Dossiê Stan Lee - três visões sobre "O Cara"

Stan "The Man" Lee se foi. Todo leitor de quadrinhos que se preze sabia que esse dia se avizinhava. Quando penso na extraordinária influência que sua sombra exerce sobra a cultura contemporânea, lembro de uma frase de Jack White, da findada banda de rock americana The White Stripes, comentando o fato de que seu sucesso Seven Nation Army tenha se tornado hino de torcidas em estádios de futebol do mundo inteiro. Não sei bem se isso é apócrifo, mas White, fã de blues rural e música folk americana, teria dito, sobre o fato de as pessoas não saberem mais a autoria da canção: "isso é o máximo que um artista pode almejar. Quando não se sabe mais quem criou as coisas, é porque elas efetivamente se transformaram em folclore." 

Ora, quanto aos heróis Marvel, sabe-se bem, hoje em dia, ao menos quem foi um de seus criadores. Falo de Stan Lee. Porém, isto é assunto para infindáveis debates: o fato de Kirby, Ditko e outros não receberem o devido credenciamento (e, em vida, não terem recebido o mesmo retorno financeiro) pelas criações Marvel é motivo suficiente para, no mínimo, se questionar o status de semideus assumido pelo velho "The Man" nas últimas décadas, impulsionadas pelo astronômico sucesso dos filmes de super-heróis, capazes de revolucionar a indústria do cinema em si (para o bem ou para o mal).

Sem o famoso bigas

Porém, enfatizo a frase de Jack White no sentido de que, mesmo em relação a Lee, seus super-heróis ultrapassam qualquer engajamento em mídia, editora, história dos quadrinhos ou quaisquer autores que sejam. De uma criança de quatro anos até um quarentão militarista cafona, gerações "cantam" os heróis Marvel na vida cotidiana (como se canta Seven Nation Army nos estádios) sem saberem lhufas de quadrinhos, sobre a quase falência da Marvel no período imediatamente anterior a estas criações, à trajetória de Stan Lee como roteirista, manager e editor, sobre o marvel way, sobre Jack Kirby, John Romita, John Buscema, Marie Severin, Steve Ditko e tantos outros. Cantam estes heróis porque um inconsciente óptico lhes diz que os cante, simples assim. De fato, é a Valhalla da criação popular.

Este "dossiê" da Raio Laser apresenta três textos dos nossos escribas mais engajados (não de maneira acrítica) no universos dos quadrinhos de super-heróis. Pessoas que gastaram quase tantas horas lendo estes gibis quanto dormindo ou penteando os cabelos, escovando os dentes. Márcio Júnior põe o dedo na ferida e procura sublimar a eterna questão a respeito de Lee ser um herói ou um vilão dos quadrinhos. Marcos Maciel de Almeida realiza uma muito bem-vinda comparação com os Beatles. E Lima Neto analisa, com a categoria de sempre, a primeira edição do Quarteto Fantástico. Quanto a mim, além desta introdução, você pode ler o porquê de eu considerar o Hulk a obra-prima de Lee/Kirby na ZIP, minha coluna no Metrópoles. Excels... hmm... deixa pra lá. Acho que isso já foi dito muitas vezes. (CIM)

Stan Lee e Jack Kirby – McCartney e Lennon: a eterna culpabilidade dos sobreviventes

por Marcos Maciel de Almeida

É uma característica inescapável da qualidade humana a pré-disposição para beatificar os que já se foram desse mundo. Essa prática seria inofensiva senão viesse acompanhada de outra, especialmente danosa: a imediata demonificação daqueles que já tiveram parcerias com os falecidos. Peguemos, por exemplo, a dupla Lennon & McCartney. Depois da morte do primeiro, era – e ainda é – comum ouvir dizer que foda mesmo era o John. O Paul, coitado, era apenas um cantorzinho romântico que teria explorado e se aproveitado do talento do marido da Yoko. O que nos leva ao caso em questão. Durante boa parte de sua vida, o velho Stan “The Man” Lee foi vítima desse tipo de campanha difamatória, que enfatizou que sua esperteza e egoísmo teriam prejudicado muitos colaboradores, especialmente Jack “The King” Kirby. Não vou entrar no mérito desse tema.

Só queria chamar a atenção para o fato de que nós humanos temos essa maldita tendência de glorificar os que morreram, transformando-os automaticamente em santos. Fazemos vista grossa para seus defeitos e exaltamos suas qualidades, relegando para o papel de sacanas, caretas e aproveitadores aqueles que ainda continuaram entre nós. O que raramente paramos para observar é que – muitas vezes – aqueles para quem apontamos os dedos são justamente os caras que deveriam estar sendo celebrados. E essa foi a situação de vida de boa parte da carreira do velho Stan, especialmente depois da morte do Kirbão.

Stan Lee foi acusado de não dar o devido crédito para seus colegas, arvorando-se na condição de pai exclusivo dos maiores super-heróis do Universo Marvel. Teria, ainda, enriquecido às custas dos coitados dos desenhistas que ganhavam uma miséria e trabalhavam feito condenados. Independentemente do nível de veracidade dessas alegações, que acredito serem exageradas, pouca atenção foi dada ao fato de que foi essa mesma suposta esperteza do Stan que fez com que a Marvel passasse de um estudiozinho de fundo de quintal para a máquina de entretenimento que se tornou hoje. 

O tino para negócios do cara era tão grande que ele conseguiu multiplicar a galinha dos ovos (gibis de herói) em diversos tipos de publicações diferentes, que agradavam a públicos distintos. Tudo isso sem abrir mão da qualidade. Além disso, o velhaco tinha faro para capturar o zeitgeist e materializá-lo em pérolas como o Pantera Negra, recente lançamento dos blockbusters “parrudos” da Marvel. Mais do que isso, o velho Stan conseguiu se aproximar das pessoas certas da indústria - no momento certo - para consolidar a fama de seus personagens, trazendo a reboque toda a Marvel. E sim, eu acho que ele merecia ser recompensado pelo papel que desempenhou, que foi além daquele de um simples argumentista e escritor.  

Ainda insistindo na comparação com McCartney, fica claro que todo ambiente recheado de doidões e bichos grilo – como eram os estúdios Marvel – precisa de líderes que tomem a iniciativa. Foi a mesma coisa que aconteceu com os Beatles.  Se o Paul não ficasse enchendo o saco dos colegas para que eles produzissem e não ficassem apenas naquela de “vou fumar um agora”, não teríamos visto o nascimento de obras primorosas como o Sgt Pepper´s, que foi capitaneado pelo velho Macca. Duvida? Leia qualquer biografia decente dos quatro rapazes de Liverpool. Esse foi o mesmo caso do Stan, bastante criticado pelas decisões que tomou e pela postura que tinha. Mal comparando, ele era a personificação de um trator passando pela colheita. Era aquela coisa “ou você vem comigo ou vai ser atropelado”. Fico me perguntando se o destino da Marvel teria sido melhor sem essa atitude proativa do Stan. Talvez seu grande mérito tenha sido conseguir transmutar o talento dos grandes artistas da época em produtos concretos. Será que sem ele no comando do barco caras como Jack Kirby e Steve Ditko não teriam se perdido por aí? Sinceramente não sei.  Mas o que posso dizer é que cada Syd Barret precisa de um Roger Waters para chamar de seu. 

Mas agora tudo mudou. Stan se foi e se juntou ao grupo das pessoas quase perfeitas, sem defeitos e altamente celebradas. A partir desse momento tudo é festa. Tá todo mundo falando bem de você, Stan. Suas falhas foram minimizadas e estão todos dizendo que você sempre foi o cara. E isso é verdade. Esse seu eterno apelido “The Man” é bastante apropriado. Apesar de ser uma pessoa comum, você ousou dar vazão aos seus sonhos. Apesar de não ser dotado de um talento excepcional, de não ser artista na concepção estrita da palavra, você conseguiu dar vida a toda uma vastidão de criações incríveis que habitavam seu inconsciente. Foi capaz, sobretudo, de materializar um universo que sobreviverá ainda por muito tempo. Você inventou verdadeiras lendas modernas. Seres que habitarão o imaginário coletivo sem prazo de validade. Nada mal para quem era apenas um homem normal.

Sr. Fantástico entre aspas

por Lima Neto

No dia primeiro de Novembro de 1961, os Estados Unidos tiveram uma experiência que iria mudar a vida de seus cidadãos. Chegava nas bancas a primeira edição da revista Fantastic Four e, junto com ela, todo um universo estalando em energia se abria para o imaginário norte-americano, e, posteriormente, para o mundo. Aquele gibi era a jogada máxima de Stan Lee para se manter no mercado de quadrinhos, e graças a uma visão focada na juventude americana em sua volta e à parceria estelar com a arte de Jack Kirby (e Steve Ditko, entre outros nomes ilustres), a cartada de “The Man” se tornou um sucesso imediato. 

Hoje em dia é difícil encontrar fãs do Quarteto Fantástico, muitos dizem que a fórmula se desgastou e que uma revista sobre uma família disfuncional de heróis exploradores da ciência não tem muitos atrativos se comparados com os deuses, mutantes e super-soldados que vieram na esteira. Mas em sua estréia, a revista Fantastic Four foi um absoluto sucesso, e não por menos. Entre suas capas podemos encontrar as sementes fundamentais que deram origem à Marvel, e que perduram até os dias de hoje.

As páginas de Fantastic Four #1 eram de um frescor revigorante. Já de saída os heróis eram representados sem uniformes coloridos ou capas esvoaçantes. Não vemos também identidades secretas ou bases mirabolantes. Encontramos apenas quatro indivíduos cujas vidas e formas foram alteradas graças a uma viagem espacial que não deu certo. Fantastic Four era uma revista de super-heróis da ciência. A ficção científica da Guerra Fria estava presente em todas as páginas, na magistral sequência da chuva de raios cósmicos (um acidente causado pela pressa em se manter à frente dos “comunas” na corrida espacial) até uma ilha habitada por monstros pós-atômicos.

Outro ingrediente de sucesso era o drama pessoal dos personagens. Em Fantastic Four, tanto os heróis como os vilões pertenciam a um submundo da sociedade norte-americana dos anos 60. Eram vítimas do sonho espacial que se tornara pesadelo. Se as transformações de Sue e Johnny eram mais socialmente aceitas, o mesmo não podia ser dito de Ben Grimm, o Coisa, que era o personagem querido do artista Jack Kirby e preferido de muitos leitores. O motivo fica claro no primeiro número, quando podemos ver que a única razão que separa o Coisa do vilão Toupeira e sua trupe de  monstros é a escolha por agir em prol da humanidade, mesmo que isto lhe cause dor e alienação. Junte a isso o complexo de culpa de Reed Richards e temos uma dinâmica poderosa onde heróis muito humanos decidem transformar um acidente em uma oportunidade de ajudar a humanidade (ou o sistema capitalista, para ser mais específico).

É essa sensibilidade que Stan Lee trouxe para o mundo em 1961. É essa humanidade que faz dos personagens que co-criou uma força duradoura que é sucesso até hoje. Como ser humano que era, Stan Lee misturou suas qualidades e defeitos em tudo que produziu, e graças à sua lábia infinita de vendedor, ele pôde se tornar um ícone da cultura do sec. 20. Como um Sr. Fantástico da vida real, ele assumiu todos os riscos e chegou aonde nenhum criador de quadrinhos aterrizou antes, e, assim como Reed, seu percurso não se deu sem criar mágoas, inimigos e desavenças. Mas um fato é inegável: o legado de Stan “The Man” Lee ainda vai durar muitos anos após sua morte. Excelsior!

Stan Lee: herói ou vilão?

por Márcio Jr.

Quadrinhos de super-heróis são, por definição, ficção infanto-juvenil barata, produzida em escala industrial. Seu funcionamento se ancora no conflito moral binário herói versus vilão – que só encontra ressonância em fantasias infantis ou no recalque conservador de adultos imaturos (Não é de se surpreender, portanto, o apelo que Jair Bolsonaro obteve junto aos leitores brasileiros do gênero). 

Existem HQs adultas de super-heróis. Algumas são realmente excelentes, dignas de figurar no cânone dos quadrinhos. Mas, via de regra, são realizações constrangedoras, voltadas a um público eminentemente acrítico. O melhor que os gibis de super podem oferecer é justamente sua imaginação ilimitada e inconsequente – tal e qual à de uma criança.

Na última segunda-feira, 12 de novembro de 2018, faleceu Stan Lee, aos 95 anos. No panteão dos autores de super-heróis, nenhum nome é mais popular que o do roteirista e editor eternamente associado ao Universo Marvel. Por anos, levou a fama sozinho pelas criações de personagens icônicos (e marcas multi-milionárias) como Homem-Aranha, Quarteto Fantástico e X-Men. Uma baita filha da putice da qual Stan não é o único responsável – ainda que tenha se mexido bem pouco para dividir os louros com quadrinistas como Jack Kirby e Steve Ditko, seus principais parceiros na arquitetura da potência que a Marvel viria a se tornar. Daí que é comum, no mundo dos quadrinhos, os olhares em direção a Stan Lee se dividirem também de forma binária: de um lado estão aqueles que o consideram um herói; do outro, um vilão. 

O maior talento de Stan Lee foi se cercar dos melhores trabalhadores da indústria. Jack Kirby, Steve Ditko, John Romita, John Buscema, Bill Everett, Marie Severin, Don Heck, Gil kane, Gene Colan… A lista é imensa. Mas sua jogada de gênio veio ao desenvolver o famigerado Método Marvel. Ao invés de escrever um roteiro completo e detalhado, ele passava um farrapo de história ao seu notável time de quadrinistas – que, bem mais que exímios ilustradores, eram mestres da narrativa gráfica. Com esse plot, Kirby e companhia desenvolviam o gibi inteiro, que voltava para Stan colocar seus idiossincráticos textos nos balões e recordatórios. Sendo assim, quem criou o quê, mesmo?

Considerando que os quadrinhos são uma narrativa imagética, retirar a autoria dos desenhistas foi, como disse anteriormente, uma filha da putice sem tamanho. Típico das grandes corporações. E Stan foi um notável defensor de seus patrões – o que, aliado ao seu carisma e capacidade de autopromoção, resultaram em fama e gordos dividendos. Os jogos da arte e do sucesso são distintos. E não me lembro do velhaco bigodudo aspirando reconhecimento artístico. Stan Lee sempre foi um entertainer.  

Mas, justiça seja feita, como autor, Lee deixou marcas profundas. Seus super-heróis, pela primeira vez na história do gênero, eram falíveis e humanos. Envelheciam, moravam em cidades reais. Interagiam uns com os outros num mundo verossímil. Ter superpoderes quase nunca era uma vantagem desejável. Seu texto era prolixo e redundante, ainda que inflamado e repleto de humor. Foi copiado à exaustão. E a sinergia conseguida junto à sua equipe de desenhistas era algo de deixar os Beatles se mordendo de inveja. Kirby e Ditko, por exemplo, jamais conseguiram repetir a glória dos tempos de parceria com “O Cara”. Juntos, fizeram alguns dos gibis mais divertidos de todos os tempos.

Tentar enquadrar Stan Lee como herói ou vilão é um esforço tão inócuo quanto acreditar que qualquer gibi de super-herói seja capaz de dar conta da complexidade da vida. Nem mesmo os personagens que ele ajudou a criar são tão simples e binários – e esse foi seu grande diferencial. Como legado, o que fica são centenas (milhares?) de grandes HQs. E a alegria que elas geraram ao longo de gerações. Valeu, malandro.