Melhores leituras de 2019 #02 - Márcio Jr.

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por Márcio Jr.

Sou um sujeito sistemático, metódico, cheio de ritos. A um passo da neurose. A vida me atropela e, ainda assim, tento me equilibrar através de sistemas e jogos mentais. Nem sempre dá certo. Quase nunca.

Com relação aos quadrinhos, anoto numa agenda – mês a mês, em duas colunas distintas – o que comprei e o que li. A desproporção é de três para um. Uma pilha que só aumenta ao longo dos anos. E que demonstra que esta não é, definitivamente, uma relação saudável. Pena que terapia seja (ainda) mais caro que gibi.

Revendo minhas anotações do Ano 1 da Era Bozo, percebo que li menos que nos anos anteriores. As compras também diminuíram (mas a média de três para um manteve-se inabalada – o que não é bom sinal). Mesmos as escolhas de leitura não foram as mais acertadas. Alison Bechdel, Richard McGuire e Emil Ferris seguem, para minha vergonha, aguardando uma confluência (psicopatológica) de astros para serem fruídos com a devida atenção.

De toda e qualquer forma, segue aí minha lista das 13 melhores leituras do ano. Sem hierarquia, óbvio. Por elas, boto a mão no fogo. E por que 13? Não gosto de perder a oportunidade (por mais ínfima que seja) de azucrinar apoiadores do Bozo. Se bem que duvido que algum deles leia a Raio Laser. Ou qualquer outra coisa.

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Super-Homem e o romantismo de aço – Rogério de Campos (Ugra Press, 2018): Minha lista abre não com uma HQ, mas com um ácido ensaio teórico acerca do Super-Homem – que em 2018 completava oito décadas de existência – e, por tabela, dos super-heróis enquanto gênero. O seminal editor da Veneta (e também Conrad, Animal e outras empreitadas fundamentais aos quadrinhos no Brasil) eviscera o componente fascistoide presente em toda obra onde os personagens usam cuecas sobre calças – como se isso fosse normal. Necessário, o livro peca pela capa, cujo teor underground/arte contemporânea afasta justamente aquele que mais precisaria lê-lo: o nerd.

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O Bulevar dos Sonhos Partidos – Kim Deitch (Todavia, 2017): Costumo dizer que a animação é a última etapa antes do canavial. Aqui, o mestre dos underground comix, Kim Deitch, produz uma sensível narrativa acerca do fracasso, ressentimento, dor e loucura que envolvem um criador de desenhos animados. De quebra, uma para-história de como esta indústria se desenvolveu nos States.

R.I.P.: Best of 1985-2004 – Thomas Ott (Fantagraphics, 2011): Thomas Ott é um daqueles malditos homens da Renascença: quadrinista, animador, vocalista de banda de rock, cartunista, ilustrador e por aí vai. Em “R.I.P.” estão compiladas perturbadoras histórias de terror – curtas e mudas – magistralmente ilustradas usando scratch-board: uma prancha negra que ao ser raspada revela o fundo branco, com resultados que remetem à xilografia. Já passou da hora de publicarem Thomas Ott no Brasil.

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Luzes de Niterói – Marcello Quintanilha (Veneta, 2019): Retomando seu pai – promissor jogador do futebol fluminense na década de 1950 – como personagem, Marcello Quintanilha nos entrega outra obra-prima transbordante dessa coisa (ao mesmo tempo sólida e intangível) chamada brasilidade.

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A Terra dos Filhos – Gipi (Veneta, 2018): Se alguém duvida que Gipi é um dos maiores nomes dos quadrinhos italianos da atualidade, a leitura deste “A Terra dos Filhos” é mais que suficiente para dissolver qualquer suspeita. As relações familiares entre pai e filhos são escrutinadas de forma adulta, profunda e tocante nesta ficção pós-apocalíptica. O aclamado Jeff Lemire terá que capinar muito lote se quiser ser como Gipi quando crescer.

O Homem que Passeia – Jiro Taniguchi (Devir, 2017): Apesar de negar a formulação de uma filosofia da caminhada, na prática é isso que a HQ de Taniguchi oferece – de forma poética e sublime. Uma caminhada aberta ao mundo e à vida, atenta a pequenos detalhes – que podem se revelar grandes maravilhas –, localizada no diâmetro oposto da alienação individualista que o capitalismo contemporâneo nos impõe. Caminhada como possibilidade de encontro – com a natureza, com o outro, consigo mesmo. E, portanto, como resistência a um sistema que não nos deixa escapar do pesadelo da produtividade sem tréguas.

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Carolina – Sirlene Barbosa e João Pinheiro (Veneta, 2016): Com três anos de atraso, finalmente deito os olhos em um dos livros mais importantes e (justamente) celebrados da HQ brasileira contemporânea. “Carolina” é a biografia de Carolina Maria de Jesus, negra, pobre, favelada e best seller da década de 1960 com o fenômeno literário “Quarto de Despejo”, publicado em mais de 13 países. Em tempos onde se discute a cilada em que questões identitárias e lugar de fala podem nos meter, Sirlene e João trazem toda a legitimidade possível e imaginável para contar a história única de uma personagem tão rica. Os recortes temporais sofisticam a narrativa, e o traço de João Pinheiro, duro e cru, traz a potência de um também legítimo herdeiro da tradição do quadrinho popular nacional, remetendo a nomes como Shimamoto, Nico Rosso e Lyrio Aragão.

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Ordinário – Rafael Sica (Quadrinhos na Cia, 2011): “Ordinário” é um daqueles livros para ser lido e relido ad infinitum. As tiras mudas de Rafael Sica causam impressão – seja pelo brilhante e inusitado uso de recursos exclusivos das histórias em quadrinhos, seja pelo drama humano nelas contidas. Faça como eu: chame de genial. Sem medo e sem dó.

Squeak the Mouse – Massimo Mattioli (Veneta, 2019): “Squeak the Mouse” era um dos carros-chefe da melhor revista já lançada no Brasil: a Animal. Tom & Jerry turbinado por speed. Clássico absoluto de tempos transgressores, leitura indispensável ainda hoje. A bela edição compila absolutamente tudo da série. E ainda traz de bônus a exclusiva e brilhante introdução do irascível Rafa Campos Rocha.

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Lendas do Universo DC: Etrigan Vols 1 e 2 – Jack Kirby (Panini, 2018): O que de melhor um gibi de super-herói pode oferecer? O Rei tem a resposta.

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Intrusos – Adrian Tomine (Nemo, 2019): Confesso um certo fastio de quadrinhos sensíveis, elaborados, que se pretendem “grande arte”. Muitos miram nesse alvo, poucos acertam na mosca. De modo que estava com o pé atrás em relação a este (tardio) lançamento de Adrian Tomine por essas plagas. Dei com os burros n’água. É mesmo tudo o que dizem...

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O Ditador Frankenstein e Outras Histórias de Terror, Tortura e Milicos – Julio Shimamoto (MMarte, 2019): Sou cabotino – afinal, foi minha editora, a MMarte quem lançou esse livro, aproveitando o fato de Shima ser o homenageado da CCXP 2019. Fazer o quê? O álbum é uma delícia. 12 HQs de terror de Shima – originalmente publicadas entre 1978 e 1982, portanto, sob as sóbrias asas da ditadura militar brasileira – versando sobre censura, autoritarismo, militares, tortura e revolução. Oportunidade única de conhecer um pouco da tradição do quadrinho popular brazuca. Li e reli essas histórias dezenas de vezes durante o processo de edição. Sempre com prazer renovado. Mais AQUI.

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Free Shit – Charles Burns (Fantagraphics, 2019): No apagar das luzes de 2019, me refestelei com “Free Shit”, compilação do minizine que Burns enviou gratuitamente aos amigos anos a fio. Sketches, estudos, ilustrações, colagens, frases, apontamentos. Notável pelo extremo cuidado no acabamento de suas obras, o livro se converte numa oportunidade única de observar os processos criativos do artista. 

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