Cavaleiro da Lua: o herói lunático ainda luta por um lugar ao sol

 Por Marcos Maciel de Almeida

Werewolf by night # 32 (1975): Primeira aparição do Cavaleiro da Lua

Quem lê quadrinhos há algum tempo certamente já ouviu a clássica pergunta: “Qual é seu personagem favorito?” Costumo responder que o personagem não é o mais importante, mas sim o talento do escritor que vai contar as histórias do dito cujo. Por isso, acredito que leitores inveterados como eu tenham mais fidelidade a autores que a personagens. Digo isso porque mesmo personagens aparentemente sem sal podem se tornar interessantes, quando colocados sob a lupa de um escritor sagaz. Estão aí o Starman de James Robinson e o Homem-Animal do Grant Morrison que não me deixam mentir. A recíproca também é verdadeira. Personagens consagrados não são sinônimo automático de boas histórias. Ainda assim, existem personagens que nos cativam de forma instantânea e incondicional, seja por seu apelo visual, seja pelo tipo de narrativa que costumam inspirar. Por ambos motivos, o Cavaleiro da Lua sempre foi um de meus heróis prediletos. O uniforme maneiro, que lhe conferia uma charmosa aura de mistério, e a temática, envolvendo o submundo bizarro da Marvel, viraram paixão à primeira leitura. Pena que o personagem nunca teve muita longevidade nos títulos que envergaram seu nome, desde sua criação em 1975.

Cavaleiro da Lua, o herói quatro em um. O Cavaleiro da Lua deve ser um dos personagens do segundo escalão das HQs com recorde na quantidade de edições número 1 lançadas nos Estados Unidos. Só de séries mensais já teve sete, a maioria cancelada prematuramente. O personagem, infelizmente, não costuma ser sucesso de vendas. Sua série mais recente, que teve como argumentista o queridinho do mercado norteamericano, Jeff Lemire, também foi... consegue adivinhar? Cancelada. Melhor sina mereceria o herói encapuzado, apontado por alguns como o Batman da Marvel. Comparação justa? Vejamos. O Cavaleiro também é um combatente do crime desprovido de poderes. Assim como o Morcegão, conta com um arsenal de apetrechos tecnológicos. Seu auxiliar e funcionário, o Francês, é uma espécie de Alfred que mete mais a mão na massa. Mas as semelhanças param por aí. Por incrível que pareça, o Batman – muitas vezes retratado como um maníaco obsessivo não muito diferente de seus inimigos – pode ser considerado um poço de sanidade perto do Cavaleiro da Lua. Enquanto o Cavaleiro (das Trevas) tem uma vida dupla o outro Cavaleiro (da Lua) compartilha sua vida com mais três identidades: o playboy milionário Steven Grant, o taxista Jake Lockley e o mercenário Marc Spector. E os problemas psicológicos de nosso herói não se resumem a isso. Fazendo uma análise de sua trajetória, pode-se ver que a grande luta do Cavaleiro da Lua caracteriza-se pelo esforço de manutenção de um mínimo de sanidade. E isso não é de hoje.

Desde a fase clássica de Doug Moench, criador do personagem, e Bill Sienkiewicz, já era patente que ele tinha alguns parafusos a menos, fato evidenciado não apenas pela sua divisão em quatro personalidades. Numa minissérie – lindamente desenhada por Tommy Lee Edwards e inédita no Brasil – de 1998, Moench começa a carregar ainda mais nas tintas da esquizofrenia do mascarado. Numa história de alucinação que deixaria Philip K. Dick orgulhoso, o Cavaleiro da Lua é lançado numa realidade de sonho, ilusão e delírio. Outros autores que também exploraram temática semelhante foram Brian Michael Bendis e Alex Maleev, responsáveis pelas doze edições publicadas nos EUA a partir de 2011. Nessa série, o Cavaleiro da Lua sofre nova crise de identidade e passa a acreditar que... Deixa para lá. Não quero dar spoilers. 

Cavaleiro da Lua de Bendis e Maleev

Ironicamente, a fase em que o Cavaleiro volta a apresentar algum sinal de propósito e lucidez ocorre nas seis edições assinadas pelo doidão Warren Ellis que cria, em 2014, novos conceitos, bastante interessantes, para o personagem. Agora ele tem um novo uniforme e um comissário Gordon para chamar de seu. Além disso, passa a se denominar “o viajante noturno”, que seria uma espécie de protetor das almas perdidas na madrugada, vítimas das ameaças de nosso e de outros planos de existência. A fase de Ellis é pura porralouquice. Mostra o Cavaleiro dando porrada em punks fantasmas, descendo até os recônditos do esgoto de Nova York,  e invadindo os sonhos alheios. Aliás, a história do pugilato com punks ectoplásmicos é o suprassumo do que o Cavaleiro da Lua deveria ser: um personagem dividido entre várias personalidades, mas que só encontra a paz quando está às voltas com os becos mais sombrios e sobrenaturais do Universo Marvel. 

Ele seria, portanto, o verdadeiro detetive do impossível, com o perdão da usurpação do epíteto de Martin Mystère. Não que o Cavaleiro deva se restringir a isso. Muito pelo contrário. Ellis sabe disso e utiliza seus vastos recursos narrativos para encerrar sua fase com chave de ouro. Numa história que remete aos grandes momentos de Spirit, intitulada “Espectro”, o Cavaleiro da Lua torna-se mero coadjuvante num conto que revela o efêmero surgimento do novo Espectro Negro, personagem cuja brutalidade só é superada pela própria estupidez. Ah, já ia esquecendo: a fase de Ellis é toda desenhada por Declan Shalvey, que manda bem pra cacete. 

Cavaleiro da Lua: no mundo dos sonhos ou dos pesadelos?”

Bem, tudo que é bom dura pouco e Ellis vazou rapidinho, dando lugar a Brian Wood. E aqui gostaria de abrir um parêntese. É complicado para um personagem evoluir com a frequente mudança de equipes criativas. E para o paciente em questão, o estrago pode ser ainda maior, afinal de contas o Cavaleiro da Lua já não bate muito bem e precisa de um pouco de estabilidade, coitado. Pena que os editores recentes do vigilante nunca sacaram isso e insistiram no troca-troca. A fase de Wood – bastante irregular - durou seis números e, na sequência, o título foi assumido por Cullen Bunn. Também não darei muita moral para a fase deste escritor, que não foi exatamente um primor. Com a honrosa exceção de seu trabalho no conto “Anjos”, ele não conseguiu avançar muito com o personagem. Embora esta história não vá muito além de narrar uma cena de pancadaria urbana entre o Cavaleiro da Lua e bandidos voadores, é importante para mostrar a riqueza de situações em que o herói pode ser aproveitado.

Pancadaria aérea é o que há

A lua do Cavaleiro, que nessa época estava minguante, volta a brilhar mais forte quando uma dupla de responsa assume a revista: o já citado Jeff Lemire e o talentoso desenhista Greg Smallwood. O resultado foi excelente e comprovou minha teoria lá do começo. Está aqui mais uma demonstração de que são os escritores que fazem o personagem e não o contrário. Os bons autores são capazes, dentre outros feitos, de nos fazer enxergar coisas que estavam bem debaixo dos nossos olhos. Exemplo: o que temos de fazer com pessoas loucas e potencialmente perigosas? Internar num hospício. E esse foi o destino de nosso herói, que lá pôde encontrar seu elenco de apoio original: Marlene, Francês e Crawley, há muito ausentes do gibi. E sim, a luta do vigilante pela sanidade continua árdua, especialmente agora que tentam convencê-lo de que o Cavaleiro da Lua nunca existiu. Outro fator que dificulta sua recuperação é o fato de que ele passa a enxergar uma realidade em que Nova York, agora habitada por divindades e criaturas lendárias, se fundiu com o Egito Antigo. Somente foram lançados os primeiros cinco números da fase de Lemire no Brasil, mas o autor já disse a que veio. Espero que dessa vez a coisa engate e...putz, tinha esquecido: a revista foi... (agora você vai acertar) cancelada, depois de 14 edições. 

Quem quiser dar uma conferida no material acima pode procurar as revistas abaixo, lançadas no Brasil pela Panini:

Cavaleiro da Lua – Recomeço – Vols 1 e 2, 2015. (Fase do Brian Michael Bendis)

Cavaleiro da Lua – Vols 1-4, 2015-2017. (Fase do Ellis, Brian Wood, Cullen Bunn e Lemire. Um gibi para cada escritor). 

O Cavaleiro da Lua não parece ter sorte nos quadrinhos e muito menos em seu histórico de publicações. É uma pena, pois o personagem tem muito potencial, como ficou evidenciado quando teve escritores decentes, como Ellis e Lemire. 

Ah, infelizmente, o Cavaleiro da Lua não pode ser considerado o Batman da Marvel, embora existam semelhanças inegáveis entre ambos. Afirmo isso por uma simples razão. O Cavaleiro da Lua passou bem longe da sombra do sucesso do morcego. Se ele tivesse tido, ao menos, 1% do reconhecimento de seu primo rico, a coisa seria diferente. Mas isso seria uma outra realidade. E só nela o Cavaleiro poderia dizer que nasceu virado para a lua. 

O Cavaleiro da Lua de Stephen Platt. Esta imagem está aqui simplesmente porque é muito foda

A máscara e a tolice fundamental da HQ (e do filme) de super-herói

por Lima Neto

Muitas vezes, quando escuto algum comentário em uma roda de amigos sobre como seria bom se o ser humano tivesse super poderes, eu costumo responder com o mesmo comentário impaciente: “Ia ser a extinção”. Diante do silêncio que se segue, eu emendo: “Temos um exemplo fácil. Nós usamos todos os dias uma armadura de metal que aumenta nossa velocidade a níveis inacreditáveis; que nos permite nos proteger de alguns elementos; enxergar no escuro e outras vantagens que podemos classificar como super poder, pelo menos dentro do parâmetro de um Homem de Ferro. Mas junto com esse poder, temos também o dado trágico de 6 mortes por hora causados pelo trânsito, somente no Brasil em 2016”. Ok, os dados foram pesquisados para este artigo e computados pelo DATASUS em levantamento realizado este ano. 

Carros e super-poderes

Mas não estou aqui pra falar sobre trânsito, mas sim sobre essa relação nebulosa entre a ficção “super-heroística” e a realidade. Com a onipresença dos super-heróis nos cinemas, essa relação se tornou mais difusa ainda. Quem lê gibi há muito tempo sabe que, nos quadrinhos de indústria, sempre há uma tendência de aproximação ou afastamento do real. Essa relação chega mesmo a moldar uma identidade para as editoras. O drama mais cotidiano das identidades civis dos personagens da Marvel encontram uma resposta do público que é diferente da relação de “deuses na Terra” que costuma a dar o tom da editora DC. Mas em determinados períodos o realismo fica mais patente em ambas editoras, como é claro nos anos 80 e o boom dos quadrinhos de temática adulta. 

Esse flerte criativo ganha tons mais sombrios quando se insere o cinema nessa conta. E a DC saiu perdendo nesse quesito, trocando o fascínio mítico de seus personagens por um realismo dark superficial e sem alma. Super-herói é fantasia.

É sonho de poder e ação.  Como todo sonho, pode servir de complemento ou duplo pro real, mas quando se aproxima demais da realidade, a fantasia começa a rachar e o que tem por baixo pode ser bem desagradável. Se o imaginário do automóvel parecer muito mundano, podemos partir de um item de significado arquetípico no mundo, que na cultura pop em geral vai ser alimento de infinitas narrativas, mas que vai assumir um papel definidor nas narrativas industriais: a máscara.

Sem querer academizar, mas apenas ancorando um pouco, concordarmos com o pesquisador Thierry Groensteen e sua descrição da trajetória de mudança dos temas dos gibis durante o final do sec. XIX e decorrer do séc. XX. Se formos para 7 de Fevereiro de 1936 e presenciarmos o lançamento do Fantasma, o primeiro herói mascarado dos quadrinhos, encontraremos uma HQ que se tornou um marco de popularidade e que inaugurou uma categoria dentro do gênero das “histórias de viagem” – o primeiro dos três gêneros fundadores identificados por Groensteen, sendo “fantasia” e “tolice” os outros dois. O tema do deslocamento para lugares longe do alcance dos olhos era a principal fantasia descrita por proto-quadrinistas como Rodolphe Töpffer. 

A frustração de não alcançar o destino, somada à descrição visual livre que o desenho permite, transportou o tema naturalmente para o sonho. Sonho que tem sua selvageria anárquica abrandada na noção de fantasia, que vira terreno para o desenvolvimento da ficção-científica a partir dessa mistura entre viagem e fantástico. A tolice vai ser herança da caricatura e da charge e vai ser complemento quase paralelo aos gêneros de fantasia e viagem. Vai ser juntando o herói viajante, que até os anos 30 era um fora da lei, com a moralidade do herói das tramas policiais e um visual chamativo que pega emprestado das pinturas de guerra tanto quanto dos ambientes excêntricos da vida urbana das metrópoles do séc. XX. Neste ambiente encontraremos o Espírito-Que-Anda e sua máscara.

Depois do Fantasma vieram vários. E antes dele vários mascarados já existiam nas mais diversas formas narrativas e cumprindo os mais variados papéis. Mas no final do séc. XIX e início do séc. XX, a máscara tinha um papel bem claro: impedir a identificação de um criminoso pelos meios legais oficiais, meios estes que contavam com uma ferramenta que revolucionou o processo investigativo: a fotografia. No herói e, posteriormente, no super-herói, a máscara tem uma função que remete à sua origem de “perturbador da lei” como presente na narrativa de viagem, verdadeiro “anti-herói” como defende Groensteen: o criminoso. Esse arquétipo do criminoso é a contraparte do arquétipo do detetive policial, que encontra no Dupin de Poe seu personagem de estreia. O criminoso vai ser aquele que conhece e usa as falhas do complexo sistema urbano nascente com as metrópoles para viver. Na narrativa de viagem, essa mobilidade (ou moralidade) alternativa vai garantir a transição de vilão para o anti-herói que enfrenta o desconhecido com uma artimanha não-civilizada. Anti-herói porque na máscara do Fantasma também está presente a moralidade afiada do detetive que quer proteger o status quo e reestabelecer a ordem.

É essa origem anti-heróica, dos Zorros e Sombras, Lokis e Dionísios, que identifica a máscara como um ato criminoso, não passível de redenção - nem se for o caso de proteger os entes queridos, principal justificativa para os mascarados nos gibis. Protege-se a identidade para não pagar o preço, não sofrer a retaliação, de assumir a responsabilidade pelo erro cometido. O Fantasma jura vingar a família massacrada em um ataque pirata. Protege sua identidade para escapar da responsabilidade moral, e principalmente jurídica, de agir em vingança. No caso dos super-heróis, a identidade disfarçada é uma contravenção que facilita o trabalho evitando que as vidas dos parentes, amigos e amantes se tornem alvo de algum criminoso que quer cobrar respostas pelo responsável por frustrar seus planos (cuidadosamente engendrados a partir de um código moral pessoal muito mais antagônico ao status quo, pelo menos mais antagônico que usar uma máscara, diria um super-herói). Resumindo, um jeito nobre e heroico de abrir mão de uma responsabilidade.

Mas a máscara do herói só vai perder sua ambiguidade quando nos aproximamos da realidade. Ou melhor, ao nos aproximarmos da realidade social como experimentada em boa parte do séc. XX – uma narrativa moral técnico-cientificista marcada pela análise, o corte que isola as partes buscando compreender o todo. Foi um estatístico da polícia francesa, chamado Alphonse Bertillon, que notoriamente desenvolveu a primeira sistematização da análise fotográfica forense. Betillon dividiu a representação do corpo criminoso em partes que eram comparadas entre si e divididas em categorias, gerando um arquivo de identificação de criminosos que não se baseava mais no indivíduo, mas em um traço identificador. É nessa lógica que a máscara entra em cena. A ideia de que cobrir um traço identificador é o suficiente para sumir com o indivíduo procurado. Antes dessa sistematização, a fotografia forense se limitava ao registro individual de cada criminoso no momento do flagrante, gerando toda espécie de careta por parte do afrontador como estratégia de impedir a identificação. Podemos identificar o Coringa e seu sorriso distorcido como um elo perdido entre os momentos citados da foto policial. É o traço particular que é também distorção imagética congelada, que ao mesmo tempo identifica e foge a identificação. A máscara que revela.

O herói, então, vai ser identificado pelo seu crime menor. Essa identificação pelo erro vai permitir transitar pelo sistema moral e decidir, dentre todos os envolvidos em uma narrativa, qual tem o pior crime e como aplicá-lo à justiça. É essa onisciência que justifica o erro cometido pelo mascarado e que pode ser considerado, de fato, um super-poder. Uma ação fantástica e divina que não pode ser replicada pelos mortais. O Fantasma, em suas histórias, sempre age certo. A versão nascente dos super-heróis traz esse “poder” moral amarrado a um misto de conto policial e a narrativa de viagem (na forma como era mais consumida nos anos 30, a ficção científica). Essa certeza do certo é ao mesmo tempo o núcleo infantil, tolo, do super-herói desse período. Quando falo de núcleo infantil, de infantilidade, não falo de maneira pejorativa. Mas me refiro à infância como potência anárquica, fora-da-lei. Aquela infância abissal e constituinte da identidade adulta. É a tolice como confronto à razão. O Tolo místico que não deixa nem um abismo interferir em seu transitar. É movimento puro, trânsito livre pelas frestas do mundo civilizado, mas paradoxalmente atrelado a alguma forma de justiça e manutenção da lei.

Como o super poder da armadura do Homem de Ferro, esta habilidade de saber o que é certo não consegue trazer alento algum ao ser humano, caso existisse no mundo real. A própria concepção de uma comparação dessas resvala no humor ridículo da tolice, o gênero inicial que é reflexo invertido do herói narrativo. “Ridículo um homem usar uma cueca por cima das calças”, essa é a pitada de ridículo que equilibra o ato de se esquivar da responsabilidade do ato justiceiro. É o humor cinematográfico que, quando bem colocado, reforça a presença do herói na história que está sendo mostrada, por mais irreais que sejam as imagens mostradas. A tolice fundamental retira o super herói da dimensão analítica do real ao lembrar de sua origem vestigial como sátira. Retire a tolice, e o peso da realidade esmaga o que sobrar. Um exemplo do que aconteceria se um super-herói que sabe o que é certo existisse no mundo real é o fenômeno das milícias denominadas “Liga da Justiça”. 

Entre 2006 e 2016, dois grupos “paramilitares” denominados “Liga da Justiça” atuaram em estados distintos: Rio de Janeiro e Mato Grosso. A ligação entre os grupos? Apenas a certeza de estar fazendo o certo, e de que o resultado justifica o crime de chacina. O mais notório deles, que atuou entre 2006 e 2010, agia na cidade do Rio de Janeiro e vizinhanças, liderados por Adelmar do Santos e Ricardo Teixeira, respectivamente chamados de Batman e Robin. Esse vigilantismo reacionário e suas implicações morais e sociais foram um tema carro-chefe dos quadrinhos dos anos 80, especialmente no trabalho de Frank Miller, que dava forma particular a um sentimento geral de insegurança no período. Insegurança ao mesmo tempo fantástica (com o pesadelo atômico) e policial (com metrópoles abarrotadas e à beira de um colapso social). 

Como os heróis citados, ambas as milícias atuavam com um elemento em comum: a máscara. Difícil imaginar, antes da popularidade dos filmes de super-heróis, que estes personagens serviriam de inspiração para ações tão reais.  Hoje em dia a internet e as mídias sociais são o meio de divulgação de cada vez mais narrativas reais de ações extremas geradas pela certeza equivocada do que é certo. Entretanto, a máscara vem ficando em segundo lugar, como pode ser ver nas produções de Hollywood que não conseguem se livrar do vício no “star system”, ou sendo substituída pelo baile mascarado mundial que é a internet. Não cabe a este texto elaborar esta questão.

Para usar, então, o poder de estar certo, é preciso arcar com as consequências (o personagem Justiceiro é um exemplo dessa atitude), ou esquivar-se da responsabilidade usando o artifício da máscara (ação que só obtém êxito quando ciente da tolice envolvida). Sem a tolice, sem o lúdico e o e o faz-de-conta juvenil que é fundador do gênero, a bênção da onisciência vira arrogância insensível na história de super-herói. O realismo pode, sim, gerar boas histórias do gênero. Existem vários gibis que conseguem esse êxito. Mas o sucesso dessas HQs se dá graças à herança já secular da “contação de histórias” em quadrinhos. Algo que dificilmente o cinema de super-herói, como meio essencialmente ligado a um mercado quase infinitesimalmente mais caro que o de HQs, vai ter o luxo de desenvolver. E muito provavelmente nem vai precisar desenvolver.

Carros e super-poderes (2)

Forming: eram os deuses alienígenas?

por Marcos Maciel de Almeida

Já sabia, há tempos, da existência da Editora A Bolha, do Rio de Janeiro. Nunca tinha, entretanto, adquirido nada que eles haviam publicado. Tudo mudou quando compareci à terceira edição da Dente, feira de publicações independentes, em Brasília. Estava lá um stand da editora cheio de belezinhas prontas para serem degustadas. Eram muitas opções, mas a grana estava curta. Decidido a não deixar a banquinha de mãos vazias, mas perdido em meio a tantas HQs bacanas e desconhecidas, resolvi pedir ajuda a quem manja do assunto. E ninguém melhor para isso que a própria fundadora d'A Bolha, Rachel Gontijo, também presente na feira. Ela me indicou Forming vol 1. O legal foi que já estava de olho no gibi, uma edição capa dura classuda, com cores que berravam psicodelia. Obrigado, Raquel. Você juntou a fome e a vontade de comer.

Alguns momentos antes, ao participar de um debate acerca do mercado de HQ independente no Brasil, Rachel havia falado sobre algumas de suas motivações para criar e continuar trabalhando com A Bolha. Um dos objetivos da editora é mostrar que existem muitos outros autores interessantes na cena quadrinística nacional e internacional, que não chegam ao grande público em razão das condições predatórias do mercado de publicações brasileiro. Dificuldades como obtenção de crédito financeiro, margens extorsivas dos distribuidores (leia-se Amazon) e a própria estrutura do mercado editoral brasileiro - que anda de mãos dadas com as chamadas "livrarias-shopping centers" – impedem o florescimento de uma cena que crie espaço para as variadas formas de expressão artística, especialmente as autorais, dentro e fora do universo dos quadrinhos. A Bolha vai na contramão de tudo isso. Busca, portanto, garantir a existência de áreas de convivência pacífica para todos: sejam grandes, pequenos, azuis, amarelos ou verde-verdinho-marrons.  O esforço de Rachel tem valido muito a pena. Desde sua criação, A Bolha já publicou quadrinhos de diversas vertentes, disponibilizando HQs estranhas, inconformistas, vibrantes, mas – sobretudo – necessárias. São mais de trinta petardos.

Forming é um deles.

Criado por Jesse Moyniham, um dos artistas responsáveis pelos storyboards da tresloucada animação Hora da Aventura, Forming é a delirante saga de uma sociedade humanoide oriunda do cruzamento de alienígenas com humanos. O problema é que o patriarca extraterrestre, Mithras, revelou-se um mala sem alça e o restante da família resolveu escorraçá-lo da face da Terra. A narrativa enfoca vários momentos importantes para a formação dos personagens, como os quebra-paus familiares do presente e a chegada dos visitantes das estrelas em priscas eras. Em clima despretensioso, Moyniham vai tecendo uma complexa genealogia de personagens às voltas com destinos ora bizarros, ora prosaicos. Tem de tudo aqui. Viagem no tempo, seres mitológicos, personagens bíblicos, organizações alienígenas com funcionários relapsos, incesto e pancadaria. É aquele gibi que você vai lendo torcendo para não acabar, dando rápidas olhadelas no número de páginas restantes e suando frio quando percebe que o fim está próximo. 

Mithras

Forming é um universo instigante e conta com um elenco surpreendente. Adão e Eva, soldados hermafroditas, gnomos, divindades galáticas e guerreiros de sovaco raspado da quarta dimensão participam de uma epopeia histórica com ares de novela mexicana. E o drama adquire proporções cósmicas quando deuses demasiadamente humanos passam a interagir em pé de igualdade com seus adoradores. Criadores e criaturas passam, então, a dançar uma valsa sórdida que poderá trazer – e trará – consequências desastrosas para todos os envolvidos.  Usando e abusando de grades de 9 quadros, o autor desvela uma aquarela de cores que deixaria Albert Hoffman, criador do LSD, com um sorriso nos lábios.

Um dos grandes temas que perpassa o gibi é o relacionamento humano com a religião. De forma sutil, mas constante, o autor suscita diversos questionamentos de cunho espiritual, como por exemplo o fato de que as entidades destinatárias da adoração humana podem não ser flor que se cheire. Outra questão levantada é a adoração religiosa cega e automática, livre de reflexões, que oprime qualquer tipo de manifestação que aponte novas direções e ideias.

Diagramação com 9 quadros. A mais comum em Forming

Pancadaria divina

Navegando pelas páginas de Forming pude compreender mais claramente a ideia por trás d'A Bolha. Na junção de formatos aparentemente incongruentes, como o independente e o luxuoso, a editora quebra os tabus que tanto restringem a diversidade das produções em uma forma de arte que é – essencialmente – transgressora. A mensagem aqui é que tem pra todos. Pode ter gibi indie com capa dura. Pode ter com papel bom. Pode ser colorido. E se não for assim, ninguém tem nada a ver com isso. 

Forming vol.2 deve ser lançado até o segundo semestre de 2018. Aguardo ansiosamente. Enquanto isso, vou dar uma vasculhada nos outros títulos d'A Bolha Editora. Prevejo novas sessões de entretenimento de alta qualidade. 

Teaser para Forming volume 2. 

UGRA FEST 2017: Pequeno diário de uma grande epopeia

por Márcio Jr.

Foi-se o tempo que andar de avião estava tranquilo e favorável. Agora, toda vez que precisamos nos deslocar algumas centenas de quilômetros, a velha pesquisa de mercado obrigatoriamente entra em cena, buscando opções minimamente viáveis. Foi o que fizemos eu e Márcia Deretti – minha companheira de trampo e de vida – para participarmos da UGRA FEST 2017. Um livro novo fumegando debaixo do braço e a vontade de rever uma montanha de amigos forneceram o álibi perfeito para a viagem. Resolvemos, inclusive, chegar dois dias antes. É essa jornada que divido agora com você, prezado leitor Raio Laser.

O vôo de ida saía de Goiânia quinta-feira, 06 de julho, às 05:57 da madruga. Questão de preço, óbvio. Depois de passar dias finalizando o livro a ser lançado, além de reunir materiais pra banquinha e afins, consigo fechar as malas por volta de 02:30h. Coloco o despertador para apitar às 04:00h e... é lógico que programei tudo errado! Por sorte, a Márcia acordou às 04:20 e saímos os dois correndo como loucos rumo ao aeroporto. Agradeço publicamente ao SpeedRacer que pilotava nosso Uber.

Douglas e Daniela Utescher; e o Márcio!

Na fila do embarque, damos sequência ao calvário. As novas regras de bagagem me obrigam a fazer um remanejamento entre malas. Estávamos dentro do peso permitido, mas agora existem restrições de volume. Tira uma cueca daqui, passa uns livros pra lá e tá feito o negócio. Uma das malas que iria despachar agora tem que ser levada em mãos.

Com o tempo sempre apertado, vamos para o embarque. Quando a mala passa pelo detector, a funcionária me diz que há ali dentro objetos parecidos com CDs, uma tesoura e algo orgânico não identificado. Ela pede para revistar a bagagem. Os CDs, na verdade, eram os vinis do Mechanics que eu levava para a feira. Entrego para ela a tesoura – que, apesar de pontiaguda, estava dentro do tamanho permitido. Já o tal “orgânico”... Me lembro que a única coisa orgânica que havia colocado naquela mala – que deveria ter sido despachada, lembrem-se bem – eram uns certos cigarrinhos de artista. Sou um artista. Estava a caminho de uma feira de artistas. Me parecia absolutamente razoável portar meus próprios cigarrinhos de artista.

Revira a mala daqui, futrica acolá e eu, anos de Actor’s Studio nas costas, impassível. Num dado momento, fecha a mala. Penso que estou livre. A fulana diz então que irá passar novamente a bagagem pelo detector. Como bom ateu, entreguei pra Deus. Ela olhou pelo equipamento e me mandou essa: “Tem malas que têm algumas coisas orgânicas mesmo, que a gente não consegue identificar. Boa viagem.”

Adrenalina a mil, entro no avião e encontro minha poltrona. De repente, pelos autofalantes da aeronave, ouço o comissário solicitar: “Gostaríamos que se identificasse o Senhor Marc... elo”.Nova descarga de adrenalina. A essa altura do campeonato, barba branca, dois filhos no lombo, passar por esse tipo de emoção barata não é mais tão divertido quanto no passado.

Chegamos ao Tukkkanistão. Nos hospedamos no hotel São Paulo Inn, Largo Santa Ifigênia, centrão. Hotel charmoso, porém decadente. Fachada lindona das antigas, quarto meio baleado. Do jeito que eu gosto, mais do que mereço. Fazem nosso check-in antes do almoço. A sorte começa a mudar.

Rolê básico pela região, almoço de lei no Sujinho. De noite, encontramos o grande Lauro Larsen, que acaba de editar, pela Mino, a pérola Os Morcegos-Cérebro de Vênus e Outras Histórias – aguardem resenha muito em breve aqui no Raio Laser. Numa churrascaria nas imediações do hotel, tomamos umas tantas longnecks e uma cachacinha para espantar o frio, enquanto papeamos sobre mercado editorial brasileiro de HQs, quadrinistas nacionais das antigas, além de avançarmos num projeto para um futuro próximo. Lauro é o cara.

Dia seguinte, peno no purgatório – Rua 25 de março – para chegar ao paraíso – Mercado Municipal. Pastel de bacalhau, sanduíche de mortadela e chope me fazem acreditar que a vida pode ser uma poesia sem fim. E aí não resta alternativa a não ser ir ao cinema conferir o novo filme do gigante dos quadrinhos (entre outras tantas searas) Alejandro Jodorowsky. Muita felicidade ver Jodorowsky em ação, esbanjando vigor aos 88 anos de idade, num filme que poucos teriam colhões e/ou talento para dirigir. Coisa fina. Encerramos a noite na Bella Paulista. Deixo um rim como parte do pagamento por uma salada, um omelete e quatro chopes.

Manhã de sábado, dia 08 de julho. Ouriçados, mala estufada de livros, gibis e quetais, tomamos o caminho da UgraFest 2017. O Sesc Belenzinho, local onde ocorre o evento, é longe do centro. Mas a estrutura do lugar compensa a distância. Gigantesco e maravilhosamente bem-cuidado, recebe o festival de forma pra lá de apropriada.

Procuramos nossa mesa e, felicidade, estamos ao lado do grande chapa (e quadrinista) DW Ribatski. Nesse primeiro instante já era perceptível o cuidado com que o casal Ugra, Douglas e Daniela Utescher, organizaram todo o evento. Os mais de 100 expositores estavam dispostos não de forma aleatória, mas por afinidade. A UgraFest é um evento que se pauta pela diversidade dentro da produção gráfica independente, o que faz com que os mais diversos tipos de propostas estivessem ali representados. Publicações bagaceiras, alternativas, experimentais, sofisticadas, indie, punk, roqueiras, mainstream e o que mais fosse possível – com exceção feita à produção meramente comercial – tiveram guarida nesta edição. E dispor autores e publicações de forma inteligente criou uma cartografia belíssima da produção independente brasileira.

Ribatski logo participaria de um dos primeiros debates do evento. Durante o período, tomamos conta de sua banca.Os debates e palestras foram outro dos diversos pontos fortes da UgraFest 2017. Temas e convidados escolhidos por quem entende do riscado geraram uma discussão absolutamente relevante para o momento que o mercado editorial brasileiro atravessa. Infelizmente, por causa da feira em si, não pude participar de nenhum destes bate-papos, apesar da vontade imensa. Então, como eu sei que foram bons mesmo? Ora, quem foi, comentou. E não sou burro de duvidar da categoria de gente como Laerte Coutinho, Rafa Campos Rocha, Fabio Zimbres, Luiz Gê e Ramon Vitral.

Crazy people: Ribatski, Márcia e Márcio

O público compareceu em peso ao evento, garantindo vendas ao menos razoáveis por ali. Não tenho números, mas estava bonito de se ver, ainda em que nenhum momento as coisas tenham ficado inviáveis pelo excesso de gente. Ou seja, se você é fã de filas (e, consequentemente, super-heróis), provavelmente ficaria decepcionado com a UgraFest. Ali, autores estavam o tempo todo disponíveis, felizes e abertos ao contato direto com seu público. Acho esse papo furado pra cacete, mas não vi nenhum momento de estrelismo durante todo o evento.

Estrela da festa, Marcatti, esbanjando a simpatia que lhe é peculiar, estava felizão com a exposição que montaram em homenagem aos 40 anos de uma carreira que inaugura e é síntese da produção independente brasileira. 40 artistas criaram versões únicas para o Mickey Mouse (ou Fritz, the cat, como queiram) de Marcatti: Frauzio.

Final do primeiro dia, arranco coragem do fundo da alma e atravessamos a cidade rumo à Laje – projeto/espaço cultural pilotado por DW Ribatski em Sampa. Aparece por ali a fina flor dos quadrinhos independentes brasileiros: Zimbres, Pedro Franz, Gerlach, Tiago Elcerdo, Pablo Carranza, Chiquinha e outros tantos. Cerveja rolando forte e um tal Karaokê. Márcia encara Patti Smith, mas o must da noite foi ver Zimbres atacando de bossa nova. Fomos embora antes dele mandar um Nirvana. Melhor assim.

Domingão. Uma leve ressaca faz com que nos atrasemos um pouco para a feira. Nada demais. O dia segue frenético. Lendário, Ota segue com transmissões ao vivo de seu celular podreira, enquanto vende a Garota Bipolar nº 2. Gerlach rouba a cena com Nóia, Uma História de Vingança em parceria com a galera da Escória Comix – que também lança o clássico instantâneo Úlcera Vortex Vol.II. Mas nem só de bagaceirices vive o homem. A Ugra também abarcou o pessoal dos zines gourmet. Belas edições e tiragens limitadíssimas. Impressões risográficas e ideias fervilhando. Muito legal também foi ver editoras como Zarabatana, Veneta, Marsupial, Draco e Mino travando contato direto com o público. Classe.

WAZ, Ota e Marcatti: não é pouca merda!

Pense na CCXP. A UgraFest não tem nada a ver com isso. Em um esforço meio grosseiro, poderíamos situar o evento do casal Utescher entre o experimentalismo da Feira Plana e a “HQ relevante nacional” do FIQ. Não que a feira esteja restrita apenas aos quadrinhos, mas este é, com certeza, seu carro-chefe. Quadrinhos para quem não lê apenas quadrinhos, por assim dizer. E neste sentido a Ugra joga papel fundamental no panorama brasileiro: o de tratar as HQs como uma linguagem madura, sofisticada e não restrita a um leitor incapaz de vivenciar experiências que transcendam o universo Super-Herói/MSP. (Um leitor verdadeiramente adulto, em última instância.)

O público que passou pelo evento está anos-luz de distância daquilo que chamamos de nerd.

Final de feira, correria total. Últimas vendas, trocas, contatos. Voltamos ao hotel com a expectativa de ainda sairmos para comer e beber algo. Ledo engano. Peço uma pizza, taco fogo num daqueles cigarrinhos da mala e fico um tempão na sacada do quarto, observando o Centro de São Paulo, sua arquitetura, o movimento que acontece durante a noite. Bela viagem.

Algumas das "coisas de artista" que estavam na mala do Márcio

O que ficou da UgraFest 2017? Uma onda positiva nos ares do mercado independente nacional. A mesma crise que me fez comprar um vôo de madrugada é responsável pelos golpes que editores e autores estão enfrentando no Brasil de agora. Vi a esmagadora maioria dos participantes saírem dali renovados, baterias recarregadas, não só pelas vendas – que muitas vezes não justificam o investimento financeiro de autores que vêm de outros Estados – mas principalmente por participarem deste momento incrivelmente rico que vive a produção independente. Existe uma rede de criatividade e ousadia espalhada por essa tranqueira de país. Existem trabalhos incríveis sendo concretizados. Existe gente do mais alto calibre discutindo e problematizando tudo isso. Em tempos horrorosamente negros como estes, Douglas, Daniela e a UgraFest dão a fita: um dos caminhos da resistência está na arte que transgride e não se acomoda.  E no prazer em produzi-la.

PRAÇA DO VINIL CONVIDA RAIO LASER!

Mais um evento da RAIO LASER! Neste sábado dia 15/07.

Curta o evento aqui.

Vejam o que os parceiros da MARCONDES AND CO escreveram:

"O Praça do Vinil, em edição especialíssima, convida um dos maiores sites de quadrinhos do Brasil, a Raio Laser (http://www.raiolaser.net/ ), para fazer a curadoria na feira deste 15 de julho.

E dessa vez, junto com a tradicional feira de vinil, teremos a maior reunião de sebos de HQs do Distrito Federal.

O evento será oportunidade inédita para colecionadores de quadrinhos buscarem raridades, pois trará diferentes bancas para venda e troca. Lojas e editoras, como Kingdom Comics e Dente, além de sebos e acervos particulares de todo Distrito Federal estarão à disposição do visitante.

Não esquecendo, claro, do Vinil, como sempre a estrela da festa, com as melhores coleções de Brasília, como Marcondes & Company, Filial do Rock e Givaldo Discos e outros. Mais de 5 mil bolachões à venda. A Marcondes levará também sua livraria de clássicos da contracultura!.

O evento contará com DJ especial focado em cultura pop, roquenrol, hip hop, jazz, blues, reggae, trilhas de filmes e músicas do universo das Histórias em Quadrinhos!"

Quando: 15 de julho, das 10h às 19h

Onde: Venâncio Shopping. Praça de Alimentação.

Brasília-DF

Entrada gratuita

Arte do sensacional

Pedro D'Apremont

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Dreadstar: o desbunde cósmico de Jim Starlin

por Marcos Maciel de Almeida

Comecei a ler as aventuras de Vanth Dreadstar na finada revista Epic Marvel, publicada pela Abril em 1985. Gostava bastante do mix do gibi, que tinha ainda "Legião Alien" e "Irmandade do Aço", mas quem realmente mexia com meu coraçãozinho era Vanth e companhia. Era uma história com um senso de direção impressionante, como se tudo já estivesse (e estava) milimetricamente mapeado. Os personagens eram bem construídos e os desenhos eram fantásticos. Havia drama e ação na medida certa, tanto na escala de grandiosidade – como uma boa saga cósmica pede –, quanto na avaliação do elemento humano em situações-limite. 

Mas o que eu não sabia era que já tinha pegado o bonde andando. Havia todo um passado bastante interessante do personagem, que merecia ser apreciado. Na verdade, as aventuras de Vanth que eu estava lendo eram como que uma “segunda vida” do personagem. Em sua primeira encarnação, Dreadstar tinha participado, em sua galáxia natal, do conflito entre os orsiranos e os zygoteanos, numa batalha que cobrou o preço máximo dos envolvidos. Essa história da origem de Vanth havia sido publicada na revista norte-americana Epic Illustrated, que surgia como opção viável para criadores interessados em lançar material independente. Starlin já tinha algo em mente quando surgiu a chance de entrar na revista e agarrou a oportunidade com unhas e dentes. 

Hoje é fácil associar o nome de Starlin às sagas cósmicas, mas foi somente com Dreadstar que a estrela do autor atingiu seu zênite. Embora tivesse gozado de relativa liberdade criativa quando estava por trás do Capitão Marvel e de Warlock, foi somente em Dreadstar que ele pôde realmente fazer o que lhe desse na telha, afinal os personagens eram inteiramente seus. Nas palavras do autor: “Mais de vinte anos atrás, quando estava terminando minha fase em Warlock, comecei a brincar com a ideia de fazer um tipo de conto de fadas com um final apocalíptico. O problema era que não havia lugar para publicá-lo sem ceder todos os direitos. Isso teria sido algo decepcionante. Você pode imaginar o Dreadstar aparecendo nas realidades do Homem-Aranha ou do Superman? Não funcionaria.” Tal dificuldade desapareceu com o lançamento da revista - dedicada a antologias fantásticas - Epic Illustrated, que saiu em 1979 pela Marvel.  

Segundo o arranjo definido entre a editora e os quadrinistas, os autores seriam os únicos donos do material. E Dreadstar fez parte da empreitada desde o número 1. Lançada no Brasil por duas editoras diferentes, primeiro a Devir em 2011 (Odisseia da Metamorfose) e pela Mythos em 2017 (Dreadstar: O Princípio), as primeiras aventuras do guerreiro das estrelas mostraram nosso herói pego a reboque num combate que não teria vencedores. E o detalhe mais fascinante aqui é que tudo se passava em nossa própria galáxia. Veterano da Guerra do Vietnã, Starlin fez, em Odisseia da Metamorfose, seu libelo contra todos os tipos de guerra, especialmente o conflito atômico. Lançada em pleno período de reaquecimento das tensões entre União Soviética e Estados Unidos, também conhecido como II Guerra Fria (1979-1985), Starlin mostrou que o medo da sociedade mundial de que tudo fosse pelos ares era bastante palpável. 

Antes de mais nada, é preciso dizer que Starlin decidiu que chegaria chutando bundas na estreia de Dreadstar. A partir da quarta história, por exemplo, o autor passa a fazer arte pintada (e colorida!). Avesso a zonas de conforto, Starlin resolveu arriscar e se deu muito bem. A Odisseia da Metamorfose é pura lisergia. Se seu traço habitual já era dado a nos brindar com cenas de loucura e alucinação, a inserção de cores aumentou ainda mais a viagem psicodélica dos leitores. Lembra que eu disse que Starlin tinha liberdade criativa? Bem, não vou dar spoilers, mas o final da minissérie é de cair o queixo e nos deixa pensando: ele teve realmente coragem de fazer isso? 

Sabendo que tinha um diamante nas mãos, Starlin logo percebeu que Vanth Dreadstar não poderia ficar na geladeira por muito tempo e que logo voltaria. Eis que, em 1982, é lançada a graphic novel batizada apenas de Dreadstar, que seria sucedida por uma série bimestral homônima dentro do selo Epic Comics – linha de quadrinhos autorais, direcionadas a um público mais maduro – da Marvel. Neste renascer de Dreadstar, temos o despertar, um milhão de anos depois, de Vanth em um nova galáxia, também fragilizada por um conflito secular entre forças opostas: a Monarquia e a Instrumentalidade.

Contando com a fé cega de seus seguidores e com a utilização da religião como forma de opressão das massas, a Instrumentalidade domina, com mão de ferro, metade da Galáxia Empírica. Seu líder, não por acaso chamado de Lorde Papal, é considerado o representante sagrado dos Doze Deuses, criaturas extradimensionais divinas que se julgam no direito de reger os caminhos de incontáveis seres e planetas. Conforme descrito por Starlin, “a Instrumentalidade é uma poderosa ordem político-místico-religiosa que governa sua metade da galáxia com ameaças de danação, decretos divinos, inquisições indiscriminadas e guerreiros sagrados”. Seus grandes rivais, a Monarquia, são a força que domina o restante da galáxia, contando com grande poderio militar financiado por uma dinastia milenar. Starlin continua: “A Monarquia advém de uma dinastia de doze séculos. Fundada e mantida pela família real dos Dyologos e seus exércitos”. 

Bem, Dreadstar cairá de paraquedas no meio desse conflito, que já dura duzentos anos e foi originado por um motivo do qual poucos lembram ou se importam. Na verdade, o que está por trás dos combates é o fato de que é melhor para as potências continuarem lutando, já que a economia de guerra tornou-se bastante lucrativa e o processo de paz poderia acarretar perdas financeiras importantes para ambos governos. Trocando em miúdos, Starlin faz um paralelo com o período de Guerra Fria que era assustadoramente real. 

Alistado nas fileiras da Monarquia para direcionar a máquina de guerra a seu favor, Vanth vai subindo de patente e pula fora do exército real no momento em que está pronto para se tornar a terceira força do conflito galáctico. Para tanto, reúne uma equipe formidável e bastante coesa. O núcleo duro de aliados de Vanth conta com o feiticeiro Sygyzy Darklock, o versátil homem gato Oedi, a telepata Willow e o contrabandista Skeevo. Incomparável, aqui, foi a habilidade de Starlin em criar personagens complexos e bastante reais, e com origens bastante interessantes. Sygyzy, por exemplo, ganhou um gibi inteiro para chamar de seu. Não coincidentemente chamada de “O Preço”, a edição especial narra o terrível sacrifício do ex-bispo da Instrumentalidade para lutar em prol do futuro da galáxia. 

Visualmente bem sacados e com uma interação bem azeitada, feita para Chris Claremont nenhum botar defeito, os parceiros de Vanth ajudam seu líder a virar o jogo no – até então – conflito bilateral. As constantes intervenções e vitórias de Vanth, entretanto, chamam a atenção do nefasto Lorde Papal que, sendo bem sincero, é um Thanos repaginado. Se o arquirrival de Warlock tinha fixação pela morte, o nêmesis de Dreadstar só anseia poder. Starlin, então, constrói uma trama que atualiza sua crítica a sistemas totalitários e regimes autocráticos, sejam laicos ou religiosos. A loucura e megalomania de Magus – versão futurista e maligna de Adam Warlock – está claramente refletida na insaciável sede de controle de Papal. Também não é mera coincidência a semelhança física entre Starlin e Dreadstar. O alterego do autor é seu avatar na luta contra todas as formas de tirania. 

O problema é que as frequentes vitórias de Vanth deixam seu rival cada vez mais transtornado. Resultado: cenário perfeito para que Starlin lance mão de temas recorrentes em sua obra: morte, fúria, e delírio. Em dado momento - até hoje chocante – a escalada vertiginosa do ódio de Papal faz com que ele chegue ao cúmulo de destruir – com armas atômicas – uma metrópole inteira, numa tentativa de eliminar Vanth e Sygyzy. Abaixo vemos exemplos da técnica, tipicamente starliniana, de repetir diagramações e mostrar as similaridades e contrastes entre os protagonistas. No primeiro temos o desabafo de Vanth após o ataque nuclear exagerado e sanguinário de Papal. No segundo temos a reação do chefe da Instrumentalidade ao sobreviver à traição de um oficial que tinha filhos na cidade-palco da devastação nuclear.

Livre da interferência do Comics Code, sem a obrigação de veicular anúncios na revista e com sucesso de crítica, parecia que Starlin finalmente se aquietaria e ficaria com o burro na sombra na Marvel, certo? Ledo engano! O incansável criador aproveitou que os personagens eram seus e picou a mula para a First Comics depois da edição 26 da série regular. Malandro que é, Starlin pulou fora bem no auge da trama, no momento exato em que ia revelar quem era o traidor da equipe. O título ainda teria mais 38 edições pela First, mas sejamos francos, o filé mignon só vai até o número 30, quando ele conclui a saga principal. Nem mesmo Peter David e Angel Medina, que assumiriam a revista após a saída de Starlin, foram capazes de fazer a estrela de Vanth voltar a brilhar. Em 1994, Dreadstar ganharia uma nova minissérie em seis partes, pelo selo Bravura, da Malibu Comics. A revista tinha o slogan: “Dreadstar está de volta, e ela está furiosa!”. Sim, é isso mesmo que você leu. Bem, na verdade não era o Dreadstar original, mas sim sua filha, numa história ruim de chorar. 

Lorde Papal: minha religião é o poder

Leitura obrigatória para fãs de ficção científica e de bons quadrinhos, Dreadstar teve uma trajetória errática de publicações. A posse dos direitos nem sempre pode ser considerada uma benção, especialmente quando isso faz com que os personagens pulem de editora em editora.

Dreadstar é um exemplo pródigo disso. No quesito troca de editoras o guerreiro das estrelas está mais para mochileiro das galáxias, em razão de sua peregrinação por “trocentas” casas publicadoras. Para quem se interessar, montei aqui a ordem de leitura da série, tanto no Brasil quanto no exterior:

Lista 1. Publicações de Dreadstar nos EUA:

1) Epic Illustrated # 1-9 (Marvel, 1979). Aqui está a Metamorphosis Odyssey, posteriormente relançada em encadernados por editoras como SLG Publishing e Dynamite.

2) Dreadstar Annual: The Price (Marvel, 1983)

3) Dreadstar Graphic Novel (Marvel, 1982)

4) Epic Illustrated # 15 (Marvel, 1982) 

5) Dreadstar # 1-26 (Marvel/Epic, 1982). Posteriomente relançada em encadernados por editoras como DF Edition (1 ao 12),  SLG (1 ao 6) e Dynamite ( 1 ao 12) .

6) Dreadstar # 27-64 (First Comics, 1986). Inédito no Brasil.

7) Dreadstar # 1-6 (Malibu Comics, 1994). Inédito no Brasil. 

Lista 2. Publicações de Dreadstar no Brasil:

1) Dreadstar: Odisseia da Metamorfose (Devir, 2011) 

2) Dreadstar: O Preço (Globo, 1992)

3) Graphic Globo # 1: Dreadstar (Globo, 1988)

4) Epic Marvel # 1-6 (Abril, 1985)

5) Dreadstar, O Guerreiro das Estrelas # 1-10 (Globo, 1990)

OBS 1: O gibi Dreadstar: O Princípio (Mythos, 2017) coleciona os itens 1, 2, 3, e 4 da lista 1. 

OBS 2: O gibi Dreadstar (Mythos, 2016) coleciona as primeiras 12 edições da série de Dreadstar lançada pela Marvel/Epic nos EUA em 1982.

É isso, garotada. Quem quiser mergulhar de cabeça numa saga cósmica de responsa já sabe onde procurar. Abraço! 

Sygyzy Darklock

Emancipação feminina, patriotismo americano e práticas sadomasoquistas: as primeiras aventuras da Mulher Maravilha

É com plena satisfação que a Raio Laser anuncia mais uma espetacular colaboradora! Trata-se da professora e pesquisadora em história em quadrinhos e fotografia Havane Melo. Aproveitando o ensejo do filme, Havane produziu pra gente este completíssimo texto sobre a Mulher-Maravilha de Era de Ouro. Uma ótima maneira de entrar chutando portas aqui nesse território. Valeu Havane! (CIM)

por Havane Melo

As primeiras histórias da Mulher Maravilha, a Princesa Diana da Ilha Paraíso, datam da década de 1940 e são assinadas por Charles Moulton. Para começar já na polêmica, esse nome, na verdade, é um pseudônimo que mistura os sobrenomes do Dr. William Moulton Marston, psicanalista que escreveu artigos em defesa dos quadrinhos quando a sociedade americana começava a atacá-los e considerado o criador da personagem, e de M. C. Gaines, editor da All-American Comics Group, aliada formal da DC Comics. Anos depois (pasmem!), a esposa oficial de Martson, Elisabeth Holloway, declarou que teve participação direta na criação, inclusive definindo o sexo da personagem. 

Para desenvolver o visual e as feições da heroína baseados nas instruções de Moulton, foi contratado o desenhista Harry G. Peter. Esse artista foi o responsável por inserir as cores e símbolos americanos no uniforme da personagem, porém, também não levou crédito, nem quando Holloway assumiu publicamente a participação nas histórias.Posteriormente, essas informações foram amplamente divulgadas e, em muitos materiais atuais, como a coletânea organizada por Roy Thomas, constam os nomes dos desenhistas e roteiristas de cada história. 

As aventuras do período inicial apresentam a origem da Mulher Maravilha e sua saída da Ilha Paraíso para a América. Para entender melhor essa fase, temos que considerar o contexto político, social e intelectual americano, ou seja, a conjuntura da década de 1940 e seu reflexo direto na comunicação da época.

Politicamente, o mundo caminhava rumo à Segunda Guerra e o cenário americano incentivava o patriotismo e a valorização das forças armadas. Não é por acaso que a Mulher Maravilha usa uniforme nas cores da bandeira americana. A primeira versão foi a mais descarada de todas e continha, além das estrelas brancas sobre fundo azul, a águia careca dourada estampada no peito. Dito isso, não vai ser nenhuma surpresa se eu te contar que a Maravilha se apaixona à primeira vista por um piloto do serviço de inteligência americana, Capitão Steve Trevor, o primeiro homem a aparecer na Ilha Paraíso, exclusivamente habitada por amazonas. Trevor serve como elo entre o mundo do patriarcado (o equivalente à sociedade como a conhecemos) e a princesa Diana. É para ajudá-lo a concluir sua missão de manter a liberdade e a democracia e para auxiliar as mulheres ao redor do mundo que Diana deixa a ilha para viver na América. 

Sob o aspecto social, a guerra tinha a capacidade de realocar a força de trabalho masculina para os campos de batalha, o que favorecia o direcionamento das mulheres: das tarefas essencialmente domésticas, para o mercado de trabalho. Apresentar uma heroína capaz de resolver difíceis problemas sozinha não era apenas lazer, era propaganda. Além disso, os quadrinhos de Sheena, a rainha da selva, estavam rendendo bons negócios naquele período. E embora Charles Moulton assinasse sozinho as histórias da Mulher Maravilha, a verdade é que suas duas companheiras (sim, duas!) participavam ativamente da construção da personagem.  

Há boatos de que os braceletes de Diana foram inspirados nas pulseiras de Olive Byrne, a companheira não oficial de Moulton, e de que o trio era adepto de prática sadomasoquistas. E por que isso é importante? Porque está tudo embutido nas primeiras histórias. Para mais informações sobre o assunto, veja esse texto aqui ou dê uma olhada no livro The Secret History of  Wonder Woman, de Jill Lepore. Mas fique sabendo que a Mulher Maravilha não tinha a pretensão de ficar sozinha e, assim que saiu da Ilha Paraíso, tratou de fazer novas amizades femininas, aliando-se a Etta Candy e às garotas da Irmandade Beeta Lambda. Durante anos essas personagens, geralmente sem nomes, apareciam em praticamente todas as histórias, auxiliando a Mulher Maravilha a resolver diversas situações.

A irmandade Beeta Lamba, algumas cenas que remetem a práticas S&M e mensagens subliminares

O terceiro pilar dessa história leva em conta a roteirização das HQs daquele período. Gente, faz mais de 50 anos que essas histórias foram escritas! Naquela época, autores e público ainda estavam desenvolvendo diversas possibilidades de utilizar essa linguagem e, eventualmente, o desenho é redundante com o texto. Para a sorte do leitor contemporâneo, o conteúdo é divertido, cheio de aventuras e, eventualmente, cabe até um suspense. Isso sem falar que a MM está longe de ser uma donzela em perigo. É ótimo vê-la carregando Steve Trevor nos braços e salvando outros tantos homens.

Nas primeiras histórias, é comum ver a Mulher Maravilha carregando homens nos braços após salva-los de situações de perigo iminente

Ao longo dos seus 75 anos, a MM foi retratada de diversas formas, de acordo com o grupo (roteirista, desenhista e editor) que a assinava. Isso fez com que ela tivesse não apenas uniformes e origens variáveis, mas diversos perfis psicológicos foram desenvolvidos. A Maravilha de Moulton é erotizada, mas não é vulgar. Os desenhos de Gaines não favoreciam jogos de anatomia para satisfazer o imaginário masculino, como a de Yanik Paquette (Mulher Maravilha – Terra Um, de Grant Morrison), por exemplo. A erotização dessa fase chega a ter um tom cômico e sua relação com outras mulheres é de irmandade, mesmo quando em lado opostos da batalha. 

Mulher Maravilha: amigas e inimigas. Não passa nada!

Nas histórias modernas da MM, que privilegiam a origem mitológica da personagem em detrimento das ideias patriotas dos tempos de guerra, foi desenvolvida a “adorável submissão à vontade das amazonas”. Um conceito que privilegia os interesses da coletividade das amazonas em detrimento de seus possíveis desejos e valores pessoais. Mesmo nas histórias originais, a união entre mulheres tem lugar marcado nas lutas de Diana, vide a frequente aparição das garotas da Beeta Lambda. Provavelmente por interferência da vida privada de Moulton. Elisabeth Holloway era advogada e a principal provedora da família numa época em que apenas 2% desses profissionais era composto por mulheres. Já Olive Byrne – sobrinha de Margaret Sanger, importante feminista da década de 20 responsável pela primeira clínica de planejamento de natalidade nos Estados Unidos – embora tivesse trabalhado com Moulton em Harvard, permaneceu em casa cuidando dos filhos da família, duas crianças geradas por cada uma das esposas. 

Esse conjunto de HQs são um marco social, tanto pelo conteúdo das narrativas quanto pelo contexto no qual essas histórias foram criadas. É possível que a Maravilha seja uma das personagens femininas mais fortes da cultura pop, especialmente nessa época de império cinematográfico de grandes editoras, DC e Marvel Comics. Por isso, é importante perceber que a formatação atual da personagem foi criada em consonância com o atual público feminino das HQs e do cinema de super-herói. Por muito anos, nossas expectativas como leitoras não foram levadas em consideração. Esse cenário mudou, o número de leitoras e artistas de HQs finalmente tem sido observado e sua atuação, inclusive como consumidoras ativas de produtos e merchandising, incorporada às práticas de mercado. Isso é ótimo. Dá visibilidade para o feminismo, aponta para a derrocada da sociedade patriarcal tradicional que nem os próprios homens aguentam mais (ops, tô generalizando, ok?), mas não deve ser idealizado como um ícone. É um sinal dos tempos, sem dúvidas, mas está intimamente ligado ao poder de consumo feminino (Não esqueçam disso, migas!). 

Dá para ter uma ideia do uso comercial da personagem nesse vídeo, que mostra um tour pelo Museu da Mulher Maravilha, administrado por Christie Marston, neta de Moulton.

Em 2015, Roy Thomas compilou mais de 20 histórias dos primeiros anos da Mulher Maravilha (1941-1945) em um encadernado de ótima qualidade, com capa dura, papel especial, cores ajustadas, boa impressão e a identificação de roteiristas e desenhistas de cada história, de acordo com o Online Grand Comics Database.Com base nos primeiros anos que levaram à Segunda Guerra Mundial, Thomas também compilou as primeiras histórias do Batman e do Super Homem, compondo a coleção The War Years, sobre a trindade de heróis da DC. Esse texto foi escrito logo após o contato com tal material. Se você é fã de um desses heróis, não deixe de conferir os livros e conhecer os primórdios de suas caracterizações, conforme elaboradas pelos autores originais.

Coleção The War Years, de Roy Thomas. Pois é, o Batman sorria nessa época!