Quadrinhos para quem?

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por Lima Neto

Vamos deixar uma coisa bem clara. Tenho uma relação bem afetiva com as histórias em quadrinhos. São muitas as memórias que guardo evolvendo estas colônias de imagens e símbolos assentadas em superfícies de celulose. Mas talvez a mais viva dessas memórias envolva um franco saudosismo. Uma fresca manhã em São Luiz do Maranhão, lembro de  voltar com meu avô do mercado, um lugar bem afastado pois eles moravam em um bairro novo que ainda estava sendo urbanizado. Passamos na banca de revista do mercado e lá brilhava na capa uma imagem pintada de Luke Skywalker sentado num taun taun, acima deles a cabeça de Darth Vader  flutuava em sua ameaçadora presença. Não me parecia estranho que essa imagem de Guerra nas Estrelas adornasse a capa de um gibi do Hulk – se tratava do número 25 de Julho de 1985. A sensação era de que tudo no mundo estava no lugar certo. Meu avô não teve dúvidas, comprou a edição e deixou seu neto feliz. Como é comum nessa idade, a edição foi lida e relida diversas vezes antes de retornar a Brasília. E embora ainda não tivesse vontade de colecionar, já que fazia parte da diversão trocar os gibis lidos por gibis novos, aquele momento e aquela revista fazem parte de uma coleção cuja relevância pessoal é impossível de partilhar com outros.

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Mas eu sou uma pessoa já de meia idade. Dos anos 80 até agora, um punhado de gerações construíram uma relação particular com as HQ’s que se difere bastante da experiência que construí.  Mas não é só isso. Novas tecnologias e avanços nas mais diversas áreas também mudaram a forma de se experimentar uma narrativa em quadrinhos.  Nos aproximando do fim da primeira década do século XXI, podemos encontrar gibis concebidos para diversas plataformas diferentes (fanzines, livros, blogs, sites, etc.),  sendo distribuídos para  públicos bastante heterogêneos (colecionadores, usuários de redes sociais, apreciadores de produção gráfica, etc.), por canais de distribuição dos mais variados (circuito de feiras, livrarias, portais na rede mundial, etc.). Em um mesmo período de tempo, várias modalidades de uma mesma mídia coexistem. Para muitos, é uma questão de tempo até que essa variedade se aglutine em uma única forma (a digital), enquanto outros dormem tranquilos com a certeza de que enquanto o ser humano mantiver seus cinco sentidos, o quadrinho impresso e sua estimulante materialidade ainda viverão por muito tempo, mesmo sem o alcance e acessibilidade de sua versão eletrônica. 

Essa multiplicidade de formas  e fins, tão típica do nosso tempo, configura um desafio para essa mídia e para aqueles que querem entendê-la e explorar suas possibilidades. Mais do que isso, essa complexidade expõe e problematiza uma tensão que é constituinte da encarnação moderna dos gibis, aquela formada pela polarização da arte e do comércio. É por isso que podemos encontrar quadrinhos destinados para venda massiva sendo distribuídos gratuitamente na web, enquanto graphic novels imbuídas da mais pura intenção artística são vendidas a preços  de três dígitos em estantes de livraria. E isso tudo é apenas uma aproximação grosseira do problema.  Com podemos dar conta do panorama completo?

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O Professor Waldomiro Vergueiro, no livro Pesquisa Acadêmica em Histórias em Quadrinhos, nos apresenta quatro categorias de pesquisadores que trabalham as HQ’s como tema.  Eu as trago para este ensaio na tentativa de organizar um pouco essa multiplicidade a que nos referimos anteriormente. Para Vergueiro, os pesquisadores de quadrinhos se dividem entre os entusiastas, aqueles que, como eu, assumem o quadrinho como objeto de pesquisa graças a uma “predileção pessoal pelo meio”.  Há ainda os praticantes, aqueles pesquisadores que também são autores e levam sua reflexão sobre esta produção para a academia. Temos também os chamados convertidos: aqueles que tendo experimentado por algum motivo instrumental a leitura de HQ’s, tomam interesse pela meio e mudam o foco de suas pesquisas para a nona arte. E, finalmente, encontramos os visitantes, aqueles que utilizaram as HQ’s de forma instrumental e tangencial, e cuja relação não chega a se aprofundar . Voltando à nossa reflexão, é possível que estas categorias sejam adequadas para entender tanto o universo dos realizadores quanto o de leitores e distribuidores de quadrinhos. Mas sejamos humildes diante da grandiosidade dessa tarefa e vamos iniciar a investigação pelo universo que, pelo menos por enquanto, é o que conta com maior número de indivíduos – contribuído para que você que esteja lendo também pertença a essa categoria -  o universo dos leitores.

Vamos tentar manter a tensão arte-comércio como um pano de fundo, já que tê-la como foco principal tornaria a escolha entre os termos “leitores” ou “consumidores” uma convoluta discussão, pois há uma considerável dúvida em torno da quantidade de quadrinhos comprados que são de fato lidos nos dias de hoje, com suas “edições de colecionador” e lombadas enfeitadas.  Podemos pegar emprestado então as categorias de Vergueiro e testá-las com as gerações de leitores que coexistem neste nosso presente. De saída, já podemos identificar que uma das delas não se aplica a este primeiro exercício. Os chamados praticantes vão configurar o outro lado da moeda cujo lado em questão é o dos leitores. Sendo assim, esta categoria, embora também leia quadrinhos, não será levada em conta.

Como disse na primeira linha do texto, tenho uma relação afetiva com as HQ’s. Isso me coloca na categoria dos entusiastas. Somos leitores cuja experiência com os quadrinhos foi de tal modo distinta que transcendeu as finalidades mais banais dos gibis, como passatempo ou um colecionismo completista. Não se trata aqui de algo que se adquire com o tempo, mas sim de uma identificação com a linguagem que é marcada pela curiosidade. São leitores e leitoras que não se fixam a um gênero específico, mas que se interessam pelas diferentes facetas dos quadrinhos. Estão presentes nas feiras e nas bancas, consomem e dão feedback constante sobre aquilo que leem. Para estes leitores, o quadrinho impresso ainda é de grande valor, embora consumam quadrinhos eletrônicos da mesma forma. Eles se esforçam em distinguir valores artísticos nas páginas. Seja uma beleza clássica de um Alex Raymond ou o experimentalismo indie de um Chris Ware.

“A beleza clássica de um Alex Raymond”

“A beleza clássica de um Alex Raymond”

“O experimentalismo indie de um Chris Ware”

“O experimentalismo indie de um Chris Ware”

Os convertidos são leitores que consomem um menor volume de quadrinhos. Dependendo do material que os converteu, podem transitar entre as feiras e livrarias ou entre a últimas e as bancas. A reverberação daquilo que leem é menor, mas existe. São apreciadores genuínos de quadrinhos, mas geralmente optando por um único lado de alguma disputa notória por público: Marvetes ou Decenautas, BD’s ou Comix, arte ou história, etc. Alguns são leitores assíduos de material digitalizado na web, que acaba sendo uma maneira gratuita de manter suas leituras em dia. Os convertidos enxergam as HQ’s como uma possibilidade artística, mas tendem a identificá-las apenas em seus nichos, como aquele leitor de Vertigo que não lê quadrinhos de terror brasileiro e vice versa.

Por último, temos os visitantes. Esses leitores geralmente terão algumas edições canônicas em suas coleções, próximas a livros ou filmes em suas estantes. São uma fatia consideravelmente grande do público consumidor e principais compradores de quadrinhos nas livrarias. Não precisam mais de bancas de revistas e as feiras não são interessantes para eles. O quadrinho digital com o qual estão acostumados se confunde com o restante do conteúdo disponível da rede, e os quadrinhos que consomem vão variar de acordo com o que os influencia. Pode ser um filme que viram, ou o comentário de um amigo. Para os visitantes, os poucos quadrinhos que têm são indubitavelmente peças de arte, ou não os teriam adquirido.

Que leitores consumirão os quadrinhos do futuro?

Que leitores consumirão os quadrinhos do futuro?

É fácil perceber que estas categorias são bastante limitadas. Se esse exercício serviu para algo, foi para reforçar a percepção de que a complexidade do fenômeno HQ nos dias de hoje merece uma reflexão mais aprofundada do que estas poucas linhas podem oferecer. As histórias em quadrinhos estão vivendo a beira de um momento de mudança. Assim como outros meios absorvidos pela unicidade técnica do modelo digital, as HQ’s procuram alternativas na multiplicidade, buscando vias de escape que possam protegê-las do futuro.

Talvez, no meio do caminho, a HQ passe a ser encarada exclusivamente como um entre outros tantos meios expressivos e passe a ser produzida e consumida por minorias especializadas, com edições de baixa tiragem a preços bem restritivos. Por outro lado, a indústria pode crescer a um tamanho tal que o próprio interesse de criadores em experimentar com o meio se enfraqueceria a ponto de termos muito pouca produção independente. Mas nos dois cenários – se é que não são dois lados de um cenário único – vemos que é improvável que não exista mais produção de HQs. Só não sabemos que tipo de leitores os consumirão.