Todas as Pedras no Fundo do Rio: não há segunda chance nesta vida

por Ciro Inácio Marcondes

Eu gostava de pensar que Wagner Willian era o mais felliniano dos quadrinistas brasileiros. Porém, se tem uma coisa de que não se pode acusar o velho Wagner, é de que ele se repete. O Maestro, o Cuco e a Lenda elaborava a memória (tal qual o mestre italiano) num prisma de invenção e delírio, algo que também vamos achar em Silvestre, mesmo que em outra chave. Mas eis que chega este Todas as Pedras no Fundo do Rio, cuja proposta inicial era adaptar (subvertendo) o filme A Felicidade Não se Compra (1946), de Frank Capra, e embola tudo.

Este novo livro, um épico de mais de 200 páginas lançado pela editora do autor (Texugo) junto com o Páginas Amarelas, é um fato novo na carreira de Wagner. Ambicioso, atravessando épocas, personagens e tramas paralelas, ele parece ser também o seu esforço em dotar uma narrativa mais clássica de potência de linguagem, de deixá-la se incorporar às necessidades do roteiro, beirando a quase total exaustão.

Com estética fortemente calcada nos anos 1950, “Todas as Pedras no Fundo do Rio” é um dos trabalhos mais ambiciosos de Wagner Wilian, e aponta para várias direções.

Sentimos, ao final desse investimento artístico, de fato, um autor pleno de suas potências, porém também exaurido. É uma obra que carrega um peso e a dura responsabilidade de dar conta das ambivalências do Brasil atual e também de sua história. Cheia de amargor e fúria, não deixa também de resvalar em suas suspeições e contradições. Às vezes parece querer atravessar um mundo muito maior do que qualquer narrativa possível.

Pois se outras obras desse consistente autor traziam como marca certa estranheza alien (tipo Bulldogma) ou franca abertura para a fantasia (como os acima mencionados), Todas as Pedras no Fundo do Rio é áspero e furioso, mas não chega a se distanciar tanto da linguagem acessível e franca de Capra, que entre outras coisas fez (não por acaso) filmes de propaganda para os EUA na Segunda Guerra. O filme A Felicidade Não se Compra é uma jornada de redenção, de um potencial suicida, diante de sua capacidade de fazer o bem ao mundo, levado por um anjo da guarda. Uma segunda chance. É um bonito libelo de Natal, mas de uma caretice que só mesmo os anos 1940 poderiam conformar.

Dimitri (que tem cara de Sérgio Moro) assiste ao clássico natalino “A Felicidade Não se Compra”, de Frank Capra. Não há segunda chance nesta vida.

Todas as Pedras no Fundo do Rio é também uma jornada, mas sem volta, implacável, por uma estrada perdida. “We get no second chance in this life”, dizia o saudoso Jason Molina, da banda Songs: Ohia, outro que praticamente se suicidou. O romance gráfico de Wagner, nessa toada, conta a história de Dimitri, um descendente de russos que fogem do comunismo para um país fictício, Capris, na América do Sul. Este é uma espécie de irmão mais novo do Brasil, que reflete, do nosso país continental, a inclinação para ser corrupto, desigual e degradante. Brasil e Capris são como gêmeos siameses, e Wagner Willian parece ter pensado essa duplicação para que vejamos nossa própria realidade com certa perspectiva.

Diluição do presente no passado

Situada nos anos 1950 e 1960, essa história atravessa as explosivas mudanças sociais que o século 20 viu acontecer nesse período, com alterações sutis, nuances que refratam o sentido do quadrinho para os dias atuais. Dimitri, um burguês que, também não por acaso, tem a cara de Sérgio Moro, representa uma elite industrial que precisa se adaptar às mudanças na ordem colonial que os tempos modernos impõem. É uma figura indecisa, frágil e de psicologia lacerada por forças que não consegue compreender.

Grandes sequências e minuciosa observação de detalhes: alguns dos trunfos de “Todas as Pedras no Fundo do Rio”.

Lara, esposa de Dimitri, antecipa a segunda onda do feminismo e a luta armada, e convalesce diante de um transtorno mental. Nada é por acaso. Assim também ocorre com Daren, um homem negro numa sociedade de brancos, cuja única opção é se radicalizar. Todas as Pedras no Fundo do Rio certamente pode ser acusado de importar um discurso contemporâneo (“woke”), às vezes em falas e ações, para a peculiar consciência dos anos 1950. Mas trata-se de Capris, e não exatamente do Brasil, e passado e presente se diluem numa obra que busca apontar rastros de um no outro.

Aqui, a igreja é perversa e midiática. O racismo é brutal e as rebeliões, extremamente sangrentas. O medo do comunismo é flagrante e paranoico. Podemos pensar que o quadrinho está um grau acima da realidade, mas é triste constatar que vivemos num mundo praticamente idêntico ao de Capris.

Os dramas de Lara e Daren personificam angústias antigas e contemporâneas do Brasil e seu “duplo”, Capris.

Denso, por vezes confuso e aleatório, Todas as Pedras no Fundo do Rio é imperfeito pelo fatal erro de querer abraçar uma realidade irredutível à arte. Porém, é belo também justamente por isso, o que corrobora seu desafio estético: há uma pressão do narrar em suas páginas, e a paleta de cores se adapta às condições intempestivas das tragédias anunciadas na trama. É a linguagem linear querendo transbordar em vibrações e raiva. Poucas vezes, no Brasil, quadrinhos feitos em matriz digital foram tão interessantes.

Independente das irregularidades que podemos achar nas suas obras, hoje é impossível deixar de reconhecer que Wagner Willian é uma das vozes mais originais e artisticamente sofisticadas dos quadrinhos brasileiros. Ele não apenas se desafia a fazer trabalhos cada vez mais elaborados, diferentes e que apontam para distintas direções, como também tem uma inacreditável capacidade produtiva. Um homem-quadrinho, de fato, e com aguda visão política. Seu novo romance gráfico é um importante tijolo (ou pedra) a mais no legado que vem construindo, e abre as portas da década de 2020 com baderna e estardalhaço.  

Além de tudo, “Todas as Pedras no Fundo do Rio” nos abraça com diversas possibilidades para a linguagem das HQs.