Melhores Leituras de 2021 - Bruno Porto

por Bruno Porto

Começo de ano e a Raio Laser vem aí com sua indefectível lista das melhores leituras realizadas no ano passado (mas não necessariamente lançadas em 2021). Para quem está atualmente morando fora do Brasil, é natural sobressairem-se edições estrangeiras, mas fico feliz (e orgulhoso) que metade das HQs que escolhi recomendar aqui sejam de autores brasileiros. Agora é esfregar as mãos e aguardar as listas dos demais raiúcas. Vem com tudo, 2022! (BP)

El tesoro del Cisne Negro - Paco Roca e Guillermo Corral (Astiberri Ediciones, 2018) : Baseada em fatos reais, “o Paco Roca mais Tintim que há” — nas palavras do meu chapa Érico Assis — é um primor de graphic novel, um sucesso editorial na Espanha e essa nova edição da Astiberri Ediciones (o álbum foi originalmente publicado em 2018) vale cada suado euro gasto. Um dos grandes nomes do quadrinho europeu contemporâneo, Roca adaptou o roteiro do diplomata e escritor Guillermo Corral sobre a descoberta de um galeão espanhol afundado por piratas ingleses em 1804, quando voltava da América carregado de ouro e prata, e a consequente batalha judicial e de influência nos tribunais internacionais pelos tesouros, culturais e financeiros, resgatados. Um thriller estupendo, com reviravoltas dignas dos melhores dramas policiais e políticos, e calcado na dura realidade sócio-econômica dos nossos dias. A obra se vale da bela arte e da habilidade de Roca como quadrinista para não endurecer uma narrativa baseada em fatos reais, como já o fizera no delicado O Inverno do Desenhador — sobre cinco quadrinistas espanhóis que peitaram a poderosa editora Bruguera nos anos 1950 ao criar uma revista independente — e conseguir apresentar uma trama complexa e repleta de jargões e detalhes técnicos necessários para se manter a credibilidade da história.

1984 - Fido Nesti e George Orwell (Quadrinhos na Cia., 2020): Lançada em 2020 no Brasil pela Quadrinhos na Cia, com tradução de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn (e em 2021 pela Penguin Classics como Nineteen Eighty-Four: The Graphic Novel, edição que eu comprei) a quadrinização do ilustrador paulistano Fido Nesti sobre a obra de George Orwell é parruda. O livro de 1949 — que no fundo retrata uma versão distópica do mundo pós Segunda Guerra de 1948 — produziu nas cabeças de seus leitores um imaginário forte de regimes totalitaristas que remetiam a descoberta dos horrores dos campos nazistas de extermínio, às notícias do avanço comunista daquela época e aos horrores de uma ficção científica raiz, que refletia a penúria e o desespero causados pela Grande Depressão. Li o livro quando adolescente, antes de assistir o filme homônimo (lançado no Brasil em 1985), e confesso que achei a bem produzida adaptação cinematográfica aquém do que era sugerido pelo texto. O livro melhor que o filme, nada de novo no fronte. Poucos anos depois, leria V de Vingança, publicada em fascículos pela Globo no final de 1989, e a elegera uma baita adaptação, espectral que seja, da obra de Orwell. Até agora. O livraço de Fido Nesti traduz, ainda que verborragicamente em muitos momentos, o angustiante universo opressor com os personagens visualmente doentios, deformados, tristes e cinzentos que passavam pela minha cabeça. Para dar pesadelos e refletir.

Paul at Home - Michel Rabagliati (Drawn & Quarterly, 2020): Recebi uma mensagem do Érico Assis que dizia mais ou menos o seguinte: “Pára o que está fazendo, compra e lê Paul at Home do Michel Rabagliati. Eu parei de ler para vir aqui falar para você ir ler.” Não sou louco em desobedecer o Érico, e dois dias depois pegava a edição em inglês (traduzida por Helge Dascher e Rob Aspinali) da Drawn & Quarterly canadense. Na segunda ou terceira página saquei por que a indicação. O pai de Paul, o personagem alter-ego do autor, era tipógrafo, e o filho certamente cresceu no meio. Daí que — como nós que somos designers envolvidos com tipografia — enxerga fontes (tipos, para ser mais exato) nos lugares mais diversos. Como na sinalização do supermercado, nos botões do elevador, nas placas das rodovias, na sala de espera do hospital onde a mãe vai fazer um tenso exame oncológico. E, como muitos de nós fazemos, identificar a fonte é associá-la ao seu designer ou ao ano em que foi criada. E, às vezes, como faz Paul, lembrar de alguma particularidade, como o fato de Eric Gill, autor da Gill Sans, ser um escroto. Paul é um cartunista de 51 anos que está lidando com perdas e crises por todos os lados, e que se vê perdido em meio a mudanças que fogem do seu controle. A sensação de esvaziamento do personagem contrasta com o rico visual da HQ, repleta de cinzas e de detalhes que farão a alegria de qualquer designer: o cuidado que Rabagliati dedica aos letreiros das lojas, às capas de livros, aos anúncios de revista, às embalagens de medicamentos e toda essa efemeridade afetiva que circunda nossas vidas nos aproxima solidariamente do melancólico Paul.

Marvel by Design - Robert Klanten, Andrea Servert e Liz Stinson (Org. Gestalten, 2021): A segunda parte do subtítulo Graphic Design Strategies of the World’s Greatest Comics Company é aquela desnecessária autovangloriação marvética de sempre — culpa do finado Stan Lee — mas a primeira é bem adequada. O livraço — em todos os sentidos: 320 páginas no formato 25cm x 33cm — publicado este ano pela editora alemã gestalten é a primeira publicação que foca em aspectos de design gráfico das revistas em quadrinhos de maneira abrangente e sem a abordagem de manual ou guia prático vista em dezenas de publicações, do seminal How to Draw Comics The Marvel Way de Stan Lee e John Buscema (1978) ao incessado The Essential Guide to Comic Book Lettering de Nate Piekos (2021). Apesar de não ser um livro técnico ou acadêmico, conta com bons textos assinados por profissionais das áreas que aborda, como o designer e reitor da Cooper Union School of Art Mike Essl para falar de logotipos das revistas em quadrinhos, e o type designer e letreirista Chris Eliopoulos no capítulo sobre tipografia e letreiramento. Além destes dois tópicos — na minha opinião, os pontos altos de um livro repleto de qualidades — há capítulos específicos abordando capas, colorização e layouts das páginas, todas fartamente ilustradas por oito décadas de imagens. Destaco também os texto introdutórios de Liz Stinson e John Rett Thomas, que interlaçam a Marvel-empresa além do bordão Casa das Ideias — que embasa o que se verá adiante — e o texto de encerramento, do designer Mark Wilson, que descreve o impacto que os quadrinhos tiveram nas artes, publicidade e design. Exemplos a granel e termos surpreendemente corretos nos textos (que provavelmente não se aprofundam para não espantar não-iniciados) farão a alegria de designers, editores e profissionais de comunicação em geral, enquanto o foco dado aos personagens transmidiados para o MCU torna o livro atraente para os fãs surgidos nos últimos vinte anos. Se quiser saber mais, no canal da Raio Laser no YouTube tem um vídeo em que analiso o livro com mais detalhes.

Street View - Pascal Rabaté (Editions Soleil / Rabaté, 2013): Esta delicada publicação do francês Pascal Rabaté está naquela curiosa fronteira entre os livros ilustrados e as histórias em quadrinhos que só serve para atormentar bibliotecários conservadores e funcionários de livrarias retrógradas, que não sabem onde escondê-lo. Felizmente, não foi o caso da lendária gibiteria Lambiek, em Amsterdam, onde o comprei. Originalmente publicado em 2013 pela Editions Soleil / Rabaté e traduzido para inglês (por Terry Nantier) para o selo Comics Lit da novaiorquina NBM, o livro é apresentado na capa como “Uma peça muda em dez cenas e um cenário” (A wordless play in ten scenes and one set). A imagem de capa e contracapa revela os bastidores de um palco, com os atores zanzando por trás dos cenários, enquanto a plateia aguarda o início do espetáculo. Digo “capa e contracapa” mas esse Street View, em formato sanfona, possui duas capas cada uma com um subtítulo — Mornings e Evenings (Manhãs e Noites) — o que permite que o leitor o abra por qualquer um dos lados. Qualquer que seja nossa escolha, vamos nos deparar, como anunciado, com dez cenas de páginas duplas, sempre mostrando o mesmo cenário (também conforme o prometido) em diferentes momentos do dia (e da noite). O cenário da HQ — digo, da peça — é um trecho de rua composto por quatro fachadas: dois prédios de três andares. cada qual com um estabelecimento comercial no térreo, seguidos por uma casinha espremida e um prédio que parece maior que os demais, por sangrar para fora da página — digo, do palco. Na rua, a vida transcorre pelas hitchcockianas janelas indiscretas e desfila na calçada. Entre os percalços da reforma do mercadinho, voltamos e avançamos as páginas buscando entender como não percebemos que ocorrera um crime. Acompanhamos pela repetição desses requadros o cotidiano do casal apaixonado (que mora na casinha), da lavanderia e dos artistas boêmios, e vamos criando relações e descobrindo narrativas entre esses personagens. Uma HQ teatral para quem gosta de cinema. Tem um vídeo que mostra o álbum aqui.

André Valente’s O Lar da Lesma Branca de Bram Stoker - André Valente (2021, no Twitter): Em julho desde ano, o quadrinista André Valente começou a publicar em sua conta no Twitter (aqui) uma adaptação livre do livro The Lair of the White Worm (1911) do escritor irlandês Bram Stoker, conhecido por seu influente romance gótico Dracula (1897). Lançado um ano antes da morte do escritor, The Lair of the White Worm é considerado um dos piores livros já escritos, fato que Valente não apenas cita no início de sua obra como afirma ter sido o motivo que o levou a adaptá-lo. A HQ começa alternando páginas da quadrinização da história — que transcorre em 1860 quando um rico australiano viaja à Inglaterra a convite de seu tio-avô, que pretende torná-lo seu herdeiro — com diálogos entre o próprio André e interlocutores imaginários, questionando-se sobre seus reais motivos para realizar essa adaptação, reclamando da chatice da obra e analisando opções — até que estas reflexões tomam conta da HQ, deixando a adaptação do livro em segundo plano. A meta HQ de Valente funciona tanto como uma discreta crítica a quadrinizações duras de obras literárias clássicas como demonstra seu experimentalismo gráfico e sua habilidade em construir uma longa HQ composta por curtas tiras sequenciais. Esperando ansiosamente o aguardo de sua conclusão.

 A Cabine - Marsal Branco (Caligari, 2021): A última HQ desta lista chegou no apagar das luzes de 2021, abrindo o álbum Intempol - Agora (Editora Caligari, 2021), antologia de quadrinhos fantásticos organizada pelo múltiplo Octavio Aragão reunindo oito HQs em torno da Intempol, a polícia espaço-temporal concebida por Aragão em 1998 e que já transitou por contos, romances e quadrinhos de múltiplos autores. A história de sete páginas que abre o álbum, A Cabine, encanta pela beleza da arte, prende pela coragem do tema e surpreende pelos plot twists — e nada mais devo dizer. É ela que dá o tom do que iremos ver ao longo das cinquenta e tantas páginas de HQs assinadas por outros nove quadrinistas. Entre eles, colaboradores de Aragão em outras HQs (como Manel Fogo, de Para Tudo Se Acabar na Quarta-Feira, e Carlos Hollanda, de Psicopompo), ou que já trabalharam com a Intempol em outras graphic novels (como Manoel Magalhães e Osmarco Valladão, autores de The Long Yesterday), mas também nomes de destaque na cena independente, como Letícia Pusti (HQMix 2021 de Desenhista Revelação), Bianca ‘Tetisuka’ Bernardi e o multimidiático Edgar Franco. A belíssima capa do álbum é do quadrinista Léo, roteirista e desenhista brasileiro radicado na França há quarenta anos, onde assina dezenas de álbuns de Ficção Científica e Aventura para a Dargaud.