Melhores leituras de 2021 - Ciro I. Marcondes

por Ciro I. Marcondes

2021 foi um ano bastante agitado para mim. Me vacinei 3 vezes, tive um irmão internado na UTI com covid, amigos se foram, lancei um livro e me mudei de país. Fora muito trabalho acadêmico e tudo o que fizemos na celebração dos dez anos da Raio Laser. Não me surpreenderia se, diante de tantas urgências, eu não tivesse lido quadrinho nenhum. Porém, na verdade li muitos e resolvi selecionar cada um dos que me causaram impacto, seja por sua origem cultural, por seu desenvolvimento formal, sua atualidade, sua importância histórica, etc. O critério é esse: ter me tocado em um ano atribulado. Segue a lista com 17 obras resenhadas com algum capricho, sem ordem de importância ou qualidade. (CIM)

The Snowman – Raymond Briggs (Penguin Random House, 2018 [1978]): Essa mais do que clássica narrativa infantil britânica, maravilhosamente ilustrada pelo genial Briggs com lápis de cor e giz, é a perfeita síntese sobre a inocência da infância e a perda desta mesma inocência. Totalmente muda, em perfeita sintonia de seus quadros com a delicadeza da relação entre seus personagens (um menino e um boneco de neve imaginário), ela faz ressoar em nós sensações de alívio, tranquilidade, estupor, delírio. Um exemplo perfeito de psicodelia onírica para crianças.

On A Sunbeam – Tillie Walden (Avery Hill, 2018): Por falar em psicodelia, eis aqui a peça definitiva de lisergia para o século 21. Composto de 530 páginas coloridas com vermelho sanguíneo e febril contrastado com azul depressivo e polar (dentre outras paletas), este romance gráfico de sci-fantasy (publicado originalmente como webcomic), totalmente afeito às mais imaginativas licenças poéticas, concebe um mundo onde só há mulheres – e estas garotas precisam lidar com os mais abissais dilemas humanos. Tudo isso no traço delicado e ao mesmo tempo na violência artística da genial Tillie Walden.

Eu Não Preciso De Mais Nada – Gabriel Dantas (Ugra Press, 2021): Todos conhecem Gabriel Dantas pelas suas tiras no Instagram, mas essa coletânea de zines que ele publicou entre 2017 e 2019 é exemplo perfeito da diversidade de gêneros de quadrinhos que ele aborda, demonstrando sua evolução enquanto artista. Sempre em chave de autoparódia e tratando de sentimentos profundos escondidos entre piadas adolescentes, ele alcança um ótimo resultado, seja num melodrama juvenil, numa invasão alienígena tosca ou numa linda fábula feérica. Mais AQUI.

Strontium Dog, Search and Destroy: The Star Lord Years – John Wagner, Carlos Ezquerra (2000 AD, 2020 [1978-1982]): O “Strontium Dog” Johnny Alpha, espécie de caçador de recompensas mutante, é um dos personagens mais casca grossa da 2000 AD (isso não é pouca merda), e suas primeiras histórias (pelos mesmos criadores do Juiz Dredd) foram compiladas recentemente pela editora. Este material é um faroeste no espaço aloprado, sem freios, ao mesmo tempo trash e ultra descolado. Uma das leituras mais divertidas que fiz no ano, e certamente um dos melhores da melhor fase da HQ britânica.

Monsieur Jabot, História de Monsieur Cryptogame e Monsieur Trictrac – Rudolphe Töpffer (SESI-SP, 2017 [1831, 1846, 1937]): O suíço Töpffer é considerado um dos fundadores da mídia quadrinhos por razões muito justificáveis: produziu consistentemente durante e primeira metade do século 19, publicou nos formatos de histórias em pequenos livros e posteriormente tiras, influenciou a produção de cartoons britânica, francesa e americana, e seu humor satírico foi na contramão da arte daquele século, influenciando, por exemplo, o cinema slapstick do começo do século 20. Seus quadrinhos até hoje são um tesouro, vivazes e sardônicos, e devem ser lidos por todos.

Brega Story – Gidalti Jr. (Brasa, 2021): Numa publicação de muito fôlego, o autor Gidalti Jr. amplia seus horizontes em relação ao já premiado Castanha do Pará em praticamente qualquer direção que se olhe. Com maciças 328 páginas, Brega Story não chega a primar por uma grande variabilidade de quadros ou qualquer tipo de malabarismo formal. Seus grids obedecem ao desenvolvimento de personagens, que são seu foco e seu trunfo. Centrado na errática trajetória do músico/produtor Wanderson Jr. (um tipo execrável e ao mesmo tempo adorável, espécie de Falstaff moderno), Gildalti vai construindo um ambiente cáustico (onde a crocodilagem rola solta) para a cena de tecnobrega/aparelhagem do Norte do Brasil, como se tivesse nas mãos o poder de realizar um Os Bons Companheiros paraense. A simplicidade rascunhada dos desenhos em PB/sépia (com algumas intervenções em cores, lembrando o aspecto mais nauseabundo do pintor Egon Schiele) ajuda a captar a degenerescência dos personagens, que são humanos até um ponto onde se torna horrível olhar para eles. Sem concessões, e é assim que eu gosto. Pra quem achava que Castanha do Pará tinha sido um golpe de sorte, eu sugiro rever essas ideias imediatamente.

Roco Vargas Integral – Daniel Torres (Norma Editorial, 1997 [1986-1991): Esta esplêndida série retrofuturista dos anos 1980-1990, escrita e ilustrada em linha clara pelo espanhol Daniel Torres, mistura algumas ambições da space-opera dos anos 1950 (como a ideia de ter todos os planetas do sistema solar habitados) com thriller de espionagem à la Intriga Internacional, histórias de aviação tipo Steve Canyon e uma pitada (talvez involuntária) de colonialismo. O resultado é um projeto autoconsciente de revisita à história do gênero, cheia de referências sagazes e aventuras eletrizantes costuradas em uma arte que parece decantada na mais perfeita fusão das tradições americana e europeia de quadrinhos. Mais ou menos como se fosse um Spirit ou Dick Tracy ambientados num espaço sideral na tradição de Dan Dare, só que ilustrado por um Edgar P. Jacobs atualizado. Deu pra entender?

Podrão Aniquilação – Pablo Carranza (Escória Comix, 2021): Outro que muitos acham apenas um palhaço “engraçadinho”, Carranza vem entregando bons quadrinhos de humor escarninho desde pelo menos Se a Vida Fosse Como a Internet (2012), passando pela (que deveria ser aclamada) revista Smega e suas atrocidades morais e chegando finalmente a Podrão Aniquilação, sua primeira experiência de fôlego maior. Esse gibi é uma espécie de “romance gráfico” über-trash em forma de fita de videocassete e cujas principais ações se dão numa praça de alimentação em que rola uma disputa de público entre uma hamburgueria hipster, um “pastel chinês” gorduroso e um cachorro-quente “podrão” imundo. Logicamente, estas descrições não fazem jus à escatologia braba de Carranza, que adiciona elementos de ficção científica (uma maionese radioativa), taras sexuais daquelas de arrepiar os pelos dos lugares mais abjetos, e uma delirante cultura de motoboys. Além disso, o formato do gibi e velocidade alucinante de leitura das páginas nos faz pensar em Podrão Aniquilação como uma bem-vinda mistura de Akira com Ninja 3 com A Grande Família.

Binky Brown Meets the Holy Virgin Mary – Justin Green (McSweeneys, 2009 [1972]): As famosas e bastante cruas 44 páginas que Justin Green escreveu e ilustrou em 1972 são testemunho de muitas coisas: do nascimento do romance gráfico americano moderno, via a iconoclastia dos comix undeground; da operacionalidade exótica e perturbadora do transtorno obsessivo-compusivo; e da redenção de seu próprio autor, que imaginou sua própria autobiografia nos termos delirantes da doença que o acossava. Mais sobre esse quadrinho AQUI.

Polina – Bastien Vivès (Nemo, 2021 [2011]): Munido de um timing perfeito para os muitos intervalos que compõem a narrativa de Polina, Vivès trouxe aqui certamente um dos romances gráficos mais artisticamente depurados da década de 2010. Além de ser uma espécie de bidungsroman extremamente delicado e sofisticado, esta HQ tem ainda o mérito de refletir sobre como passar uma mídia para a outra (a dança para os quadrinhos), sobre relações desiguais ou ambíguas de poder, e finalmente sobre as decisões que mais impactam em nossas vidas. Obra-prima.

Tomie Volume 1 – Junji Ito (Pipoca & Nanquim, 2021 [1987]): Beleza, só li o primeiro volume (foi mal, tive que mudar de país e deixar meus quadrinhos no Brasil), mas foi o suficiente identificar algumas das características definidoras do horror do então jovem Junji Ito: a repetição descontrolada como forma de câncer que assola insistentemente a sociedade moderna; uma obsessão por identificar o horror na beleza, como se a beleza fosse constrangedora em si; e por fim um certo puritanismo escondido por trás dos capítulos, que vão se tornando cada vez mais escabrosos na medida em que a repetição descontrolada de tropos vai ganhando novas formas de manifestação desse horror. Horror puritano, porque condena o sexo e a beleza, mas ainda assim um quadrinho perturbador, indigesto e já elaborado com maestria mesmo com as difíceis condições industriais de produção dos mangás. Mais sobre esse quadrinho AQUI.

Futebol e Raça – Mozart Couto e Luiz Antonio Aguiar (Cedibra, 1988): Desta histórica e importante publicação brasileira dos anos 1980 (infelizmente muito difícil de achar hoje em dia e que merece uma republicação), gostaria de me deter apenas na história “Raça Guará”, que acompanha o time do título a cada partida de um fictício campeonato brasileiro de futebol. O enredo é politicamente engajado, extremamente inteligente em sua leitura dos bastidores de um clube, centrando-se em participações ocultas como as dos cartolas e especialmente na do roupeiro conhecido pelo apelido de “Raça”, um ex-grande jogador que guarda um segredo ligado à corrupção no futebol. Além disso a história de Luiz Aguiar (de “O Ditador Frankenstein”, com Shimamoto) fala de raça, classe e privilégios na sociedade brasileira muito antes que isso se tornasse vitrine para popularidade no Twitter. Por fim, Mozart Couto traduz a ação do campo com seu nanquim realista inspirado nas tradições europeias. Um grande achado em quadrinhos que certamente tem inspiração no filme Rio 40 Graus e que vai desaguar na obra-prima de Marcello Quintanilha Luzes de Niterói. Mais sobre esse quadrinho AQUI.

X-Force (New Beginning e Final Chapter) – Peter Milligan e Mike Allred (Marvel, 2002): Este famoso run do spin-off dos X-Men pela gabaritada dupla Milligan e Allred fez história (depois se tornando X-Statix) ao tornar os super-heróis celebridades vazias e em busca de adulação. Influenciou de Guerra Civil a The Boys a Umbrella Academy. A diferença aqui, porém, é o ritmo alucinado e autoparódico das tramas, que não têm piedade ao sacrificar heróis e heroínas em prol das motivações mais essenciais da história. Hoje essa acidez ao tratar dos supers pode não soar nada original, mas aqui além de tudo temos a arte psicodélica de Allred em sua melhor forma, o que transforma essa aventura de conotações temáticas amargas em uma viagem de ácido das mais puxadas, com momentos de intensa epifania e outros de profundo desconforto. Mais AQUI.

Crash 13 – Law Tissot e Márcio Jr. (MMarte, 2021): Pode parecer barbada eu colocar um gibi cujos recordatórios são do Márcio Jr. aqui nesta lista. Porém, se você acha isso, nunca deve ter topado com a arte de Law Tissot. Inspirando, desde os anos 1980, uma paisagem estilo “metal gods” no quadrinho brasileiro, esse artista underground consegue ir além e se distanciar de suas influências (Giger, Druillet, etc.) ao trabalhar um vocabulário específico de sua arte, que diz respeito tanto ao passado dos quadrinhos quanto ao seu futuro: trata-se de uma mecanização e uma paramilitarização de todos os aspectos humanos. Ele conversa com os mestres da Métal Hurlant, mas aponta para a sociedade do espetáculo do mundo atual. Suas metáforas visuais, que às vezes parecem tão indecifráveis que ele chega a mergulhar nas areias do surrealismo, causam grande impacto com tropos de violência, controle e ordem (com o caos sempre à espreita). Crash 13 é um gibi curto, de apenas 28 páginas, constituído somente de splash pages e produzido numa espécie de “Marvel way” (on drugs), com Márcio inserindo as impressões de uma poesia futurista (com o fascismo apenas na história dos seres condenados) que torna a leitura uma experiência alegórica de mastigar metal e cuspir aço. Ou seja: algo imprevisto e improvável, que os quadrinhos brasileiros não viam havia algum tempo.

Comanche #1 – Hermann e Greg (1979 [1969]): Eis a oportunidade de apreciar a arte do grande ilustrador belga Hermann Huppen no começo de sua carreira, em nanquim, num estilo embrionário em relação ao fantástico trabalho que ele ainda realizaria, por exemplo, em Jeremiah ou Les Tours de Bois-Maury (estes sem o prolífico roteirista Greg). Comanche ainda tem o direito de se dar o crédito de ser apenas um gibi de cowboy mais ou menos clássico (especialmente pelo herói venturoso Red Dust), mas já ensaia um apelo a uma revisita mais realista do Velho Oeste, especialmente na maneira de abordar outras etnias, raças e o sexo feminino. Mais AQUI.

Isolamento – Helô D’Angelo (Edição do Autor, 2021): Inicialmente publicado no Instagram como uma maneira de a autora Helô D’Angelo expurgar suas angústias com a primeira fase desta (interminável) pandemia, Isolamento ganhou versão física em 2021. A experiência de retratar o cotidiano das quarentenas por si só merece o crédito de conseguir olhar para o presente com acuidade e instinto artístico. Porém D’Angelo ainda conseguiu fazer um belo experimento formal com esse quadrinho, retratando janelas simultâneas de um enorme bloco de apartamentos e as agruras de cada um de seus muito diferentes moradores. No desenvolver da leitura, vamos vendo a História (com H maiúsculo mesmo) se desenrolar na nossa frente, com eivos de tragédia, romance, comédia, melodrama e poesia. É como se um Janela Indiscreta encontrasse Edifício Master num maravilhoso grid simultâneo de quadrinhos em que a ordem que escolhemos para ler não importa tanto. Um trabalho ambicioso e inteligente de uma de nossas melhores quadrinistas.

The Rise and Fall of the Trigan Empire (Volume 1) – Don Lawrence e Mike Butterworth (Rebellion, 2021 [1965-1967]): Publicado nos anos 1960 em uma das muitas revistas em quadrinhos britânicas voltadas para adolescentes (neste caso, a Ranger), a saga do Trigan Empire é um grande feito em space-opera, certamente um dos maiores dos quadrinhos britânicos e dos quadrinhos como um todo. Supera, inclusive, sua inspiração Flash Gordon na maturidade das tramas e na arte, maravilhosamente pintada por Don Lawrence (que depois se consagraria com Storm). Trigan Empire conta a historia de um planeta (com seus distintos continentes e povos) e em como a liderança do rei Trigo vai transformar um povoado de nômades e caçadores-coletores em seu maior império. Carregadíssimo de textos e sisudo em sua arte ultrarrealista e dificílima de se realizar, Trigan Empire mistura de tudo: missões de aviação, histórias de guerra, mitologia, dinossauros, Império Romano, etc. Logicamente, muito do seu conteúdo é datado, mas isso (IMO) apenas torna o que chamo de “leitura de pesquisa” ainda mais interessante. Um quadrinho para se ler com lupa, para visualizar as incríveis paisagens alienígenas e tecnologias retrofuturistas, e também para se compreender as noções de civilização, império e sociedade da época em que foi realizado.