Destino Adiado, de Gibrat: Antes do tempo

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por Lucas Reis

Desde o princípio, Destino Adiado (Jean-Pierre Gibrat) causa uma pulga atrás da orelha do leitor. Antes mesmo de abrir o gibi propriamente. Afinal, o título da obra é uma clara contradição. Ora, do destino é impossível fugir. É uma trilha na vida que funciona como uma linha férrea, em que mudanças na rota são impraticáveis. O ponto de início e de chegada já foram dados de antemão - o planejamento está traçado e não são permitidos desvios. Apenas para ficar na história mais conhecida e marcante sobre o tema, a tragédia grega O rei édipo: o protagonista tinha como destino matar o pai e casar com a mãe e nenhuma ação foi possível para alterar essa sina. A fuga é impossível qualquer que seja o destino.

Todavia, logo nas primeiras páginas, a ação que se  desenrola é uma fuga. Uma escapada discreta do protagonista Julien para desertar do combate armado durante a Segunda Guerra Mundial ao qual foi designado. O jovem francês, que acabara de pular do trem, segue uma rota noturna, silenciosa e solitária para a casa da sua tia, onde cresceu na intenção de se esconder. Fugir durante a noite em que há menos pessoas na rua (especialmente em um povoado na França durante a Segunda Guerra Mundial) e uma natural escuridão facilitam a ideia de não ser avistado. No único momento em que Julien quase é notado - por um sujeito que passeia de bicicleta - ele consegue se esconder, a partir do instante em que escuta o som dos pedais se aproximando. Característica comum que permeia toda a narrativa, o autor Jean-Pierre Gibrat tem domínio absoluto da linguagem dos quadrinhos. Nesse caso, através das onomatopeias que expandem o espaço diegético no qual os personagens estão inseridos e cria a dimensão do ambiente em que Julien irá se fixar ao longo do tempo.

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A fuga de Julien ainda ganha um contorno espantoso por uma imprevisibilidade. O trem em que estava foi atacado momentos depois de ele fugir. Sendo assim, o rapaz é dado como morto e, portanto, tem mais facilidade em se esconder. Ele, inclusive, chega a ver o seu próprio enterro pela janela de seu esconderijo. Gibrat oferece a perspectiva do próprio Julien, olhando de cima para baixo, como se fosse realmente o olhar de quem está no céu. Como ele não poderá entrar em contato com ninguém que seja de extrema confiança, é como se fosse uma morte realmente: uma morte social. Afinal, para a maioria das pessoas, Julien não se encontra mais neste mundo.

De fato, há uma condição metafísica em Destino Adiado na qual uma sombra que está de fora do plano físico parece rondar esse universo. No entanto, essa sensação também está ligada a dois sentimentos que são bem reais em tempos de guerra: a solidão e o medo. O medo é algo mais óbvio. Há a possibilidade de um ataque inimigo. A aflição ainda existe por outros motivos, como a dificuldade de comunicação, a falta de abastecimento de alimentos, produtos de higiene básica ou qualquer outra necessidade. E, obviamente o medo da morte, seja a própria ou de entes queridos. Algo que Julien está experimentando, pois além de ser dado como morto, se preocupa com pessoas próximas a ele. Como sua tia que lhe ajuda constantemente ou Cecile, uma grande paixão mal resolvida com quem ele teve um relacionamento no passado e ainda nutre fortes sentimentos amorosos - mesmo que não a visse muito tempo antes de a guerra estourar.

A solidão, por outro lado, é mais difícil de detectar, mas é presente e afeta a vida de quem está na guerra, mesmo que distante dos principais confrontos. A companhia mais próxima de Julien é Mignolet. Este amigo é um cabideiro com um chapéu e um sobretudo com quem o rapaz trava divertidas conversas durante seu confinamento. Contudo, é evidente que a aproximação com Mignolet parte de uma dificuldade gritante de ficar sozinho, e da necessidade de esconder para si mesmo a solidão. Durante o confinamento, cada vez mais, a solidão é a única companheira, por mais que o desejo seja do exato oposto, ou seja, do contato com o máximo de pessoas possíveis. Julien ama a vida e se diverte mesmo na dor, na escuridão, na guerra. A escolha do autor Jean-Pierre Gibrat de oferecer o protagonismo a Julien é, em última instância valorizar uma centelha de vida e de alegria diante do horror da guerra. O rapaz é um pequeno feixe de luz em um universo escurecido. Uma metáfora que Gibrat deixa clara compondo seus quadros durante a noite com poucas luzes acesas, porém dando um tom de que ainda é possível romper com a escuridão total.

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Julien, no fim das contas, não é, ao menos, um sujeito político. Ele mesmo afirma isso: “Ele também tenta despertar minha consciência política e temos discussões intermináveis. Ele é comunista e eu simplesmente tenho má-fé”, diz, sarcasticamente, o rapaz ao comentar sobre Paul, militante comunista que guarda materiais proibidos na casa que Julien usa como esconderijo e também tem uma relação complicada com Cecile. Antes disso, ele já havia comentando com Mignolet sobre o desejo de ressuscitar como um gato, pois os animais não precisam lidar com os problemas como os humanos, identificando assim que até uma vida animalesca é melhor do que lidar com os horrores da guerra. Porém, Julien é humano e, então, fica refém de uma situação geopolítica de contexto global que o oprime no seio de uma pequena cidade no interior da França, e mesmo a sua carapaça apolítica não o faz ser livre de violências.

Nessa situação, o tempo também se torna muito violento. A espera agoniante pelo fim da guerra e a normalização da rotina podem ter consequências devastadoras. O tempo imprime uma lentidão no mundo que gera o desejo de ir contra as recomendações e retomar uma naturalidade da vida - algo que ganha atualmente um contexto muito específico por conta da quarentena causada pelo coronavírus. Julien percebe isso, pois o próprio comenta como 1944 o fez mal, como se ele pudesse sentir que esse ano específico fizesse, propositalmente, que ele perdesse as estribeiras. Em outro momento, ele avalia que gostaria de chacoalhar a ampulheta para fazer o tempo correr mais depressa. Mas, obviamente, essa possibilidade não existe.

Há, contudo, algo na vida de Julien que o faz sentir o tempo de forma diferente: Cecile. A moça se torna a figura do desejo de Julien, fruto de uma paixão de adolescência que nunca se dissipou. Como se fosse o destino dos dois ficarem juntos, mesmo em um tempo de guerra eles se reencontram. De seu esconderijo, Julien repara na moça o tempo todo. As ações de Cecile, para o leitor, se traduzem pelo olhar do rapaz. Ela trabalha como garçonete de um pequeno restaurante da cidade e Julien a acompanha com o olhar o tempo inteiro, assim como percebe qualquer sujeito que faça o mesmo que ele. Cecile não traduz apenas o olhar de Julien, mas do próprio Gibrat. O quadrinista constrói uma personagem de uma beleza europeia clássica, de olhos agudamente azuis que contrastam com os cabelos pretos, traços finos e postura esguia. A moça representa o ideal de perfeição da beleza daquela região.

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Os traços finos e clássicos de Cecile são a porta de entrada para a arte de Gibrat, composta por uma disposição dos quadros equilibrada e uma luz harmoniosa que preenche todo o gibi. A personagem que se destaca na capa de Destino Adiado - mesmo sem ser a protagonista -, configura todo o sistema de proporções ideais característicos do classicismo europeu, influência na obra de Gibrat.

Nesse sentido, Cecile também funciona como a projeção de Julien acerca de sua paixão. Ela é apresentada pelo olhar e pela descrição do personagem. Mesmo quando eles se reencontram, a narrativa sempre assume o ponto de vista de Julien. A figura perfeita de Cecile pode ser a imagem fabricada pelo rapaz para assumir pelo exterior (a beleza da moça) o que ele sentia em seu interior (a paixão que é capaz de fazê-lo minimizar as dores da guerra). Julien, inclusive, espia até a casa da avó de Cecile - onde a moça mora - com uma luneta para ter certeza de todos os seus passos.

É perante essa paixão que Julien assume o risco do conflito armado e resolve mudar de cidade diante do medo de se locomover, para finalmente encontrar o seu destino. Entretanto, como fica claro, o olhar de Gibrat para o mundo pode ter contornos clássicos, mas também pode ser altamente brutal. Talvez a beleza de seu traço torne as suas propostas ainda mais duras. O destino final de cada um, mesmo que estivesse diante de si, talvez seja menos óbvio do que se imagina. Todavia, mesmo na dureza, Gibrat não deixa de destacar um ponto de vista bonito. Mesmo nas condições mais brutais, vale mais morrer por amor do que morrer pela guerra, e o próprio destino compreende isso.