Samsara, de Guilherme de Almeida Prado e Hector Gomez Alisio: paixão primal

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por Lucas Reis

Guilherme de Almeida Prado é um dos mais importantes e talentosos realizadores do cinema brasileiro das décadas de 1980 e 1990. Dono de um estilo muito particular, calcado em um maneirismo comum a vários cineastas da época, que tinham como característica uma consciência da história do cinema e apostavam em produzir filmes hiperbólicos encharcados de nostalgia. Para Prado, o gênero noir era especialmente relevante, sendo trabalhado em filmes como A Dama do Cine Shanghai (1987), Perfume de Gardênia (1992) e A Hora Mágica (1998).

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No entanto, apesar de ser um cineasta de enorme talento, o momento do cinema brasileiro em que Prado estava no auge de sua vitalidade artística não era dos melhores. O país saía de um ditadura militar, tinha uma inflação galopante e, no início da década de 1990, a Embrafilme encerrou suas atividades, minguando a produção brasileira. Não que antes do fechamento da Embrafilme a situação estivesse muito melhor. Prado lembra, em entrevista, que uma das opções estéticas de A Dama do Cine Shanghai ao manter algumas partes da ambientação em completa escuridão surgiu porque não haveria tantos custos com iluminação. Claro que essa condição é esteticamente fundamental para gerar um tom de artificialismo no filme - intenção do realizador. Contudo, as condições para que essa proposta fosse colocada em prática chegam a assustar ao considerarmos a precariedade da produção em contraste com a qualidade técnica da obra - embora a qualidade técnica não seja o maior destaque do filme.

Entre o lançamento de A Dama do Cine Shanghai e Perfume de Gardênia, Guilherme de Almeida Prado publicou sua única história em quadrinhos: Samsara (1991), considerada por alguns a primeira graphic novel brasileira. Não pretendemos entrar no mérito de defender se Samsara é realmente o primeiro romance gráfico do país. Afinal, primeiro é preciso definir o que seria uma graphic novel. É certo que o gibi faz parte de uma coleção da finada editora Globo intitulada Graphic Globo, legitimando a ideia de ser pensada como romance gráfico, mas o trabalho de Prado foi apenas a sétima edição da série. Uma argumentação óbvia seria a de que as outras edições são de estrangeiros e foram publicadas primeiro no exterior. Todavia, em Samsara, Prado divide a criação com Hector Gomez Alisio, desenhista argentino, o que embaçaria essa argumentação. Afinal, trata-se de uma graphic novel brasileira, com um dos autores estrangeiro.

No fim das contas, faz pouco sentido debater se a obra seria realmente o primeiro romance gráfico do país, mas podemos valorizar seu destaque em um momento específico dos quadrinhos brasileiros. Por exemplo, no início da década de 1990, havia uma editora interessada em classificar como graphic novel uma obra produzida originalmente no país. Isso ocorreu especialmente após o lançamento de materiais estrangeiros como Maus, de Art Spiegelman e O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller - cujos cartazes aparecem rapidamente em Samsara. Então, se um roteiro cinematográfico não teria condições de ser produzido, uma história em quadrinhos serial ideal para dar vida à história.

A dificuldade de produção de Samsara está ligada aos gêneros narrativos. Se o filme noir ainda era passível de referência, uma ficção científica seria impossível naquele momento - de forma geral, o diálogo do cinema brasileiro com este gênero é rarefeito. Em uma história em quadrinhos, porém, o universo era um papel em branco prestes a ser tocado. Certamente, algumas das costumeiras obsessões de Guilherme de Almeida Prado fazem parte de Samsara. Assim como Maitê Proença em A Dama do Cine Shanghai  e Onde andará Dulce Veiga? (2007), Christiane Torloni em Perfume de Gardênia, Imara Reis em A Flor do Desejo e Julia Lemmertz em A Hora Mágica, aqui também há o tipo “mulher misteriosa e inesquecível”. No caso, é Eve Fowles que deixa o protagonista, Adam Lovecraft, fascinado por sua beleza enigmática.

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O rapaz é um detetive de quinta categoria que tem dificuldades de pagar o aluguel e um olhar cínico para o universo à sua volta. O tipo detetive também não é incomum nos filmes de Prado (aliás, é uma característica básica do cinema noir). Isso ocorre com Antônio Fagundes em A Dama do Cine Shanghai, Claudio Marzo em Perfume de Gardênia e David Cardoso em A Hora Mágica. Mesmo que esses sujeitos citados pudessem ter uma queda por belas mulheres, ainda pareciam ter mais autocontrole do que Adam, que inicia uma paixão  tórrida por Eve após vê-la uma única vez. É como se esse sentimento fosse o mais primitivo possível por parte do rapaz, que se mete nas mais intensas enrascadas para conseguir ver a moça novamente.

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Se detetives de quinta categoria e damas fatais em narrativas policialescas fazem parte do universo comum de Guilherme de Almeida Prado, a metanarrativa também é uma característica de suas obras, estando presente também em Samsara. Inclusive, Adam se tornou detetive influenciado por histórias em quadrinhos e, num certo momento, chega a dizer, após ficar de tocaia para esperar Eve sair de um local e conseguir falar com ela: “Para um detetive de história em quadrinhos bastaria virar a página e ela estaria de volta, mas no meu caso, duas horas e meia foram um recorde difícil de superar”.

Em outro momento, destaca que a infância sempre parece mais colorida, embora, pouco antes, o leitor tenha se deparado com memórias de sua infância em preto e branco. Entretanto, a mais curiosa é quando Adam e Eve entram em um cinema em busca do antagonista da história. O filme que está sendo projetado é Perfume de Gardênia, do próprio Guilherme de Almeida Prado, como é possível ler nos letreiros da sala de cinema. A obra seria, de fato, lançada no ano seguinte ao lançamento de Samsara. Ao entrar no cinema, Eve chega a comentar que não gosta de filmes estrangeiros.

A condição de declarar-se estrangeira ao ver um filme brasileiro é curiosa. Guilherme de Almeida Prado se notabilizou por uma característica de urbanidade, onde ele conseguiria radiografar todo o tipo de desajustados sociais. A metrópole do ribeirão-pretano, porém, é São Paulo. Foi nesta cidade que ele pôde mergulhar na urbe para detectar o que ela tinha de mais repugnante e apaixonante. Em Samsara, por outro lado, a ação começa em Nova Iorque - o escritório de Adam fica na Times Square -, mesmo que todos os personagens falem português. É possível comparar com os quadrinhos norte-americanos da época, por exemplo, a segunda equipe do X-Men. Os personagens dos mais diferentes lugares do mundo se comunicam em inglês como Tempestade (Quênia), Colossus (União Soviética)  e Noturno (Alemanha), embora mantenham certas interjeições em suas línguas. É o caso do alemão que lança alguns “Mein Freund” em suas frases, assim como Adam costuma dizer “shit” em momentos de tensão.

Se Samsara carrega temáticas em comum com outras obras de Prado, também existem diferenças. A ficção científica, como já mencionado, mantém uma continuidade com o interesse no gênero narrativo, porém traz camadas muito específicas não encontradas antes na obra do artista. Por exemplo: em um grande prédio convivem robôs ultra-modernos a fazer a ronda do lugar, computadores de última geração e pessoas de diferentes épocas que viajam no tempo em nome de uma organização mundial. É nesse prédio que Adam se infiltra por conta de um paixão pela mulher que viu apenas uma vez. Algo que fica mais rocambolesco à  medida em que descobre o envolvimento do homem que trabalhava em seu escritório na organização, ou quando viaja no tempo e percebe que se envolveu no sumiço do próprio pai anteriormente.

Se a ficção científica abre espaço para narrativas mais delirantes, também o faz para um discurso político de grandes proporções. Não por acaso, o vilão destaca que a história é contada pelos vencedores e, nessa disputa ideológica, outros olhares seriam varridos para debaixo do tapete. Bem, se uma empresa tem a tecnologia para viajar no tempo, é certo que a mesma comanda discursos ideológicos a partir de seus pontos de vista. Por exemplo, alçar alguém que considerem perfeito para Presidente dos Estados Unidos, mesmo que precisem arriscar a linha temporal do universo por conta de suas convicções.

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Outra diferença clara entre Samsara e a obra de Guilherme de Almeida Prado existe por conta da co-criação em conjunto com Hector Gomez Alisio. Os dois, que já tinham trabalhado juntos em A Dama do Cine Shanghai - Alisio fez o storyboard do filme -, uniram-se novamente para criar a história em quadrinhos. Profissional experiente de publicidade, começou sua carreira nos quadrinhos com Juba e Lula - adaptação do programa de televisão de mesmo nome. À época de lançamento de Samsara, Alisio já havia vencido o HQ Mix e o troféu Angelo Agostini, por exemplo.

A arte de Alisio em Samsara cria um dinamismo para a narrativa capaz de valorizar todas as fugas de Adam e Eve - são muitas -, além das passagens temporais por diferentes eras. Mestre da linha clara, os quadros do gibi são bem compostos e dão uma caracterização precisa para os personagens. Ainda é importante atentar para a nitidez dos quadros. Os filmes de Guilherme de Almeida Prado costumam se passar à noite, quando os diferentes espaços urbanos, tipicamente noturnos, abrem as portas - basta lembrar que A Flor do Desejo também é o nome do prostíbulo no filme. Os personagens ficam rodeando pelo estabelecimento e pelos bares próximos da região. Uma das principais sequências também se passa à noite, em um trem abandonado.

Seria fácil pensar que as características visuais típicas do filme noir seriam sugadas por Alisio para criar a arte de Samsara. Porém, tais características são rejeitadas em função da aceleração imposta no quadrinho. Mesmo a cor vermelha, tão comum nos filmes de Prado, não tem muita presença em Samsara, já que Alisio aposta em tons amarelados na maior parte do tempo, indicando a preferência pelo dia ao invés da noite. Até a última página o trabalho de Alisio se mantém firme. Os três últimos quadros abusam do amarelo, como em um nascer do sol que representasse o começo de uma nova vida. Será aí que Adam e Eve terão, sozinhos, seus recomeços. Até o desejo primal de Adam passa a fazer sentido no conjunto da trama.

Dentro do universo singular de Guilherme de Almeida Prado, cineasta reconhecido por seus grandes filmes, Hector Gomes Alisio trouxe um refrescante dinamismo para que o roteiro do cineasta se configurasse em uma história em quadrinhos. O resultado não poderia ser mais saboroso. Parafraseando o taxista, que sempre cruza o caminho de Adam, quando diz “isto não é cinema, é real”, é possível dizer que isto não é cinema, é história em quadrinhos. Das grandes.