Lucca Comics: cinco dias alucinantes

Lucca Comics: cinco dias alucinantes

O festival Lucca Comics and Games (LCG) é considerado o maior evento dedicado a quadrinhos da Itália. Não é para menos. Todos os anos a cidade de Lucca, localizada na região da Toscana, atrai cerca de 250 mil visitantes (quase o triplo da população local) ávidos para conhecer e consumir fumetti, games, RPG, bonecos, fantasias e itens correlatos. Os cosplayers também são uma atração à parte. É praticamente impossível não esbarrar com pessoas uniformizadas com roupas caras, desconfortáveis, criativas ou simplesmente ridículas.

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Rapidinhas #12

Rapidinhas #12

As Rapidinhas estão entre as mais tradicionais colunas da RAIO LASER. Quem não gosta de receber um pacote fresquinho de resenhas curtas, sobre quadrinhos dos mais mainstream ao mais independente, sempre com franqueza e qualidade? Desta vez são 13 novos textos. Leia a compartilhe o que te interessar!

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Apenas um gibi de super-herói

por Ciro I. Marcondes

1 – O paradoxo “super”

Ziraldo foi um dos que percebeu o "kitsch" em todo super-heróiPara um fã de quadrinhos que vá além de ser simplesmente um “fã de super-heróis”, o gênero mais popular deste meio vai sempre lhe parecer, de certa forma, como um tipo de paradoxo. Afinal, os super-heróis serão sempre aquele tipo de quadrinho que ainda persiste na ordem do afetivo, que carece de qualquer racionalidade, mas ainda injeta vitalidade pela energia dos personagens, pelo carisma de seus conceitos ou por pura e simples tradição. Também costumo pensar que continuamos lendo super-heróis (quando isso eventualmente acontece) porque somos quase obrigados a isso pelo bombardeio midiático que doutrina o gosto de hoje em dia a amar essa “mitologia” do impossível, essa exaltação do kitsch, do sem-noção, do ridículo. Afinal, alguns podem até pensar que a figura do nerd tenha alguma coisa de “cool” nesses anos 2000/2010, mas eu prefiro ajuntá-lo nos balaio kitsch dos cultuadores de desenhos animados dos anos 80, dos colecionadores de vinil que não passaram nem pelo CD, ou daqueles que passam 15 horas por dia jogando qualquer videogame banal achando que estão vivenciando alguma grande forma de arte. Enfim, me parece que, se a figura do super-herói de algum jeito virou uma coisa descolada, não é porque ele ficou cool, mas sim porque o mundo ficou kitsch, sem noção e um pouco preso em seus eternos 16 anos de idade (devo essa ao Pedro Brandt).

Moebius

Já discuti a falência do modelo dos supers antes em Raio Laser (aqui e aqui). Então, por que continuar com este assunto? Antes de querer parecer ainda mais blasé e despertar a ira de mais fanboys, melhor dizer na lata: eu ainda leio quadrinhos de super-heróis (de vez em quando). Não apenas porque ache que ainda haja bons profissionais na área (tanto em roteiro quanto em ilustração) como gosto, evidentemente, de reler os clássicos, e entender a relação que faz um assunto abstruso (para mim) gerar obras incríveis como o Demolidor de Miller, Juiz Dredd de Brian Bolland, Thor de Walt Simonson, Conan de Roy Thomas, Rocketeer, Hellboy, etc, etc. Existe, na verdade, um universo de coisas legais feitas dentro deste formato no passado, coisas que mudaram a indústria e a arte dos quadrinhos. Como eu disse, um paradoxo: por mais que você rejeite e considere estes quadrinhos descartáveis e rasteiros, eles continuam voltando, por estes motivos e outros. O adolescente em você persiste, nunca morre. Mais que nostalgia, é um eterno retorno de si mesmo, de um estado de alma essencial ao nosso apego pela vida, algo sem o qual não conseguimos seguir em frente.

Batman: noir + expressionismo

O objetivo deste texto, aliás, caso não tenha percebido, é fazer um elogio a estes quadrinhos. E não estou falando de Watchmen ou Cavaleiro das trevas ou Miraclemen ou Homem Animal ou Os invisíveis. Estou falando do quadrinho ordinário de banca, da aventura prosaica, do divertimento semanal sem compromisso com agendas ideológicas (como o caso do quadrinho de banca contemporâneo) ou com a HQ state of art. Vejam, por exemplo, o caso das famosas space-operas francesas (nos moldes de Valerian, O andarilho dos limbos, Lone Sloan, etc), tão famosas por sua “maturidade”, por serem mais “realistas”, embarcarem no mundo “psicodélico” da sci-fi. Lendo estas obras, que são, realmente, incontornáveis, vemos que seus conceitos se aproximam mais do mundo dos super-heróis do que efetivamente de algum tipo hard de ficção científica. São geralmente aventuras engenhosas que se aproveitam de uma ciência que se aproxima da mágica (quando não é mágica de fato) para desfilar perfis de criaturas exóticas, lugares hiperimaginativos e sugestões de sexo (quando não apenas sugestões) e violência. Ora, isso não difere muito de uma boa HQ de super-heróis. Na verdade, em algum momento esquecemos no quão (pseudo) científico o conceito dos supers sempre foi, no sentido de se aproximar da ficção pulp barata do romance de banca do começo do século (dime novels). O Super-Homem nasceu assim, como uma espécie de ficção-científica pulp com uma órbita meio torta, e dele descende toda geração de ouro da DC (nunca esqueçamos que o Batman, por sua vez, nasceu do noir e do expressionismo, o que talvez justifique sua maior complexidade).

Futuropolis está na origem da coisa toda.

O que quero dizer é: talvez exista uma permuta maior do que se pensa entre o quadrinho de sci-fi europeu e o comic book de super-herói americano, não apenas por possuírem esta origem comum (o pulp), mas também porque ambos se ancoram, mais do que num mundo eticamente complexo e cientificamente acurado, no campo da fantasia livre, no apelo eterno ao devaneio juvenil, na nossa insistente incapacidade de largar o sonho como uma possibilidade para a vida. Daí partirmos de coisas grosseiras como o americano Buck Rogers e o francês Futuropolis, na aurora dos quadrinhos, e chegarmos a extremos de sofisticação em Richard Corben e Moebius. Se o quadrinho de super-herói hoje parece uma refração pálida e impotente em relação ao dínamo de vitalidade juvenil que já foi, talvez não seja o caso de culpar certa limitação do gênero mais do que culpar uma indústria estéril e prostituída que continua oferecendo produtos porcos de baixíssima inventividade a uma legião de fãs-zumbis renovados agora pelo gargantuesco sucesso dos filmes de super-heróis, que, convenhamos, caiu do céu para estas editoras à beira da falência. Se a fantasia heroica hoje mostra sinais claros de esgotamento (por “hoje”, talvez devamos entender desde os anos 80), presa a moldes e clichês (e implodida por sua própria inviabilidade), é o mesmo sentido de liberdade de fantasiar que criou estes clichês que permitiu que Moebius atrelasse esta liberdade à forma, e desenvolvesse seu método de criação livre a partir dos anos 70, mudando os processos que conhecíamos nos quadrinhos.

Sci-fi francesa

Super-herói americano

2 – X-babies e o psicodelismo irracional do quadrinho de super-heróis

Curiosamente, toda este reflexão me veio a partir da leitura de um quadrinho absolutamente banal, cria dos anos 80/90 (na realidade ele é de 89, mas foi publicado no Brasil nos anos 90), que poderia ser facilmente tratado como totalmente descartável e até meio retardado. Trata-se da “edição especial inédita Excalibur e X-Babies” lançada pela Abril que “encantou” tanta gente numa época em que os quadrinhos de super-heróis ainda eram um tanto mais inocentes. Veja você: os X-Babies são uma criação de Mojo, um ser francamente copiado de Jabba The Hutt, que vive em uma dimensão paralela e comanda uma espécie de programa de televisão cujos astros são justamente as cópias mirins dos X-Men. Estas pequenas e adoráveis fofurinhas, que imitam de maneira infantil as características dos X-Men originais (na época daquela equipe com Cristal, Longshot, Destrutor, etc.) passam então a fugir do regime de semiescravidão a que Mojo lhes submete e procuram, em nossa dimensão, a ajuda de Kitty Pride, então no grupo britânico de mutantes Excalibur. Parece uma história imbecil ou no mínimo um tanto amalucada, fora da casinha? Pois eu me perguntava o que me atraiu nesta história nos anos 90 e creio que foi justamente o fato de ela, digamos, “vibrar” numa sintonia mágica um tanto deslocada da preocupação geral dos super-heróis em serem vergonhosamente fantasiosos, mas com uma pretensão realista (daí a esteira infinita de technobabbles destas histórias).

O que atraiu a juventude dos anos 90 a este gibi, expandindo o argumento, tem origem tripla: em primeiro lugar, o próprio apelo “fofo” dos “babies”. Impossível olhar para aquela capa em ação diagonal (posição tão clássica) e não ter curiosidade sobre quem eram e como surgiram aquelas versões mirins, e mais: como elas podiam pertencer a um arco “sério” dos X-Men? Em segundo lugar, o roteiro de Chris Claremont, que, justamente, com todo bom humor e engenhosidade, responde às perguntas do item anterior. O grande inovador dos X-Men obviamente não vem, em história tão despretensiosa, querer reiventar a roda, mas brinca de maneira metalinguística com o processo de criação da Marvel e dos X-Men, criando uma espécie de “centro interdimensional” cheio de portais por onde os X-Babies passam. Cada “portal” leva a uma saga clássica da Marvel (como Guerras secretas ou Ataques Atlantes). Quando os Babies passam por um destes portais, são transformados em suas versões correspondentes a cada saga, ligando o leitor afetivamente não apenas ao universo da Marvel, mas a um continuum inesgotável de histórias dos X-Men, sugerindo já a ideia de que todos os quadrinhos de super-heróis são, na verdade, uma só mitologia.  

Claremont se aproveita do ambiente londrino da história para brincar também com a cena roqueira da cidade, com casamentos reais e outras piadas bem sacadas, dando a ela um tom de aventura tresloucada recheada de citações não tão manjadas. No final das contas, você se sente carregado pela leveza infantojuvenil desta one shot não porque você seja bobo ou porque a história seja particularmente cativante, mas sim pela série de estímulos que todo gibi honesto naturalmente traz: movimento, leveza, humor, cores, desenvoltura, etc. Ou seja: basicamente, o que encantou os primeiros fãs de quadrinhos nas páginas coloridas das sunday strips e também o que encantou os primeiros fãs do comic book quando ele apareceu nos anos 30. Ainda é, acima de todo e qualquer gênero, a cor vibrante, a emulação do movimento, diálogos espirituosos e um mergulho no surreal que nos encantam nos quadrinhos. Sem este estímulo semiótico básico os quadrinhos não existiriam como uma arte que possui suas propriedades específicas. 

Por isso é uma pena que os quadrinhos de super-heróis, cada vez mais sombrios, realistas e obscuros, estejam perdendo esta miríade de estímulos porque, como o gênero não se sustenta por si só, vai acabar se transmutando para um animal diferente e esquizofrênico, se é que já não o é. Pensemos, portanto, no terceiro, último e mais importante fator de apelo de Excalibur e X-Babies: a arte de Arthur Adams. Rica em detalhes mínimos, rostos com expressão forte, lindo modelamento dos personagens, cheia de movimento e angulações – tudo sem parecer a pasteurização grosseira que temos hoje –, esta arte é a síntese do que representou o quadrinho de super-herói desde a “revolução Marvel”. Ou seja, por ao menos quatro décadas. O que nos leva a pensar em como o apelo icônico (ou seja: da plasticidade da imagem) do quadrinho de super-heróis muitas vezes supera a narrativa em si, carregando-nos pelas páginas como num fluxo verdadeiramente psicodélico que, efetivamente, não fica tão longe daquele dos quadrinhos sci-fi europeus.

Percebi isso tudo justamente quando pude ver mais de trezentos originais em uma exposição “A arte dos super-heróis Marvel”, que contava com pranchas de nomes como Kirby, Ditko, Buscema, Romita (pai e filho), Byrne, Adams, entre dezenas de outros. Olhar para aquelas páginas fora de contexto, a maioria sem cores, com pequenas imperfeições, correções, lápis à mostra, títulos recortados e pregados com cola... tudo aquilo ativou um certo senso plástico inativo sobre os super-heróis. Mesmo atrelados a uma indústria desgastante e injusta (Kirby que o diga), trabalhando como operários em busca de um ganha-pão, estes artistas intuíam um senso plástico que não difere, em essência, do de um Michelângelo. O que estes mestres fizeram foram esculturas em quadrinhos, quando o que se ordenou a eles foi que fizessem sabonetes. Quero dizer que, além de resgatar o sonho de voar, há no quadrinho de super-herói uma atração por formas, cores e volumes em movimento que não se distanciaria de uma arte abstrata ideal em duas dimensões prevista pelo filósofo Berkeley – um mundo exclusivo de cores e formas, que existe a não ser para ser isso, de maneira pura. Para além de qualquer sociologia, estes quadrinhos, enfim, se encontram com elementos primevos de qualquer arte: atraem pelo irracional. E foi este impulso (repito: mais do que um sentido nostálgico) que me fez olhar para esta edição de Excalibur e X-Babies

e retirá-la da estante puída do sebo sujo na qual ela repousava, pagar cinco reais por ela, lê-la meses depois e mergulhar num turbilhão de reflexões. A mesma irracionalidade que me faz ser ao mesmo tempo um fã idiota e um hater dos super-heróis. 

A psicodelia inerente a todo quadrinho