, será ótimo também.





Você cita várias bandas de rock ao longo da HQ, desde o som mais pesado, que está claro que é a preferência musical dos personagens, até o rock clássico, punk rock, new wave, indie rock, bandas alternativas brasileiras dos anos 80, brega, etc. Imagino que tudo isso seja um reflexo do seu gosto musical. Ou você inseriu algumas dessas bandas para dar mais personalidade aos personagens? Quais eram as suas bandas favoritas naquela época? Você costumava ir nos shows das bandas de SP na época? E hoje, você ainda curte rock? Quais bandas você tem ouvido atualmente?

Eu optei por não deixar clara a distinção entre realidade e ficção, mas esse era realmente o meu gosto musical.
Ainda gosto de muitas dessas bandas. Outras, ouvindo hoje, não gosto mais. Acontece.
Nesta fase da vida, o gosto musical define quem você é no grupo ou na tribo da qual faz parte. 
Conheci pessoas com “bom gosto musical” e que também gostavam de sons de “gosto duvidoso”. E, no final, a quem importa se você gosta disso ou daquilo, não é?
Mas olhando de perto, as urgências dos personagens são outras e a música é apenas o pano de fundo nas histórias.
Na época, as minhas preferências eram quase as mesmas de todos. Gostava de Iron Maiden, Metallica, Rush, Led Zeppelin, Ramones, Violeta de Outono, Slayer, Megadeth, etc. Mas gostava muito de bandas com bons bateristas porque tinha uma bateria e me arriscava com as baquetas.
A investida na carreira de baterista não durou muito, felizmente.
Eu não era um grande frequentador de shows mas fui em alguns. New Model Army, Ramones, quinto dia do Rock in Rio 2, Ratos de Porão, alguns que não me lembro e outros que prefiro esquecer.
Ainda gosto de rock e metal mas realmente ouço de tudo um pouco e, às vezes, por pouco tempo. Estou sempre desatualizado com relação a tudo. Música, quadrinhos, cinema, etc. 
Até prefiro assim. Não sinto tanta necessidade de ficar “antenado”, essa correria para ficar por dentro de tudo.
Acho que o ritmo de trabalho dos últimos 10 anos me fez desejar uma rotina cada vez mais lenta, longe de pressões e urgências.


Na Xampu original eram perceptíveis as influências de Laerte, Love & Rockets, Crepúsculo (do Pascal Ferry – que, aliás, ganhou citação na nova Xampu), por exemplo. No novo traço da história, arrisco dizer que Mutarelli, Paul Pope (e os gêmeos Bá e Moon, na condução da história) foram algumas das suas influências. Quem mais você diria que serviu de inspiração/ influência?


Laerte, Love & Rockets e Crepúsculo (HQ do Pascal Ferry!) foram influências importantes na época em que comecei a fazer HQs autorais antes de entrar para o mercado de comics nos EUA. Certamente me influenciaram na primeira HQ de 97. 

Mutarelli também foi influência em uma HQ específica publicada na extinta revista Mil Perigos.
Pope e os gêmeos são grandes artistas mas nunca os tive como influência. Na verdade, tudo o que eu não queria no Xampu era ser influenciado por algum trabalho.
Tentei deixar o lápis correr solto, sem construções de anatomia e perspectiva. Finalizei intencionalmente com as ferramentas com a quais estou menos acostumado – bico de pena e penas caligráficas para as áreas de preto.
Uma tentativa de me afastar do desenho muito mecânico e estruturado que faço para comics.
A intenção era que as figuras parecessem lembranças disformes e sem nitidez daquela época.







Quais foram os desafios da produção de Xampu?

O prazo foi o maior desafio. 
Fiz uma reserva financeira prevendo quatro meses de produção do álbum. 
Não seria possível produzir as páginas, tratar as imagens, letrerar e fechar os arquivos digitais se eu estivesse produzindo regularmente para a Marvel.
Penso que este é o maior desafio para quem pretende tocar um projeto pessoal. 
Conheço muitos artistas com excelentes idéias que não podem se dedicar a elas porque precisam antes garantir seus salários.
Além disso, se dedicar a um projeto pessoal é trocar o certo pelo duvidoso.
Você não recebe para produzir, você não sabe se alguém vai comprar a sua idéia e você não sabe se vai vender.
É um tiro no escuro mesmo.






E como a Devir entrou nessa história?

O Leandro, que foi o editor no Xampu, sempre foi um dos grandes incentivadores do projeto.
Desde a época da editora Pandora ele me dizia que eu precisava fazer um álbum do Xampu
E toda vez que nos encontrávamos ele me dizia isso. 
Por esse motivo, a Devir foi a primeira e única editora que procurei para oferecer o projeto. Queria mesmo que o Leandro estivesse envolvido.
E quando finalmente apresentei um preview para a Devir, o Douglas aceitou publicar na hora. 
A partir desse ponto, cabia a mim produzir o restante do álbum.


Você comenta no álbum que as outras histórias foram criadas na época da primeira. Você manteve os textos/ enredos intactos desde lá? Para você, quais são os desafios de criar também os textos de uma HQ?


Sim. Escrevi os outros roteiros na mesma época. Entre 1997 e 1999, mais ou menos. Fiz algumas mudança para atualizar ou reforçar certos pontos de vista ou para mudar desfechos de situações. Sempre fui fã de autores confessionais como Charles Bukowski, Angeli e Henry Miller por se posicionarem abertamente. Foi algo que tentei nesse álbum.



O personagem Max é bem parecido (fisicamente, pelo menos) contigo. O quanto das situações apresentadas na HQ são vivências suas? Todas as histórias têm um quê de autobiográficas ou você também se valeu da ficção para criá-las?


Algumas pessoas já me disseram isso. Que me pareço com o Max ou vice-versa.
Será? (risos) Combinei vivências minhas com muita ficção. O Sombra, por exemplo, é um mix das características de um amigo de escola que tinha o apelido de Sombra com Paul Stanley do Kiss e Slash do Guns n Roses. Sobre o caminho que cada personagem segue na história, não tive nada a ver com isso. Não escrevi nenhuma delas com idéias prontas de começo, meio e fim. Tentei durante o processo de criação fazer o exercício de acompanhar os personagens sem julgar ou direcionar escolhas.




O seu contrato com a Marvel vai até quando? O que pode adiantar sobre os seus próximos trabalhos para o mercado gringo?

O contrato é de exclusividade e por tempo ou edições. Ainda me resta um ano ou 12 edições. 
Não pretendo renovar o contrato. 
Se eu continuar com o trabalho no mercado americano, prefiro ficar livre para escolher o que vou fazer.



Você acha possível viver de HQs autorais no Brasil? Vislumbra isso para você no futuro? Além de Xampu e Gutituzt você tem outros trabalhos autorais?


Só de HQs autorais? Não mesmo. Não no Brasil.
E aí vem a pergunta: “Então por que fazer?”
Porque através da HQs posso realizar idéias com texto e desenhos.
Posso fazer isso em casa e escolher meu horário de trabalho.
Com certeza eu receberia um salário melhor se tivesse continuado a trabalhar com agências de publicidade mas não teria a mesma qualidade de vida.
Não espero que as HQs autorais sejam a minha fonte de renda. Seria uma grande surpresa se isso acontecesse.Além de Xampu e Gutigutz tenho outros projetos. Nem todos são HQs. Em breve, poderei dar mais detalhes.




Em entrevista em evento na Quanta Academia de arte em 2007, Roger ainda tinha planos duradouros com os comics:



A pia suja de Patrice Killoffer

Por Pedro Brandt

Patrice Killoffer não tem a consciência tranquila. Quando deixou Paris para viver em Montreal, a pia de seu apartamento ficou lotada de louça para lavar. “Em minha desculpa, posso dizer que se tratava de uma quantidade abissal, louça de um jeito que pede imersão total, trabalho de especialista, totalmente longe do meu alcance; eu não passo de um ocioso de baixo nível”, justifica. A sujeira era tanta que criou vida e o atacou. O resultado foi assombroso. Tais quais monstrinhos gremlins, o francês — autor e protagonista de sua história em quadrinhos — se multiplicou. Ao longo das páginas, o leitor entenderá o porquê do título 676 aparições de Killoffer.

Envolvido diretamente com o novo quadrinho francês, Killoffer era um autor pouco conhecido no Brasil quando foi convidado para participar da primeira edição da Rio Comicom (encontro internacional realizado em novembro com fãs e profissionais da área). Em seu país, o quadrinhista foi um dos fundadores da L’Association, editora responsável por títulos como Persépolis, de Marjane Satrapi, e Epilético, de David B., trabalhos bem-sucedidos e que injetaram novo ânimo no quadrinho francês. O convite para o evento brasileiro rendeu a publicação nacional de duas de suas obras: Quando tem que ser, pela editora Marca de Fantasia, e 676 aparições, pela Leya.

Persépolis e Epilético são obras biográficas nas quais os autores contam dramas da infância e da adolescência. 676 aparições (publicada originalmente em 2002) pode ou não ser considerada uma obra biográfica. Isso fica para o leitor decidir. Se, por um lado, o protagonista é o próprio Killoffer e parte do que é narrado realmente aconteceu com ele (o desenhista recebeu uma bolsa para viver um tempo em Montreal e escrever um livro sobre a experiência), por outro, não fica muito claro o que são episódios da vida do francês e o que são delírios. Os acontecimentos se confundem.

Mente febril

E no fim das contas, tanto faz o que é inspirado na realidade e o que é fruto da imaginação de Killoffer. O autor oferece ao leitor uma viagem às entranhas de uma mente febril, inquieta, incomodada. Quando o personagem adentra o apartamento, ele entra em sua cabeça, seu inconsciente. A sujeira na pia funciona como uma analogia para o que ele deixou para trás quando embarcou para o Canadá: o cotidiano, as paranoias e os problemas.

Com detalhados e personalíssimos desenhos em preto e branco, o artista explora o formato das páginas (de 25cm de largura por 37cm de comprimento) criando painéis inteiros, nos quais o olhar serpenteia pelas imagens. Quebrando a convenção de narrar em quadros, ele apresenta imagens simultâneas e passeios por diferentes ângulos ao mesmo tempo.

Essa construção permite múltiplas interpretações: seriam acontecimentos passados em momentos diferentes, mas no mesmo cenário? Seria a personalidade fragmentada de Killoffer a causadora de conflitos entre o id, o ego e o superego?

Uma coisa é certa: 676 aparições de Killoffer é uma HQ impressionante, de fôlego, visual e psicologicamente instigante. De longe, um dos melhores quadrinhos disponíveis nas livrarias.

Publicado originalmente no Correio Braziliense de 13/12/2011

Love and Rockets

por Ciro Inácio Marcondes

Perambulando por sebos da cidade deparei-me com um volume lacrado da primeira edição da revista “Love and Rockets”, lançada pela Record em 1991 com promessa de grande longevidade editorial, mas que acabou não tão bem-sucedida assim. Diz a capa: “edição de colecionador”, apresentando as 68 páginas que reunem trabalhos selecionados de várias fases da arte dos irmãos Hernandez, e não apenas na série do título. Eles tinham razão, e, mergulhando em histórias de contagiante frescor e ousadia, é possível entender o entusiasmo do lançamento e descobrir porque a simpática introdução de Octacílio D’Assunção diz que “seguramente, a coisa mais genial produzida nessa década [anos 80] veio de dois irmãos californianos, os chicanos Hernandez – Jaime e Gilbert, com seu Love and Rockets”. 

Love and Rockets tornou-se sucesso editorial internacional e, por sorte, temos alguns volumes encadernados de coisas dos Hernandez publicados por aqui. Estes quadrinhos, lançados primeiro no iniciozinho dos anos 80 (época em que, podemos dizer, inaugura-se mesmo o nosso modo contemporâneo colecionista e aficcionado de se viver), apareceram primeiro do jeito que se apareciam quadrinhos independentes até pouco tempo atrás: xerocados, em edições mimeografadas, distribuídas nas ruas e em lojas de quadrinhos. Até que as histórias despertaram interesse do tradicional Comics Journal e ganharam edições cada vez mais requintadas da maravilhosa Fantagraphics

Os quadrinhos de Jaime Hernandez (Locas) são mais conhecidos, e ganharam culto crescente com histórias descoladas sci-fi pulp misturadas a jovem idade adulta de um incrível grupo de garotas de visual 80’s chic e cyberpunk. Permanece arrojado e de tirar o fôlego até hoje e nota-se sua influência em desde Estranhos no paraíso a Madman. Porém, interessa falar sobre a clássica “Heartbreak soup”, história do irmão Gilbert Hernandez que também sustentou sua própria série, sobre a pequena cidade de Palomar, na América Central, de imaginário rural e latinoamericano, um dos feitos mais maduros e consistentes das HQs indie

Encaremos os fatos para entender o desafio que é sacar a qualidade singular da série Palomar: Heartbreak soup é uma HQ de matriz naturalista, fortemente eisneriana, que tem o mérito de nos introduzir, em coisa de 30 páginas, a uma galeria enorme de situações e personagens inteligentemente delineados, em tramas que misturam bom humor, melancolia e pesada densidade emocional. Estas figuras, que para um adolescente urbano do séc. 21 podem parecer exóticas e longínquas, são na verdade ainda bastante comuns dentro de um imaginário aloprado e despudorado das cidades pequenas da América Latina (Brasil incluso). A própria apresentação do imaginário da cidade é feita através de um dispositivo engenhoso: o prólogo é a história da parteira da cidade, já por si só brutal em sua esterelidade, que, em grandes painéis com letreiros de qualidade literária, apresentam o parto e a história incomum de mais de uma dezena de figuras ordinárias, mas individuais: um menino que nasceu por insistência da parteira, ainda que deformado; o partos simultâneos, mas diferentes, daqueles que se tornarão melhores amigos e protagonistas da história, disputando a mesma garota que, por sua vez, tem também um nascimento marcado pela brutalidade.

Na trama principal, estas linhas gerais se estendem: perversas ou patéticas histórias de amor, estranhas situações de humilhação, lascívia, poesia, morte. Sem o rebuscamento formal e a pegada metalinguística, Heartbreak Soup - com seu equilíbrio de alternâncias entre histórias e a capacidade dramática de incluir tudo dentro de uma força comum (a cidade como personagem) - funciona como se Will Eisner voltasse seu olhar para um vilarejo pobre das bandas de baixo dos Estados Unidos, com a diferença que, ao contrário do mestre novaiorquino, a história de Gilbert Hernandez não é edificante nem moralizante. 

O mais admirável desta série é que ela foi desenvolvida a partir do imaginário íntimo e familiar de jovens americanos que, crescidos nos anos 70, ao mesmo tempo eram capazes de criar histórias non-sense e de intenso erotismo em bizarros universos sci-fi (Music for monsters) sem perder os ingredientes fundamentais para HQs fluidas e revigorantes: senso de humor, aventuras mescladas a conflitos de ordem pessoal, jovialidade e uma dose de sacanagem. Em Palomar essa pegada pop se une a uma extensa tradição da literatura latianoamericana, do mexicano Juan Rulfo, ao colombiano García Márquez, ao peruano Varga Llosa, ao argentino Jorge Luís Borges, ao brasileiro Guimarães Rosa, etc, etc. Uma das virtudes da arte latinoamericana, reafirmadas sempre em estudos de literatura e afins ao redor do mundo, é a capacidade de transportar seu saber local, suas contingências específicas e internas, para uma posição de cultura capaz de problematizar as outras. Tendo nascido já num contexto de miscigenação e antropofagia (portanto moderna), nossa cultura tem o frescor e a inovação como elementos originários, e é possível que os quadrinistas daqui precisem levantar isso novamente.

O que a série de Palomar, que dista dos já longíquos anos 80, tem a nos avisar é que, a cada momento em que as juventudes culturais se enraízam somente em um urbanidade crescida em meio a objetos culturais globalizantes (um mesmo leque de filmes, livros, desenhos, HQs e videogames), as grandes histórias possíveis, aquelas capazes de inserir informações novas e reprocessadas a esses ambientes culturais, vão sendo deixadas para trás, até que sobrem somente versões locais dos mesmos tópicos e histórias escritas ao redor do mundo. Para o quadrinista brasileiro, fica aquela dica: esqueça teus relacionamentos amorosos, teu niilismo séc. XXI, tuas referências de filmes e literatura beat, teus discos dos Beatles e do David Bowie, e procura ouvir umas histórias da tua avó, visite uma cidade do interior, leia um livro de Guimarães Rosa, outro de José J. Veiga, outro de Mário Palmério, e ouça um disco de Pena Branca e Xavatinho.


O que é RAIO LASER?

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O QUE É RAIO LASER?

A Raio Laser é um blog, com ares de revista eletrônica, que tem como princípio pensar as histórias em quadrinhos para além de um saudosismo quarentão, para além de um cultismo tosco e “nerd”, para além do seu jabazinho youtubeiro, para além de um cânone saturado, imbecilizante. Além, meu amigo. Acima de tudo, somos um site de textos, que valoriza a preciosidade de uma ideia bem articulada, não se privando de pensar os quadrinhos como uma forma de comunicação engajada na sociedade, nos outros meios, na história. Quadrinhos como cultura.

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Escrevemos, sim, crítica, mas à moda antiga: com a intenção de que ela reverbere a criação coletiva de um imaginário para as HQs, de que um texto seja uma extensão necessária de outro, de maneira que a riqueza do diálogo entre autores e críticos provoque um crescimento da mídia. Nossos colaboradores são rigorosamente selecionados não apenas por terem domínio de causa, mas também por se proporem a fazer do exercício da crítica uma produção que vá além do comentário leigo, impressionista, que se tornou o resenhismo na internet atual. Uma produção que vá além. Além.

Cartaz de evento vinil + quadrinhos com participação da Raio Laser (2017)

Cartaz de evento vinil + quadrinhos com participação da Raio Laser (2017)

HISTÓRICO DA RAIO LASER

A Raio Laser publicou seu primeiro post, um pequeno comentário do editor Ciro I. Marcondes sobre o clássico Palomar, de Gilbert Hernandez, em abril de 2011. Naquela época, a crítica de quadrinhos brasileira na internet (e, vale dizer, em qualquer lugar) era extremamente rara. A cultura de HQs, por mais que escondesse um universo vasto, rico e complexo, se confundia ainda com “cultismo”: coleções de formatinhos, jogar adedonha com nomes de super-heróis, jovens babando com gibis do Manara, etc.

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É verdade que podemos mencionar iniciativas como o Universo HQ, Guia dos Quadrinhos e alguns outros, que quantificaram e organizaram a produção e publicação de quadrinhos por aqui - além de pioneiros acadêmicos como Álvaro de Moya, Moacy Cirne e Antonio Luiz Cagnin. A ideia da Raio nasceu desta carência: se o cinema possuía lá seus (não tantos) bunkers (ainda que polêmicos) de produção de inteligência no contexto brasileiro (Contracampo, Cinética, Críticos), por que isso não poderia recair também sobre a (cada vez mais reconhecida como) arte dos quadrinhos?

Uma amostra do Alucináticos, infelizmente recuperada pelo Wayback Machine sem sua totalidade.

Uma amostra do Alucináticos, infelizmente recuperada pelo Wayback Machine sem sua totalidade.

O sentido era produzir sim uns textos bem cabeçudos (o perfil inicial do site tinha pegada acadêmica), mas com uma raiz punk, por assim dizer. Poucos sabem, mas a Raio nasceu dos escombros de um outro site, o “Alucináticos - rock sem um puto de decência”, uma pérola da web 1.0 que cobria rock and roll e cinema, entre 2003 e 2006. A vida útil deste “portal” foi pequena, mas, na época, produziu eletrizante sinergia com a cultura roqueira de Brasília, cobrindo shows underground, soltando críticas dilacerantes e produzindo eventos. Ciro Inácio Marcondes e Pedro Brandt, os editores da Raio, vieram do Alucináticos e, querendo afiar a lâmina crítica em outras praias, criaram o blog em 2011, buscando letalidade para o xôxo mundo da recepção de quadrinhos até então. Pode-se dizer que o ímpeto anárquico da Raio foi inspirado na crítica musical, a partir da opinião de jornalistas lendários como Lester Bangs, Greil Marcus e Stephen Thomas Erlewine, além de revistas que fizeram história (Bizz, Mojo, Magnet). No cinema, André Bazin, Pauline Kael, Roger Ebert, Serge Daney, José Lino Grünewald. Muita coisa, enfim.

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É claro que alguns sites gringos (The Comics Journal, The Beat Comics Culture, Read About Comics) serviram de inspiração para o padrão de textos longos, que valorizam a análise crítica/histórica/comunicacional, mas a Raio sempre buscou uma identidade singular, que trouxesse a marca da transversalidade dentro da multiculturalidade dos quadrinhos. Textos que valorizem a estilística, os recursos de outras mídias, a experiência pessoal. Textos que querem ser textos, para leitores que querem ler textos, com todo o ritual que isso exige.

Em princípio, privilegiamos a diversidade geográfica, temporal e de gênero. Era importante falar de Hugo Pratt, como o era de Koike e Kojima, de Schulz, Laerte, Spiegelman. Era importante falar do Superman da era de ouro, assim como o era falar dos quadrinhos de Cynthia Carvalho, a genial e ainda não reconhecida roteirista de Leão Negro. Além disso, cabia observar o início do fértil ciclo atual do quadrinho brasileiro, fazendo observações minuciosas de obras de Rafael Coutinho, Bá e Moon, Lelis, etc., que se tornariam obras de referência. A Raio foi adotando uma postura consciente e intencional de slow publishing, privilegiando sempre a qualidade sobre a quantidade, e confiante num grupo pequeno, mas seleto de leitores.

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Durante os anos seguintes, Ciro ia cobrindo os aspectos mais críticos/teóricos, enquanto Pedro ficava com a tarefa jornalística. Ensaios, crônicas, nostalgia, exposições, entrevistas: tivemos de tudo no ano 2. Aos poucos, a Raio foi agregando colaboradoras e colaboradores externos. Dezenas de pessoas escreveram para o site durante estes anos todos, e colunas, hoje clássicas, se fixaram: “Rapidinhas” e “HQ em um quadro”.

A partir de 2017, a Raio ganha novo impulso com a consolidação de mais três colaboradores fixos que, pode-se dizer, revolucionaram o perfil do site. Marcos Maciel de Almeida, ex-lojista de quadrinhos e aficionado, com análises pessoais e grandes tiradas; o polivalente cineasta/quadrinista/músico Márcio Jr., com texto afiadíssimo; e o onipresente (figura lendária de Brasília) Lima Neto, de perfil intelectual e conhecimento enciclopédico. Tudo isso sempre à sombra da grande Pollyanna Carvalho, nossa brilhante webmaster, responsável por tudo que há de visual e tecnológico no site.

Entre 2017-2019, portanto, a Raio ganha maior diversidade de abordagens, e entra mais propriamente no circuito de cobertura dos lançamentos de quadrinhos (nacionais e estrangeiros), fazendo reverberar suas bem particulares listas de fim de ano, publicando dossiês e resenhas especialmente incisivas (elogiosas ou não), procurando rastrear a produção contemporânea de quadrinhos e fazendo leituras numa conjuntura cultural.

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Mesmo com a sutil mudança de perfil ao longo dos anos, alguns axiomas da Raio permanecem - como não deveria deixar de ser - imutáveis: a pauta é livre, não há obrigatoriedade de cobrir o que recebemos, e qualquer tipo de abordagem (da mais pessoal à mais técnica), é bem-vinda; o texto é valorizado, então a estilística, a capacidade de leitura e o background cultural dos colaboradores são importantes; e a avaliação crítica (quando houver, se isso se aplicar ao texto) não deve levar em consideração nada além dos próprios critérios bem pensados pelo resenhista. Sem estrelinhas. Pensar a crítica por meio da biografia do autor, do mercado ou através de uma estética da recepção, tudo é válido, mas não aceitamos nenhum tipo de jabá.

Em 2019, a Raio Laser sofreu nova reformulação, mudou seu template para o Squarespace, tornou-se mais funcional e responsivo, e algumas ações foram feitas para antecipar a ansiada comemoração de 10 anos completados com muita força de vontade e persistência. Os membros do site, além de terem contribuído, nesse ano, com postagens mais coletivas, muitas de viés político, além de terem uma atuação maior em redes sociais (fundamos nosso Instagram), participaram de publicações, escreveram prefácios de livros e ampliaram sua contrapartida no mercado editorial como um todo.

2020, por fim, marca o primeiro ano da pandemia, e muita coisa foi transformada na Raio, que, diante da tragédia mundial, ganhou injeção de ânimo e colaboração para fazer e transformar coisas, tanto com questões internas quanto na hora de criar conteúdo de qualidade sobre quadrinhos. O podcast, ambicionado há anos pela equipe, finalmente saiu do papel, e soltou 15 programas no ano. O LASERCAST mantém os princípios e convenções da Raio enquanto blog, e em cada programa são discutidos temas que podem ser bem gerais (quadrinhos eróticos, quadrinhos e cinema, quadrinhos e política, etc.) ou específicos (Flavio Colin, Conan, Asterix). O staff varia de acordo com a disponibilidade, com ou sem convidados, mas a ideia de ser um ambiente provocador, com aprofundamento, dinâmica sagaz e bom humor, continua. São discussões longas, que não raro ultrapassam duas horas de duração, para quem anseia por um mergulho profundo mesmo.

Além disso, em 2020 a Raio agregou ao staff fixo mais dois escribas: o famoso designer e professor Bruno Porto, com larga experiência no estudo de quadrinhos, biblioteca ambulante, com seus certeiros pitacos no Lasercast e textos com incrível precisão de pesquisa; e depois a jornalista e tradutora Dandara Palankof, notória em vários cantos da quadrinhosfera, que também calibrou os acalentados debates no Lasercast.

Para 2021, ano em que a Raio completa um decênio, muita coisa está sendo desenvolvida, o que inclui mais e melhores artigos, a continuidade do Lasercast, a publicação do livro ZIP - QUADRINHOS E CULTURA POP, do editor Ciro I. Marcondes, outras publicações do selo MMarte, de Márcio Jr., além de vários eventos para a comemoração da data: vídeos, camisetas, revista, etc. Quadrinhos além!

PS 1: em 2012, quando o site completou 1 ano de existência, realizamos uma festa - jamais repetida - de comemoração junto com a (hoje finada) empresa de ilustração Ilustrativa, que completava 10 anos, no (hoje também finado) “club” do Cult 22, em Brasília. Vendemos o total de 1 (uma) camiseta neste evento, algo de que nos orgulhamos muito!

A altamente esquecível festa de 1 ano da Raio Laser.

A altamente esquecível festa de 1 ano da Raio Laser.

PS 2: em 2015, a equipe (na época Pedro, Ciro e Lima) se juntou para gravar um piloto para o nunca lançado “Lasercast”, o podcast da Raio, que misturaria cultura musical relacionada a quadrinhos (buscando as raízes do Alucináticos) a comentários sobre gibis. O piloto ficou irado, mas, por razões desconhecidas até pelos deuses, nunca foi ao ar. Como se pode ver, o sonho foi realizado em 2020.

PS 3: A Raio possuía dois spin-offs, ou seja, colunas derivadas em outros sites, escritas pelo nosso staff. A primeira delas é a “ZIP - quadrinhos e cultura pop”, que Ciro Inácio Marcondes publicou todas as quintas no Portal Metrópoles, entre 2017 e 2019. O livro com os melhores textos, pela editora do Metrópoles, vai sair em 2021. A outra é a “Guerrilha Pop”, de Márcio Júnior, sobre resistência no pop e congêneres, que era publicada todos os sábados no site do jornal “A Redação”, de Goiânia, 2018 e 2020.

PS 4: Ciro e Pedro oferecem, com alguma regularidade (em Brasília), o curso em seis aulas “História das Histórias em Quadrinhos”, que tem um compromisso com a missão “além” da Raio e cobre as principais escolas de HQs mundiais.

Cartaz do primeiro curso “História dos Quadrinhos: Trajetória de uma Arte Sequencial”, ministrado pelos editores da Raio Laser

Cartaz do primeiro curso “História dos Quadrinhos: Trajetória de uma Arte Sequencial”, ministrado pelos editores da Raio Laser

Uma aula de quadrinhos!

Uma aula de quadrinhos!

MISSÕES DA RAIO LASER

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CULTO aos quadrinhos: a leitura dos quadrinhos enquanto fã, colecionador, entusiasta. É comum que, na internet, este seja um dos únicos enfoques ressaltados na escrita sobre as HQs, já que, investindo sua inteligência e vitalidade em uma arte historicamente marginalizada, o leitor precisa refugiar-se em pequenos guetos e microculturas para poder encontrar ressonância em seu objeto de entusiasmo. Na década de 2010, esses guetos se projetaram para as massas, e o culto se tornou asséptico e generalizado, o que implica ainda mais na necessidade de formação de leitores de quadrinhos “além”. Respeitar, ampliar e transitar entre estas diferentes culturas faz parte do projeto RAIO LASER.

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HISTÓRIA dos quadrinhos: o resgate da vastíssima história mundial desta forma de arte é ainda um trabalho que vem sendo feito de maneira isolada e inconstante pela internet. Mesmo assim, na medida em que trabalhos acadêmicos e jornalísticos procuram sistematizar linhagens diversas de produção em HQ, produções perdidas no tempo e na geografia do mundo vêm à tona para mostrar que as interinfluências em HQ são muito mais imprecisas, indiretas e fortuitas do que se pensa, tornando cada descoberta imprevisível e admirável. O mundo da arqueologia em HQ é um mundo de constante descoberta de obras-primas isoladas e perdidas.

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CRÍTICA e TEORIA dos quadrinhos: a resenha crítica, o comentário teórico, a apreciação impressionista ou pessoal, as abordagens inesperadas, as relações com outras formas de expressão, tudo cabe à reflexão provocada pela leitura de obras em quadrinhos, e essas reverberações são uma constante nas publicações do site. HQs de todos os tempos, todos os lugares, todos os gêneros, com o bom gosto sendo o único critério.

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COBERTURA JORNALÍSTICA dos quadrinhos: o ato de acompanhar os lançamentos, a pesquisa em publicações antigas, a entrevista, a busca por personagens que construíram a história ainda em construção desta forma de arte, tudo isso e mais compete ao trabalho jornalístico proposto pelo site.


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SOCIALIZAÇÃO a partir dos quadrinhos: enquanto objeto de interesse crescente de diversos grupos espalhados pela internet e outros meios, RAIO LASER também se propõe a ser um espaço de discussão, problematização, socialização e troca de informações sobre HQ. Assim, a interação via internet e redes sociais, com o propósito de agregar e produzir sinergias com nossa política de abordagem, é algo que vem sendo trabalhado nestes anos todos, com o site aberto a contribuições e todo tipo de troca.

POR QUE OS QUADRINHOS?

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1 - Quadrinhos não são uma forma de arte nova, apesar de sua forma moderna ter surgido junto ao cinema no final do século 19. Quadrinhos estavam presentes na linguagem de povos paleolíticos, astecas, egípcios, e muitos outros. Quadrinhos são uma forma arcaica de comunicação, e nunca deixarão de existir, mesmo que seu nome ou atribuições sociais mudem.

2 - Quadrinhos fazem parte de um circuito transmídia comunicacional poderoso, que faz circular bilhões de dólares no mundo inteiro, sendo um participante ativo do jogo global que envolve a economia da cultura. Sua influência não pode ser desprezada como algo que modifica tudo o que vivemos e fazemos.

3 - Os quadrinhos foram renegados por regimes políticos, estéticos e morais durante o século 20. Sua periculosidade (enquanto discurso, enquanto comunicação e enquanto arte) foi logo detectada nas primeiras décadas de existência, e seu conteúdo foi controlado - com medo de uma possível interferência na mentalidade juvenil - durante quase todo o século passado. Os quadrinhos merecem e precisam da renaissance pela qual vêm passando nas últimas décadas.

4 - Mesmo que nem todos saibam disso, a cultura de quadrinhos é tão vasta e rica quanto a da literatura, do cinema ou da música no século 20, porém o alcance desta diversidade é menor, graças à sua guetização e estigmatização. Abrir o mundo das HQs a todos é abrir uma dimensão inteira, uma mídia na qual se pode mergulhar a vida toda. É abrir uma nova lente de leitura do mundo.

5 - Por que os quadrinhos? Porque, em sua natureza ainda primitiva e essencial, são a arte mais importante para este século 21.

Equipe Raio Laser (quase) completa! Da esquerda para a direta: Márcio Jr., Lima Neto, Pedro Brandt, Ciro I. Marcondes e Marcos Maciel de Almeida. Foto por Thaís Mallon.

Equipe Raio Laser (quase) completa! Da esquerda para a direta: Márcio Jr., Lima Neto, Pedro Brandt, Ciro I. Marcondes e Marcos Maciel de Almeida. Foto por Thaís Mallon.