Os super-heróis e sua essência: uma discussão válida ou uma falsa ideia conceitual?

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por Marco Antonio Collares

Esses dias, novamente participei de um debate sobre um velho assunto: super-Heróis. Realmente era mais um daqueles debates homéricos e cheios de argumentos sofisticados da parte dos debatedores, quando um amigo postou uma crítica de um especialista sobre o segundo e o terceiro filme do Capitão América, Soldado Invernal e Guerra Civil, respectivamente.

O autor da crítica fez comparações dos filmes aqui citados com outros filmes de super-heróis recentes, mais especificamente, a trilogia do Batman, de Christopher Nolan, X-Men: First Class, Homem de Aço, de Zack Snyder, Batman vs Superman, Liga da Justiça, Vingadores, tanto o Guerra Infinita quanto Ultimato, entre outros.

Isso ainda rende…

Isso ainda rende…

Muito já se falou sobre todos esses filmes, hoje já canônicos no que concerne ao gênero no cinema, e não quero me deter muito nos mesmos. Vamos dizer, entretanto, que a discussão se resumiu à premissa de que os super-heróis de todos esses filmes fazem parte, mais ou menos, de uma onda realista de representação do arquétipo “super-herói”, um olhar no qual estaria expressada a complexidade de nosso mundo e no qual os temas abordados nos filmes não mais se apegariam ao binômio maniqueísta do bem contra o mal, tão tradicionais desse gênero narrativo.

Vamos dizer que, apesar de ainda existir a típica luta do bem contra o mal e todos os filmes de super-heróis mais recentes, as coisas seriam menos "preto no branco" do que parecem ser à primeira vista. Pois bem, já escrevi algo a respeito e tenho uma opinião muito pessoal de que nós, seres do mundo contemporâneo, apenas acreditamos que não somos mais tão maniqueístas assim, uma crença muitas vezes carente de conteúdo em minha opinião. Mas não quero me demorar nesse ponto, até porque eu sairia do debate aqui apresentado.

Pretendo apenas colocar aqui as opiniões de um dos estudiosos que mais entende de HQs de super-heróis entre os que eu conheço, meu amigo e colega historiador (também filósofo), Artur Lopes Filho, doutorando em História e que, além de palestrar e ensinar sobre histórias em quadrinhos pelas universidades do Brasil afora, foi um dos meus maiores incentivadores a estudar o assunto em questão, emprestando livros especializados no assunto e indicando tantos outros sobre HQs, cultura pop e mídias em geral.

No meio do debate sobre os filmes elencados acima, ele postou algumas considerações que podem ser dimensionadas aqui. Eu então reproduzirei abaixo o que foi escrito por ele e depois efetuarei, nesse espaço, minhas próprias ponderações a respeito, mais como um exercício para debate do que qualquer pretensão de ser conclusivo sobre o assunto. Abaixo as referidas palavras do Artur:

"Artigo interessante... como o Marco Antonio Collares já pontuou muitos fatores relevantes, não vou me fazer repetir, mas algumas coisas são interessantes ressaltar: Um fator crucial que temos dificuldade de lidar é com a dinâmica discursiva não-objetiva (confusa). O que isso quer dizer? Bom, de maneira resumida, significa uma "parcialidade", uma interferência discursiva comum quando estamos tratando de assuntos que nos envolvem emocionalmente, como para nós é o caso das HQs e dos demais universos relacionados (tomando partido em prol de um puritanismo ilusório ou de um "pecaminoso" adultério com a essência de nossos personagens queridos).

Por isso temos de levar em consideração; Quando tratamos de uma história (a exemplo das HQs), estamos tratando de narração, isto é, toda história é narrada, e por ser narrada, possui um narrador, alguém que conta tal história. Por ser uma pessoa, está sujeita (direta ou indiretamente) a interferir no processo narrativo ao induzir o personagem a agir a favor ou contra algo que ele (como pessoa) considera alvo digno de tal ação.

Seguindo uma linha psicológica/filosófica das teorias da narração, defendo que a mítica do personagem ou de um universo está sempre sofrendo transformações na medida em que é narrado em épocas diferentes por pessoas diferentes em culturas diferentes; para piorar, tudo sofre maiores transformações quando interpretado pelo "publico", desse modo gerando uma grande problema quando tentamos dizer a "verdade" ou aquilo que constitui a "essência" de um personagem (por isso podemos afirmar existir tantos Batman, Capitães Américas, Homem-Aranha e etc., quanto roteiristas que narraram suas histórias, quanto fãs que os interpretaram)...

O Aranha de Lee/Ditko

O Aranha de Lee/Ditko

Em segundo lugar, sempre ressalto que, apesar de amarmos o universo das HQs de super-heróis, não podemos negligenciar o fato de as mesmas serem parte de uma indústria que, queiramos ou não, tem interesses financeiros imediatos vinculados à sua produção, isso justifica os megaeventos semestrais com revelações "surpreendentes" (para o público geral); o relançamento de histórias, graphic novels e coleções antigas (para o público saudosista - com preços mais "apimentados" que a média, visto se tratar de adultos dotados - teoricamente - de renda própria); a transformação ou renovação dos velhos heróis para o público adolescente contemporâneo (adaptando e modificando, muitas vezes, aquilo que nós velhos chamamos de "essência" do herói) e inclusive na produção do "quadrinho" B, ou o velho underground, que também possui seu público consumidor.

Essas duas esferas estão em constante relação em uma dialética pulsante, aceitar somente o aspecto industrial é tão negligente quanto aceitar somente o caráter "criativo", "inovador" e "transformador" de uma "boa" ideia.

Assim, de minha parte, assumindo uma clara posição dialética, digo que o filme do Capitão América ou outros e mesmo todo universo Marvel atual reflete um pouco da cultura em que vivemos hoje, onde falar de um moralismo maniqueísta está fora de questão (algo um tanto ingênuo inclusive), mas, igualmente, explora esse universo com fórmulas atrativas para manter o público consumidor ativo, simples assim..."

Depois de algumas considerações nossas, tanto minhas, como de outros tantos amigos, escritores, desenhistas, fãs, estudiosos e pseudo entendidos no assunto de cultura poo em geral, mídias e HQs de super-heróis em particular, o mesmo Artur postou as seguintes palavras:

Com relação ao Batman do Nolan, é um filme divertido, mas as pessoas encontram mais polêmicas do que ele apresenta... a questão do personagem se encontrar, se reerguer e etc., mexe diretamente com a mítica do herói amplamente difundida; digo mítica pois, apenas em se tratando de HQs, se difundiu uma ideia universalista de herói que, de fato, não corresponde com aquilo encontrado nas páginas das HQs dos anos 30/40.

“Batman de Nolan”

“Batman de Nolan”

A ideia do "escoteiro" foi amplamente difundida, fique claro, após a consolidação do famigerado "Comics Code Authority" (pós-Segunda Grande Guerra); antes disso, a indústria era regida pela venda, do vigilante assassino, ao bom moço vestido de patriota (é só pesquisar).

Mas se existe algo comum nas HQs de heróis dos anos 30/40 é o fato de todos (sem exceção) serem movidos por um princípio de justiça ideal (transcendental), comum, da mitologia à religião, presente na política e nos sistemas econômicos ao longo da grande história.

Esse ideal transcendental não é novidade, o "Comics Code Authority" apenas pasteurizou aquilo "idealizado" enquanto conveniente aos USA naquele determinado período (vindo a se popularizar enquanto "essência" do herói no ocidente).

Assim, todo esse discurso de romper com a tradição levando tons de cinzas e etc., corresponde a uma reação àquilo popularizado enquanto mítica devido a uma pasteurização estadunidense oriunda de um código de conduta instituído.

Mas o princípio transcendental está lá, a ideia universalista de uma justiça maior encarnada na ação do herói... bom isso não é novidade... Batman acima da lei, Capitão América e seus valores "superiores", até mesmo Super Homem (que na sua primeira HQ invade a casa de um senador para obrigá-lo libertar um inocente de morrer na cadeira elétrica).

O que Nolan mostra em seus filmes não é grande novidade e está longe de ser uma "revolução" de proporções homéricas, como alguns entusiastas tentam aclamar, como se as HQs nunca mais fossem ser as mesmas... de minha parte fico com a diversão que o filme me proporciona (em um âmbito emotivo), particularmente me divirto muito com todas as produções que temos hoje, mas atribuir todo esse valor é construir uma nova mítica.

Bom, vamos por partes a partir daqui. Como historiador, eu não posso me furtar ao tratamento do específico em qualquer análise que faço do passado, aos diferentes tempos e as múltiplas historicidades existentes no processo de consecução de uma obra artística, seja uma HQ, uma narrativa fílmica e até uma trama de criação de um personagem da literatura ou de outra mídia.

Trato aqui, especificamente agora da mídia história em quadrinhos, mas tais premissas valem para as mais diversas mídias e produções culturais existentes. Artur demarca isso sabiamente em suas colocações, quando expressa que existem diferentes contextos nos quais os super-heróis em suas particularidades foram produzidos. Além disso, ele reitera que procurar uma única "essência" no que tange a um personagem pode soar um mero saudosismo de fãs puristas. Tais fãs, por possuírem certa identidade com seus heróis favoritos, as vezes não atentam para tal fato, defendendo uma essência diante de quaisquer pretensas mudanças.

Por tais motivos, quando falamos de um Capitão América, de um Batman, de um Homem-Aranha, de um Super-Homem e tantos outros super-heróis hoje canônicos, precisamos pensar realmente de qual desses personagens estamos falando em relação a si mesmos em suas representações no tempo, em qual contexto específico.

Seria o Homem-Aranha do Stan Lee, do Steve Ditko, do John Romita Sr., ou do Todd McFarlane? Seria o Batman de Bob Kane, Neil Adams, Dennis O'Neil ou aquele do Frank Miller? Seria o Super-Homem do John Byrne ou aquele dos dois jovens nerds que o criaram, aquele sujeito imponente que saltava de prédio em prédio e que literalmente espancava políticos e mafiosos pelas ruas de Metrópolis, quase que a expressão da ideologia do operariado dos anos 1930, nos dizeres de Grant Morrison?

Essência

Essência

Quem sabe seria outro Super-Homem, aquele interpretado pelo aclamado Christopher Reeve? Ah, existe também o personagem do outro Reeve, mais antigo. Escolhamos um deles não é mesmo? E o Capitão América, seria o patriota ufanista criado por Jack “Rei” Kirby e Joe Simon ou seria aquele pretenso escoteiro fora de seu tempo e lugar que foi encontrado pelos Vingadores nos anos 60, em uma trama escrita por Stan Lee?  Ah, também existe aquele Capitão América do “macarthismo”, que perseguia implacavelmente os comunistas pelas ruas dos EUA, muitas vezes espancando-os.

Não há como negar o quanto tais perguntas me parecem pertinentes, assim como seria pertinente perguntarmos o mesmo antes de respondermos qualquer coisa sobre o personagem histórico, Júlio César. Afinal, de qual César poderíamos falar? Do personagem mencionado pelo biógrafo Suetônio, aquele de Plutarco, colocado em paralelo com Alexandre Magno ou aquele César descrito por ele mesmo em suas duas obras publicadas?

César: personagem histórico que se submete às regras da ficção

César: personagem histórico que se submete às regras da ficção

Uma pergunta bastante estranha se considerarmos que se trata de um personagem histórico, ou seja, alguém que, diferentemente do Super-Homem ou do Capitão América, existiu de verdade. Mesmo assim, a julgar por tantas interpretações existentes sobre essa respectiva figura histórica, trata-se de uma questão que pode ser feita, ao contrário do que imaginamos à primeira vista.

Além de tudo isso, devemos ressaltar a forma como o público trata os super-heróis, tal como colocado pelo colega e amigo Artur Lopes Filho em suas linhas de análise, visto que a recepção do público interfere naquilo que se torna canônico no personagem, naquilo que vai se tornar o super-herói com o tempo, enquanto gênero.

Existe uma área de estudos acadêmicos acerca da recepção de uma obra por parte do público no que concerne aos mais diversos artefatos culturais e científicos existentes. Trata-se, em outras palavras, de uma área ampla de estudos sobre como o público interpreta uma dada obra ou artefato cultural em dado contexto histórico, social e cultural, sem falar nos significados concebidos pelo público no ato de leitura e apropriação da própria obra.

A ideia em voga pelos especialistas em geral é que o público não é totalmente passivo nesse processo, ou seja, o público não apenas degusta as obras dos produtores da cultura, mas também gera interpretações que igualmente influenciam os ditos autores em suas produções. Nesse sentido, o público do contexto do macarthismo, por exemplo, embebido pela paranoia anticomunista de seu contexto histórico, poderia ter influenciado os autores (que também eram pessoas influenciadas pela cultura da época) a resumirem as histórias do Capitão América ao maniqueísmo da Guerra Fria, fazendo dele um implacável perseguidor de comunistas infiltrados nos EUA.

Capitão América e Guerra Fria

Capitão América e Guerra Fria

Na mesma visão, o público do Homem-Aranha do contexto dos anos 70 poderia ter influenciado uma famosa narrativa do personagem em questão, quando tratou do consumo de drogas e seus efeitos nefastos sobre os jovens na figura do amigo de Peter Parker, Harry Osbourne, visto que era um assunto na pauta cultural e política daquele contexto histórico.

Isso sem falar nos tipos de público existentes, na faixa etária e até na posição social dos leitores. Luke Cage, por exemplo foi um herói negro voltado para um público específico dos anos 70, a saber, os negros das periferias dos EUA que lutavam por direitos civis. Tal contexto afetou seus autores e suas narrativas, bem como a forma como o herói deveria agir, embebido de valores específicos expressos por ele em suas tramas, ainda que o filtro efetuado fosse feito por homens brancos que nada entendiam sobre o universo dos negros americanos de sua época.

A segunda consideração diz respeito ao fato da existência de uma indústria cultural de quadrinhos bastante atuante nas produções e nas narrativas de tal mídia e gênero. As ponderações de Artur Lopes Filho se mostram novamente pertinentes, visto que os lucros condicionam os artistas e suas respectivas produções culturais. Algo que jamais deve ser deixado de fora de qualquer análise.

Isso faz parte do métier corporativo e quem conhece a excelente obra de Sean Howe sobre a história da empresa, Marvel Comics - A História Secreta, compreende que as decisões corporativas em nome da busca por lucros rápidos condicionaram muitas histórias e até personagens importantes, legando para o público consumidor algumas características específicas desses personagens.

Ora, megaeventos, crossovers e até as famosas novelas gráficas entraram na pauta das grandes editoras no final dos anos 70 e no decorrer dos 80, tanto que o roteirista inglês Alan Moore chegou a dizer certa vez que “as grandes editoras descobriram o segredo de elevar as vendas ao máximo. Bastava colocar na capa de qualquer historieta de baixo calão o selo Graphic Novel, como se tratasse de uma trama especial voltada para um público especial, mais adulto e crítico, que isso venderia sem igual”.

Quando Artur Lopes Filho reitera que aceitar somente o aspecto da indústria é tão negligente quanto aceitar somente o aspecto artístico criativo dos autores (em um binômio antitético intransponível e separado), ele está simplesmente expressando o que deveria ser óbvio para todos nós, mas que muitas vezes não o é por questões de pura paixão ou ignorância: a arte criativa dos artistas e quadrinistas sempre andaram e ainda andam lado a lado com a indústria cultural no processo de criação dos super-heróis mais famosos de todos os tempos, em meio a embates entre criação e pasteurização, sendo ao mesmo tempo partes de produções conjuntas, imbrincadas, de tal forma que existem espaços para a criatividade em alguns momentos, enquanto que em outros, essa mesma criatividade é podada pelos interesses corporativos.

A dialética apregoada aqui está assim em duas esferas distintas e ao mesmo tempo entrelaçadas. Em primeiro lugar, na relação do artista com a indústria cultural e, em segundo, na relação intrínseca entre o contexto presente de produção do artefato cultural e a tradição que envolve os super-heróis em especial, na encruzilhada entre inovação e necessidade de certas permanências que envolvem o gênero (como os uniformes colants multicoloridos que são retirados de cena em alguns momentos específicos de veiculação dos heróis).

Aqui gostaria de tecer então uma breve análise final sobre o assunto. Falar na essência de qualquer coisa, incluindo dos super-heróis das histórias em quadrinhos, para um historiador, é completamente estranho à sua profissão, visto que nós, historiadores, preferimos as especificidades frente às permanências (falar em essência da guerra em si não explica o acontecimento II Guerra Mundial para a maior parte dos historiadores).

Ao mesmo tempo, não consigo deixar de tratar daquilo que defino como o caráter icônico dos super-heróis, algo que talvez não esteja na origem do gênero, mas que foi se definindo com o tempo. Isso porque existem alguns padrões que estão presentes em diferentes contextos (assim como acontecia com os mitos existentes no mundo antigo greco-romano, por exemplo), como a luta do indivíduo contra o crime, algum tipo de vilania à qual o super-herói precisa enfrentar, algum tipo de mal interior ou exterior que ameaça os chamados inocentes, poderes ou habilidades extraordinárias (e o termo super-herói é duplo, não contempla somente os poderes e as habilidades, mas também a retidão moral), algum tipo de plano de dominação e destruição por parte do antagonista do herói e por aí vai.

Também está presente no gênero assim definido algum tipo de discussão moral típica das narrativas míticas, envolvendo não somente a trajetória do herói, segundo o modelo construído por Joseph Campbell, mas igualmente o ensinamento moral para seus leitores, uma espécie de educação moral que não era incomum, por exemplo, entre os gregos antigos quando seus poetas aedos ou rapsodos cantavam e/ou recitavam seus mitos, o que se constituiu na chamada paideia da polis grega do século V A.C.

Batman de Kane/Finger: a era de ouro tem muito a nos ensinar na discussão sobre “essência”.

Batman de Kane/Finger: a era de ouro tem muito a nos ensinar na discussão sobre “essência”.

Podemos falar realmente de muitos Capitães Américas, mas o uniforme, a ação, a luta contra algum vilão declarado e estereotipado, seja sutilmente ou não, será comumente a tônica das tramas do personagem, e mesmo quando mudanças ocorrerem por motivos variados, muito poucas coisas tirariam, pelo menos de boa parte do público, a ideia de que se deve torcer pelo protagonista da história, por motivos óbvios de heroísmo clássico e, em parte, épico.

Algum tipo de ideal de justiça e liberdade estará presente nas tramas dos heróis, algum grau de responsabilidade e comedimento (ainda que a linha seja muitas vezes elástica e seja esticada ao máximo por algum artista menos ortodoxo). Além disso, ainda que possamos, em algum momento de nossas vidas, discutir tais conceitos, seja de liberdade, justiça e responsabilidade, ainda que possamos afirmar que eles mudam com o tempo, de acordo com cada autor, público e até com a orientação da indústria cultural como um todo, tais ideais não serão completamente banidas do gênero super-heróis. Nada de novidade até aqui e não devemos deixar de ressaltar o óbvio

Afirmar que os super-heróis são parte de uma narrativa mítica com tonalidades contemporâneas (de meados do século 20 em diante) e ao mesmo tempo expressam aspectos de um ideário bastante específico, vinculado em grande parte à ideologia dos EUA do período do entre guerras e principalmente, do decorrer da II Guerra Mundial, é necessariamente demarcar a dialética apregoada pelo colega historiador.

Isso porque, enquanto parte de narrativas míticas, os super-heróis trazem questionamentos de cunho moral que dizem respeito a todos nós, seres humanos (e isso nos mais variados contextos, o que expressaria questões morais de cunho universal), alguns bem feitos, articulados e atuais, outros nem tanto, alguns um pouco mais profundos, a maioria, bastante rasos e carentes de complexidade.

Porém, enquanto parte de um ideário estadunidense que aos poucos viajou o mundo, os super-heróis, com o tempo, se tornaram uma das múltiplas expressões desse ideário tipificado, do sonho americano por justiça e por propriedade e até por possibilidade de ascensão social com a demarcação da livre iniciativa individual, da luta por direitos e por mais liberdade de expressão, até à busca pela ordem social, política, institucional, seja como agentes do poder estatal (na época da Guerra, por exemplo), mas muitas vezes atuando acima ou em paralelo a esse poder, como indivíduos livres e apaixonados pelo que fazem, e que se sacrificam por seu ideal individual.

Quando o Artur Lopes Filho afirma que o super-herói “escoteiro” não representava um padrão dos anos 30/40, ele está totalmente correto em meu entender, visto que os heróis não surgiram como idealistas comedidos, mas como vigilantes detetivescos duros, brutais, quase que policialescos ao extremo, na esteira dos heróis brutais das revistas pulp.

Super-Homem de Siegel/Shuster: vigilantes brutais

Super-Homem de Siegel/Shuster: vigilantes brutais

Com o tempo, o caráter icônico e até “escoteiro” de alguns deles passou a ser uma referência do comedimento necessário ao herói, pelo menos em boa parte de suas trajetórias individuais e narrativas. Muito disso vinculava-se ao Comics Code Authority, que definia um padrão de conduta, um maniqueísmo raso ao extremo e externado pela indústria como forma de garantir a manutenção das publicações, distribuição e vendas.

Mas, como historiador, eu tenho de reiterar o contexto mais amplo da Guerra Fria e o maniqueísmo inerente de um mundo bipolar, fora o aspecto do pensamento histórico de longa duração, segundo os preceitos do historiador Fernand Braudel. Ora, longa duração no que tange ao pensamento que se afirmou por oposição, na linha do terceiro excluído, no qual o sujeito possui uma escolha entre duas possibilidades, o certo ou o errado, o bem ou o mal, a verdade ou a mentira.

Não precisa ler a Bíblia nem qualquer outra obra religiosa, científica ou mesmo mais tradicional para evidenciarmos que o pensamento que opõe coisas por pares faz parte da dita história ocidental, seja isso positivo ou não. O tal código de conduta da indústria cultural dos quadrinhos de super-heróis não explicaria, portanto, todo o maniqueísmo do herói escoteiro contra o vilão maligno por natureza, o que é reiterado por Artur Lopes Filho quando afirma que "se existe algo comum nas HQs de heróis dos anos 30/40 é o fato de todos (sem exceção) serem movido por um princípio de justiça ideal (transcendental), comum, da mitologia à religião, presente na política e nos sistemas econômicos ao longo da grande história. Esse ideal transcendental não é novidade, o "Comics Code Authority" apenas pasteurizou aquilo "idealizado" enquanto conveniente aos USA naquele determinado período (vindo a se popularizar enquanto "essência" do herói no ocidente).

Assim, todo esse discurso de romper com a tradição, levando tons de cinzas ao gênero dos super-heróis corresponde a uma reação àquilo popularizado enquanto mítico, devido a uma pasteurização estadunidense oriunda de um código de conduta instituído. Mas o princípio transcendental está lá, a ideia universalista de uma justiça maior encarnada na ação do herói... bom isso não é novidade..."

Dessa forma, existe algum padrão popularizado, pasteurizado, uma linha de conduta que faz dos muitos Capitães Américas um super-herói tipificado e isso vai além do uniforme, dos poderes e/ou habilidades. Seria como pensar no Aquiles, dos gregos, em como ele, mesmo não fazendo parte do nosso padrão de super-heróis de hoje em dia, era um exemplo de herói mítico para os gregos de sua época, segundo os padrões gregos, ainda que o Aquiles cantado em Atenas não fosse idêntico ao cantado em Esparta.

Brad Pitt na pele do herói Aquiles

Brad Pitt na pele do herói Aquiles

Ainda assim, havia um ethos na conduta do Aquiles que deveria ser comum a todos os cantos sobre esse herói grego e esse ethos não estava vinculado somente a seus poderes de semideus, sua famosa invencibilidade (que possui duas causas: a mais famosa, o banho no Rio Estige, ficando a outra, menos famosa, vinculada à armadura confeccionada por Hefestos), mas também, à sua conduta.

Ora, como herói, Aquiles deveria ir à guerra, deveria confrontar seu destino, mesmo sabendo dos sacrifícios que teria de enfrentar (no caso dele, a morte na Guerra de Tróia). Ele teria que usar seus poderes em batalha e duelar contra outros heróis e/ou criaturas míticas (e não vilões, pois isso não era do métier dos heróis do mundo antigo), e isso com honra, bravura e impetuosidade. Saber seu destino e enfrentá-lo retilineamente era o caráter icônico de todos os heróis gregos do mundo antigo, assim como lutar por justiça ou para defender os inocentes seria o caráter icônico dos super-heróis ficcionais de nosso mundo atual.

Quais são os significados de tudo isso que foi afirmado aqui nesse breve texto? O principal, é que a ambivalência entre mudança e continuidade é a tônica dos super-heróis e de tantos outros gêneros artísticos, entre realidade e ficção, entre tons de cinza e tons de preto no branco, ora pendendo mais para um lado, ora mais para o outro.

Seria esse caráter icônico afirmado aqui a dita "essência" do super-herói? Se considerarmos que trata-se de um gênero específico, que o Batman, por exemplo jamais vai poder ser representado assassinando gatinhos e criancinhas inocentes, que um Homem-Aranha terá habilidades especiais (ainda que perca isso em alguma trama por um certo período), que ele poderá morrer, ser aleijado, cair em dúvidas sobre si mesmo, mas jamais pode se tornar o seu oposto (e isso pode até acontecer, claro, mas o herói deixa de ser tratado como tal quando ocorre), então terei que dizer que existe alguma essência sim.

Como historiador, isso me incomoda, pois trata-se de uma visão essencialista de identificação que pode bitolar qualquer análise sobre contextos históricos específicos, não importando o tema proposto. Por isso me nego a ser muito conclusivo nesse sentido.