BAIACU: A EXPERIÊNCIA COMO FIM

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por Márcio Jr.

Segundo Laerte, a ideia toda começou com a compra de um mimeógrafo, mais de 15 anos atrás. O projeto era, ao lado do parceiro de uma vida, Angeli, produzir fanzines para vender de mão em mão. Àquela altura, os dois cartunistas já estavam consolidados há tempos como ícones dos quadrinhos e do humor gráfico brasileiros. O que levaria então duas legendas a cogitar zines cheirando a álcool como forma de expressão? Fuga da zona de conforto? Desejo de reencontrar um élan criativo perdido no passado? São hipóteses. Sem nenhuma solidez, diga-se de passagem. A resposta mais simples – e, ao mesmo tempo mais complexa – talvez seja a busca pelo prazer na experimentação.

O projeto de zine se transmutou, ao longo dos anos, em algo infinitamente mais ambicioso. E, em 2017, nasce Baiacu, parangolé transmidiático que intersecciona exposições, oficinas, residência artística e um caprichado livro – com projeto gráfico de Mateus Acioli – lançado pela Editora Todavia. Mais que um peixe venenoso, esse Baiacu aqui está mais para polvo, dono de diversos tentáculos intercomunicantes. Mas é no livro propriamente dito – ou revista, não há uma definição fechada quanto a isto –, que Baiacu se consubstancia de forma mais contundente.

Ainda que estejamos longe das epopeicas vendas da revista Chiclete com Banana nos anos 1980, sob uma perspectiva artística e autoral os quadrinhos brasileiros nunca estiveram tão bem. Desde que a Laerte meteu-se a comprar seu mimeógrafo – ainda virgem, até onde se sabe –, assistimos o surgimento de uma infinidade de quadrinistas, publicações e eventos. É senso comum, no meio, afirmar que atravessamos um período de ouro, ainda que as vendas não atinjam os patamares de outrora. O quadrinho brasileiro, mais do que nunca, encontra-se em pé de igualdade com aquilo que de melhor tem sido produzido no mundo – principalmente no que tange a uma espécie de vanguarda experimental. E é justamente nesta seara que a Baiacu se circunscreve.

Entre os dias 09 e 24 de julho de 2017, a Casa do Sol, antiga moradia da escritora Hilda Hilst em Campinas (SP), recebeu 10 autores para a residência artística que daria origem à Baiacu, sob a edição de Angeli e Laerte – escudados pelo onipresente Rafael Coutinho, além de André Conti, Carol Guaycuru e Bruno Girello. Apesar da considerável diferença de idade e experiência, todos carregam em si a marca da experimentação. A eles juntaram-se ainda cinco convidados. E um penetra. Uma espécie de Big Brother do nanquim brasileiro contemporâneo.

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O decano Fabio Zimbres e o brasiliense Gabriel Góes abrem a Baiacu com o pé na porta, numa parceria de tirar o fôlego. São oito páginas de uma ilustração contínua e circular. Uma narrativa gráfica que começa e termina no mesmo ponto, em moto perpetuo. Difícil não pensar nos trabalhos do Elvis Studio, alcunha dos artistas suíços Helge Reumann e Xavier Robel. Já neste primeiro momento é possível perceber a obrigatoriedade de Zimbres num projeto do calibre da Baiacu.

No âmbito dos quadrinhos experimentais brasileiros, Fabio Zimbres é um marco indelével, uma pedra fundamental. Artista dos artistas, ao longo da Baiacu fica evidente sua influência sobre diversos residentes da Casa do Sol. No caso de Gabriel Góes, essa influência é confessa – uma vez que chegou a criar, em parceria com o conterrâneo André Valente, a série de zines Fabio, por volta de 2013.

Zimbres é exemplar na diluição das fronteiras entre quadrinhos, desenho e artes plásticas. Sua participação é das mais livres e autônomas no conjunto da Baiacu. Amontoa personagens em páginas, estabelecendo um inusitado senso narrativo. Notório por sua ligação com o universo dos fanzines brasileiros – era responsável, entre outras coisas, pela seção Maudito Fanzine, na antológica revista Animal –, o paulista radicado em Porto Alegre elabora a série de minizines intitulada Construção. A ideia é que as páginas sejam arrancadas e os minizines montados de acordo com o manual de instruções. Resta saber se alguém terá coragem de mutilar o livro. Caso contrário, ler Construção se converte em um intrincado e paradoxal exercício de desconstrução. Como testemunho último da pungência e admiração exercidas pelo trabalho de Fabio Zimbres, há o estranho personagem Mr. Egg, que terminou por se converter numa espécie de mascote da Baiacu, continuamente ressurgindo através da tinta de outros autores ao longo da publicação.

Gabriel Góes é um dos mais emblemáticos e criativos nomes do presente quadrinho brasileiro. Desenhista brilhante, é dono de uma versatilidade ímpar, capaz de transitar livremente entre arroubos gestuais e precisão milimétrica. Em Os Irmãos e Mr. Egg, paga belo tributo a Fabio Zimbres. Mas em O Convidado estabelece um fluxo narrativo poderoso e histriônico, com storytelling preciso e acentuado sabor sarcástico.

Gabriel Góes retrata os colegas de residência

Gabriel Góes retrata os colegas de residência

Dado o caráter experimental da Baiacu, linearidade é algo prescindível entre os trabalhos compilados. Ou seja, não há uma ordem de leitura que se imponha. Justamente por isso, me propus ler o livro na sequência deliberada pelos editores. Fragmentada em capítulos ao longo da publicação, O Convidado saborosamente me arrancou deste plano, obrigando-me a ler a HQ por completo, de uma só tacada. Góes cria um ritmo frenético ao tratar autobiograficamente de sua imersão na residência artística – tema que, obviamente, povoa outros trabalhos da edição. E o desfecho é um golpe fatal na preguiçosa indulgência de muito quadrinho contemporâneo medíocre que se transveste de experimental. Golaço.

O veterano Eloar Guazzelli é outro craque no escrete da Baiacu. Para além de sua impressionante capacidade de desenhar sob quaisquer condições e circunstâncias, é também um roteirista original e, em última instância, um artista preocupado em pensar o Brasil, o mundo e a vida. Essa matéria-prima escorre de suas páginas, criadas sob um formalismo aparentemente tradicional, mas que revelam deslocamentos espaço-temporais só possíveis na linguagem dos quadrinhos. Seus três Gritos e Sussuros possuem uma dimensão político-poética única. Longe de ser panfletário, Guazzelli é um artista que não se distingue da própria obra. Desenho, quadrinho e narrativa constituem seu estar no mundo – nunca na posição de observador, mas de participante ativo da realidade. Forma e conteúdo não se dissociam em Guazzelli. E isso vale, inclusive, para o belíssimo pôster encartado no livro, onde o gaúcho de Vacaria atribui uma dimensão quase metafísica a um desenho de observação.

Há, portanto, um caráter político que emerge na Baiacu. O livro pode ser então compreendido como uma revista, no sentido de se atrelar ao momento que o país atravessava em 2017. Uma reflexão que se converteu em idiossincrático registro do golpe (travestido de impeachment) – que, por sua vez, arrastou o Brasil ao desesperançado lodaçal de agora. A urgente HQ de Laerte – seu único trabalho presente na publicação – é sintomática desse teor que extrapola o mero formalismo estético.

LAERTE

LAERTE

Angeli também é político em Baiacu – mas não da forma a que estamos acostumados, em suas encarnações chargista/quadrinista. Com um excerto de 16 páginas oriundas de seus sketchbooks, o eterno pai da Rê Bordosa exibe um embasbacante virtuosismo gráfico, onde tematiza sexo, poder, religião e guerra. É o Angeli que conhecemos, só que livre de todas as amarras, sejam elas cerebrais, narrativas ou editoriais.

ANGELI

ANGELI

Existem, porém, questões que merecem ser observadas dentro do escopo da Baiacu. Os dez participantes da residência artística são autores intimamente ligados aos quadrinhos em sua vertente mais experimental. A princípio, a Baiacu se configura como um projeto que busca efetivamente distender os limites das HQs. Não deixa de ser curioso, então, que dentre os cinco convidados-extra que participam da publicação, apenas Paula Puiupo seja quadrinista. Os outros quatro são, antes de mais nada, escritores. Fica no ar a impressão de que sua presença em Baiacu atende a dois propósitos: 1) deixar claro o viés político e conjuntural da revista; 2) legitimar a publicação a partir da palavra escrita.

Não que o trabalho dos quatro escritores não tenha qualidade intrínseca. Vendedor pra Caralho, conto de Daniel Galera, é brilhante enquanto literatura que problematiza nossa situação – pra lá de lascada. O mesmo vale para o visceral Discursos Sobre a Metástase, de André Sant’Anna. Vernissage, de Anna Claudia Magalhães, carrega legítima graça jovial. Mas são literatura em estado puro. Não possuem nenhuma relação com a imagem. E partindo do pressuposto que a Baiacu é, em primeira instância, um projeto de quadrinhos experimentais, entra-se num outro campo de disputa, também política: o da palavra versus imagem.

A palavra escrita exerce um poder que ainda permanece naturalizado nos mais diversos meios. Para ficarmos num único exemplo, uma tese acadêmica na área de cinema não pode, via de regra, se dar na construção de um filme, mas sim por meio de um texto. Há uma relação de poder aí colocada: a palavra escrita como um primado, continuamente nos fazendo crer que o papel da imagem é o da ilustração – sempre subordinada. Boa parte do preconceito sofrido pelos quadrinhos enquanto mídia deriva desta perspectiva que estabelece que a imagem vale menos que a palavra. Logo, num projeto que lida basicamente com os quadrinhos, em sua forma mais livre e experimental, esta presença um tanto extemporânea da literatura traz sabor anacrônico.

Não é o que acontece, porém, com Hahaha, É Mais Cedo do que Supões, de Pedro Franz. Ao longo de 18 páginas, o catarinense propõe uma instigante experiência relacional entre texto e quadrinhos. Nas páginas à esquerda, texto. Naquelas à direita, quadrinhos. Não existe, neste trabalho de Franz, uma subordinação de uma linguagem à outra. Há, ao contrário, sinergia. Ainda que seja possível ler o texto independentemente dos quadrinhos – e vice-versa –, há toda uma nova produção de sentidos quando entramos no jogo proposto pelo autor. Não deixa de ser sintomático o modo como nossos olhos invariavelmente se dirigem primeiro às páginas desenhadas, mesmo com o texto surgindo antes. As linguagens, aparentemente apartadas, se dilatam, provocando uma diluição de fronteiras e amplificando a construção de sentidos por parte do leitor.

Menos sorte tem Mariana Paraizo nesta relação texto-imagem. Um dedal e três parágrafos. Herméticos e sem vigor. Graficamente singela, Não Existe Abandonar também carece de paixão.

No campo das imagens puras – porém eloquentes –, salta aos olhos o trabalho de Juliana Russo. Há grades e portões por toda parte – algo que ressurge em outros autores –, mas também o aconchego de uma Casa Útero.

Juliana Russo

Juliana Russo

A antiga morada de Hilda Hilst permeia Baiacu. Cães, jardins e vizinhança se espraiam pelas páginas do livro, traduzindo a intensidade da experiência compartilhada pelos artistas na residência. A equatoriana Power Paola e a carioca Laura Lannes entregam sensíveis narrativas acerca da Casa do Sol – e seus arredores – como palco de questões íntimas.

E Rafael Sica? Bem, Rafael Sica faz exatamente aquilo que se espera dele: inventividade gráfico-poética de alta octanagem. No grafite ou na tinta, o gaúcho atravessa a publicação pontuando-a com micronarrativas – ora mais objetivas, ora mais abertas – nas quais cabe o mundo inteiro. 

SICA

SICA

O grego Ilan Manouach radicaliza no experimentalismo em Sobre Arte de Mauricio de Sousa. Dotado de ambiguidade, o trabalho consiste em desfigurar por completo, com água sanitária, um gibi do personagem infantil Cascão. As páginas tornam-se borrões, muitas vezes completamente abstratos. Se por um lado trata-se de uma bem-humorada apropriação duchampiana – afinal, estamos falando em dar banho no Cascão com água sanitária –, por outro, temos um questionamento diretamente dirigido ao maior nome das histórias em quadrinhos brasileiras. O próprio título (Sobre Arte de Mauricio de Sousa) porta essa possibilidade de leitura, afinal, os quadrinhos de Mauricio de Sousa estão longe de ser arte. São, isso sim, entretenimento produzido em escala industrial – o que é salientado, inclusive, pelo fato de todos saberem que não é o próprio Mauricio que cria as HQs que levam seu nome. Em um Brasil onde fracassaram as políticas conciliatórias postas em práticas a partir de 2003, parece absolutamente necessário que (ao menos) se discuta o papel hegemônico desempenhado pelo pai da Mônica. 

Resta ainda o fortuito caso do “penetra” em Baiacu. Trata-se de Diego Gerlach, cujo clássico gibi Nóia – Uma História de Vingança! prima justamente pelo indócil questionamento dos quadrinhos – e produtos – Mauricio de Sousa. A princípio, o gaúcho participaria apenas da Mostra Baiacu, como um dos responsáveis pelo gigantesco painel de 27 x 3 metros no Sesc Ipiranga. Todavia, criador compulsivo, Gerlach logo produziu Pirarucu, HQ de (raro) teor autobiográfico, narrando as turbinadas aventuras vividas em sua viagem a São Paulo.

O pirarucu de Gerlach

O pirarucu de Gerlach

Experiências gráficas e temáticas são características intrínsecas ao trabalho de Gerlach. Seus quadrinhos, porém, optam mais pela potência narrativa do que por uma abordagem polissêmica. E foi justamente tal potência narrativa que impôs a necessária inclusão de Pirarucu (como um gibi avulso de 24 páginas, encartado) em Baiacu. Reza a lenda que determinados leitores iam até a Livraria Cultura tão somente para surrupiar este encarte do – nada barato – livro. Compreensível contravenção.

Baiacu é índice de uma época. Melhor dizendo, dos estertores de uma época. Um projeto altamente pretensioso – com todas as implicações disso –, fruto de um país e de um tempo em que arroubos dessa magnitude eram possíveis. O fato do site www.revistabaiacu.com.br (que documentava e exibia as distintas ações desenvolvidas) encontrar-se desativado é bastante sintomático. Difícil imaginar, hoje, a realização de algo minimamente semelhante, com tantas pessoas e desdobramentos. Logo, permanece como marca de um Brasil menos tacanho e vergonhoso. 

Passados mais de três anos desde seu lançamento, Baiacu ainda aguarda – e merece – um escrutínio mais atencioso, tanto por parte do público quanto da crítica. O impacto esperado de um projeto que novamente reunia Laerte e Angeli acabou não se concretizando. Ao menos não nas proporções imaginadas. Experimentalismo demais? Talvez. Mas é justamente nessa ousadia – beirando a irresponsabilidade – que reside seu inequívoco caráter singular. Ainda há veneno em Baiacu.  (MJR)

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Que tal ouvir o episódio 09 do LASERCAST, “Esquecidos e renegados”, onde o autor Márcio Jr. discute BAIACU com o staff Raio Laser? Aqui.