Paralelas - Maldita Guerra Civil Espanhola: No Pasarán x A arte de Voar

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por Marcos Maciel de Almeida

Quando mais novo, certo dia vi uma camiseta da qual nunca me esqueci. Tratava-se da famosa cena de um soldado alvejado no campo de batalha. Com os braços jogados para o ar, estava prestes a deixar o mundo dos vivos. E em letras maiúsculas estava a – tão curta e dolorida – pergunta: “Por quê?”. Trata-se de imagem poderosa que até hoje sacode o coração de qualquer pessoa dotada de um mínimo de sensibilidade. Outra emoção desencadeada pela cena é a impotência diante de acontecimentos maiores que nós mesmos. É um daqueles momentos em que fica a sensação de que há muitas coisas entre o céu e a terra que fogem ao controle do cidadão comum. E em pleno 2020, mesmo após diversas décadas dos principais enfrentamentos armados que marcaram o século 20, ainda não nos é possível descartar totalmente a possibilidade de grandes conflitos internacionais ou domésticos. Motivada por causas raciais, econômicas e principalmente políticas, a tensão entre grupos de interesses diversos pode ser comparada ao gatilho de uma arma prestes a ser disparada. Caso haja distração, por menor que seja, o frágil tecido de paz social pode ser rasgado, com consequências imprevisíveis, mas certamente nefastas para todos os envolvidos.

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Especialmente dolorosos são os conflitos civis que separam amigos e familiares, frequentemente de forma definitiva. E umas das mais emblemáticas conflagrações fratricidas presenciada na Era Contemporânea foi a Guerra Civil Espanhola, ocorrida entre 1936 e 1939.  O conflito, espécie de balão de ensaio para a II Guerra Mundial, colocou em lados opostos os nacionalistas, frente heterogênea formada por grupos conservadores, religiosos, monarquistas e outros de feições fascistas; e os republicanos, formados por apoiadores da Segunda República Espanhola, que uniu, entre outros, anarquistas e comunistas. Os primeiros, liderados pelo General Franco, sagraram-se vencedores, tendo contado com o apoio da Alemanha Nazista e da Itália Fascista.  Já os derrotados foram auxiliados pela União Soviética e pelas Brigadas Internacionais, que incluíam cidadãos de diversos países, principalmente Alemanha e França, que se deslocaram para a Espanha em prol da luta pela manutenção do governo republicano. Os embates no campo físico foram tão ou mais ferrenhos que aqueles que se desenvolveram no campo das ideias. Houve espaço para grupos de ideologias diversas no espectro político beirando tanto o extremismo de esquerda quanto o de direita. O radicalismo era crescente e havia aqueles que pregavam a extinção dos partidos comunistas, outros que defendiam o anticlericalismo e ainda quem lutasse pelo totalitarismo apartidário. As consequências desse complexo conflito foram – claro – mais duramente sentidas pelo povo espanhol, que teve de suportar a longa e feroz ditadura franquista, marcada por perseguição e execução de opositores.

Naturalmente que um evento de similar magnitude serviu de inspiração para o imaginário de toda uma geração de artistas em diversos campos, como literatura, artes plásticas e cinema. Servem de exemplo obras como o filme Terra e Liberdade de Ken Loach e o famoso quadro Guernica, de Pablo Picasso, em que o pintor malaguenho retrata, de forma sublime, o sofrimento descomunal advindo daquela guerra – e de tantas outras – para a população civil. Foi como ele disse: "Em Guernica expresso meu horror diante da casta militar que está saqueando a Espanha e transformando-a num oceano de tristeza e morte."

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É claro que os quadrinhos também não seriam indiferentes a esse importante conflito. As HQs inspiradas pela Guerra Civil Espanholas são abundantes. Para analisar esse evento decidi focar em duas obras: No Pasarán (Corriere della Sera, 2020) e A Arte de Voar (Veneta, 2018). O primeiro é o olhar de um autor italiano, Vittorio Giardino, que não participou diretamente do conflito, mas que resolveu contá-lo a partir da ótica de seu personagem mais famoso, o ex-agente do serviço secreto francês Max Fridman. O segundo é uma obra de caráter fortemente pessoal escrita pelo espanhol Antonio Altarriba, também não participante da guerra, mas que recebeu relatos fidedignos de uma fonte que lá esteve, ninguém menos que o próprio pai, cuja vida pode ser resumida como desgraçada, para dizer o mínimo.

No Pasarán

No Pasarán é a terceira e derradeira aventura de Max Fridman. Embora baseada em fatos históricos, a trama é claramente ficcional, o que não lhe tira méritos. Contatado pela esposa de Guido Treves, major brigadista desaparecido, Friedman vai para a linha de frente nos arredores de Barcelona, com o objetivo de descobrir o paradeiro do militar e amigo. Envolvido numa intrincada trama de violência e espionagem, Fridman arroga para si o papel de anti-herói. É, antes de tudo, observador cínico do teatro de guerra, que se materializou numa besta quase autônoma, capaz de devorar as almas do incautos que dela se aproximam. E os dançarinos desse baile fatal, sejam de direita ou esquerda, também carregam responsabilidade pela perda de vidas e pelos incalculáveis prejuízos causados, ainda que não percebam. É isso que Fridman escuta de um de seus antagonistas: “Você não é melhor do que eu. É apenas mais hipócrita”. Frase para qual o protagonista não consegue oferecer resposta.   

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Disfarçado de jornalista para tentar se aproximar do front, Friedman consegue chegar no meio do furacão. Tendo por companhia constante bombas e tiros inimigos, presencia a morte de inocentes e testemunha o sofrimento do povo espanhol, convertido em refugiado na própria pátria. Como se pode perceber, o enfoque de Giardino é o olhar a partir do centro da ação, frequentemente vertiginosa e asfixiante, mostrando como a montanha-russa de sensações suscitada pela guerra afeta fortemente civis e militares. Como diz uma das personagens: “É a primeira vez que me mandam a uma guerra. Não reclamo, foi o que desejei. Mas não acreditava que fosse algo assim tão apavorante.”

Para quem achou estranho um italiano se interessar por um tema tão próprio de outro país, Giardino explica no posfácio da edição que sentia empatia pelo fato de a Itália também ter passado por uma guerra civil. Frequentemente esquecido, porque encoberto pelos eventos da II Guerra Mundial em 1943, o conflito italiano não era de natureza tão diferente do espanhol. Tanto que muitos combatentes da guerra espanhola lutaram ao lado dos “partigiani” da Resistência Italiana contra os apoiadores do nazifascismo.

A Arte de Voar

Antonio Altarriba tem o mesmo nome de seu pai, ex-combatente da Guerra Civil Espanhola. Para sorte do primeiro, compartilharam apenas a identidade, mas não o destino. Afinal, a trajetória do soldado é nada menos que trágica. Narrada em sequência cronológica, a história de vida do pai é uma ciranda de acontecimentos desafortunados, com um desenlace nem um pouco animador. E isso não é spoiler nenhum. Já no primeiro quadro do gibi é revelado o suicídio do protagonista, que pula do quarto andar do asilo em que morava. E cada capítulo dessa graphic memoir tem como cena de abertura a imagem da aproximação do corpo – em queda livre – com o chão. Bizarro, não?

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A história é contada em tom marcadamente pessoal. O filho narra a vida do pai como se fosse a sua. Num truque narrativo interessante, o filho conta que “O que sei de sua vida é porque eu estava com ele ou, talvez, era com ele... e agora já morto, ele está em mim”. Desde pequeno o pai já se mostrava candidato a sofredor-mor, seja por trabalhar arduamente nos campos de lavoura ou por fracassar fragorosamente em suas tentativas de obter independência financeira em Saragoça. E sua simpatia pela defesa dos ideários republicanos era tão nobre quanto ingênua. Seu alistamento nas forças de esquerda é impelido pelo desejo de pertencimento a um grupo que lhe ofereceu itens simples, mas escassos: companheirismo e alimentação. Assim, sua luta também estava relacionada com a satisfação da necessidade mais básica do ser humano: garantir a própria sobrevivência.  

Convergências e divergências

No Pasarán é uma história feita por um italiano sobre um francês envolvido na Guerra Civil Espanhola. Só aí já fica claro – de antemão – um distanciamento importante entre as obras. Além disso, embora seja baseado em ampla pesquisa, é difícil para o gibi de Giardino, com pegada de romance histórico, ser comparado, no quesito identificação e empatia, com um relato de caráter íntimo, advindo de fonte primária, como em A arte de voar. Assim, a história de Antonio Altarriba pai suscita doses maiores de cumplicidade catártica. As razões envolvendo a busca de Fridman pelo amigo, embora bastante nobres, parecem, portanto, menos imbuídas de verossimilhança e autenticidade. É como se o bem alimentado agente francês, do alto de seu elegante e bem cortado sobretudo, fosse nada mais que um James Bond em busca da próxima aventura. Nada a ver, portanto, com o percalço cheio de perrengues e dificuldades encarados por Altarriba, que vendia o almoço para comprar a janta.

Entretanto, quando o quesito é expressividade quadrinística, No Pasarán larga na frente. Primeiro que, obviamente, um roteiro ficcional permite maiores saltos que os permitidos pela – insistentemente limitante – realidade dos fatos. Por isso, Max Fridman esbanja o charme de se envolver numa teia de agentes duplos, belas mulheres e militares gananciosos. Já para Altarriba, entretanto, os desafios são menos glamourosos: achar um jeito de pagar as contas no final do mês e garantir uma sobrevivência digna para sua família.

No que tange aos aspectos artísticos, Giardino, expoente italiano da vertente “linha clara”, mostra por que é considerado um dos mestres da nona arte. Exímio narrador, confere às páginas um ritmo envolvente, quase que transportando o leitor para dentro da revista. As sequências de ação são sofisticadas e frenéticas, sem abrir mão do realismo. Já com a dobradinha Altarriba/Kim a cerveja não desce tão redonda. A história é contada de maneira arrastada e muito comportada. Claro que esse também pode ter sido um artifício dos autores para representar as fases muitas vezes tediosas da vida de Altarriba pai, mas o resultado não é tão atraente, tornando-se – por vezes – enfadonho. Kim é um desenhista “quadradão”, cujo traço não está no time daqueles capazes de chamar a atenção dos leitores por muito tempo. Mas talvez o principal ponto negativo neste aspecto seja o fato de que, como sói acontecer com muitas obras (auto)biográficas, não há muito que se possa mencionar como intrinsicamente próprio dos quadrinhos enquanto expressão de arte. Ou seja, Altarriba filho poderia ter facilmente escolhido outra mídia, como a literatura, que o resultado final não seria radicalmente diferente. Ainda assim, o autor defende com unhas e dentes, no posfácio da edição, que somente a nona arte seria capaz de entregar o produto que ele havia imaginado.

Ambas obras dialogam bastante quando remetem à perda da inocência advinda do conflito. A lembrança da guerra sempre é traumática, deixando sequelas que dificilmente serão superadas por completo. Como escreve Giardino em seu posfácio, ambos os lados cometeram atrocidades num conflito que ficou marcado por ter sido o primeiro em que cidades foram bombardeadas e a população civil foi considerada como alvo militar válido. No lado dos mocinhos, simbolizados pelas Brigadas Internacionais e Centúria Francesa (formada por espanhóis oriundos da França) ainda que os ideais pelos quais lutassem fossem mais do que justos, fica a pergunta se o preço a pagar, materializado pelas consequências morais e éticas da guerra, não teria sido alto demais. Esse dilema fica evidenciado numa conversa entre Friedman, na época alistado nas Brigadas, e seu chefe e futuro amigo Treves, que mais tarde seria punido por se recusar a fuzilar um soldado condenado por covardia.

Major Guido Treves: “É a guerra que é cruel, Max. Por isso devemos acabar com ela o quanto antes. Ninguém é inocente, mas nossas razões são justas”

Max Fridman: “Com certeza. Mas às vezes acreditar estar certo não me parece suficiente para matar alguém”

Major Guido Treves: “Você está cansado. Deveria pedir licença”.

Depois de alguns anos, Fridman, durante a busca do amigo desaparecido, reflete: “Náusea de sangue. Era isso que eu tinha. Não importa quão justa seja uma causa, simplesmente cheguei à conclusão que não podia mais matar. Tenho a impressão, caro Guido, que, no final, você também chegou a essa conclusão.”

Para Altarriba pai, sua entrada na guerra foi o destino natural para um pobre-diabo que já não tinha mais nada a perder. Sua luta pela sobrevivência fez com que se aproximasse – paradoxalmente – de um estilo de vida associado à morte. Já para Max Fridman, o retorno às linhas de frente possuía mais um caráter de autorredenção, sendo a pretensa busca pelo amigo louvável iniciativa para uma jornada que se tornou tentativa de expurgar os próprios demônios.

Conflitos complexos como a Guerra Civil Espanhola sempre deixam mais perguntas que respostas. Vittorio Giardino e Antonio Altarriba deixam algumas delas no ar. Pode existir liberdade sem justiça e vice-versa? Existem guerras justas? É possível escapar de uma guerra?  Mas a maior – e mais inquietante – questão, que ainda teima em ecoar é: “Por quê?”

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