SUPER-HERÓIS À FRANCESA: AS TRADUÇÕES VISUAIS DE JEAN FRISANO

Finalmente! A estreia do designer gráfico, professor e pesquisador de quadrinhos Bruno Porto como integrante fixo da Raio Laser.

O Festival d'Angoulême homenageia um discreto quadrinista que consegue a façanha de ser tão admirado quanto desconhecido: falecido aos 60 anos, em 1987, Jean Frisano foi o responsável por apresentar aos franceses centenas de personagens estadunidenses de Aventura, Ficção Científica e Super-Herói, construindo uma ponte entre duas culturas.

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por Bruno Porto

Uma das exposições mais aguardadas da 47ª edição do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, realizada na França entre 30 de janeiro e 2 de fevereiro de 2020, foi uma compreensiva retrospectiva da obra do desenhista francês Jean Frisano, sub intitulada De Tarzan à Marvel, L’Amérique Fantasmée (livremente traduzido como “De Tarzan a Marvel, Fantasias da América”). Cerca de 180 originais e edições raras foram cronologicamente dispostos no segundo andar do Vaisseau Mœbius, espaço expositivo ao lado da biblioteca da Cité Internationale de la Bande Dessinée et de l’Image.

Nascido em 1927 em Gagny, pequena cidade próxima a Paris, Frisano começou a trabalhar como quadrinista e ilustrador no final dos anos 1940 para editoras da capital francesa que publicavam personagens estadunidenses como Tarzan, Mandrake, Agente X-9, Jim das Selvas e Fantasma. Além de produzir artes com estes heróis para capas de títulos como Aventures et Mystères, Le Fantôme du Bengale e Mandrake Roi de la Magie, publicadas pela SAGE (Société Anonyme Générale Édition), em pouco tempo começou a desenhar e pintar HQs de Capa-e-Espada, Faroeste, Aventura e Guerra, além de criar muitos dos logotipos das revistas da editora. A primeira parte da exposição aborda essa fase de formação do artista, fã de Alex Raymond, dos filmes de Errol Flynn e da obra de Edgar Rice Burroughs.

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Na segunda metade dos anos 1950, ele gradualmente deixa de lado sua atuação como quadrinista, concentrando seus esforços nas capas, que considerava mais rápidas de se produzir. As peças expostas demonstram que as capas de uma parcela considerável das revistas em quadrinhos francesas de Aventura, Guerra, Faroeste e Ficção Científica daquela época seguia o estilo de arte pintada das revistas pulp. Fazendo contraponto às cores chapadas das comics, os guaches e aquarelas de Frisano buscavam texturas e cores realistas para auxiliar o leitor a aceitar como possíveis as ameaças anunciadas. Foi esta experiência como capista de HQs de Aventura e Ficção-Científica que o levou a ser chamado pela Éditions Lug para trabalhar com personagens que estrearam na França no final dos anos 1960: os super-heróis Marvel.

Para o leitor francês de então - acostumado a HQs como Valérian et Laureline, de Pierre Christin e Jean-Claude Mézières, Barbarella, de Jean-Claude Forest, ou Luc Orient, de Greg e Eddy Paape - os primeiros Marvels a serem publicados no país - Quarteto Fantástico e Surfista Prateado - estavam muito mais próximos do imaginário da Ficção Científica do que daqueles superseres de capas criados na já distante década de 1940. Desde suas histórias de origens - que incluíam viagens espaciais, experimentos com radiação, trajes mecanizados e invasões alienígenas - Quarteto Fantástico, Surfista Prateado, Homem-Aranha, Capitão Marvel, Hulk, Homem-de-Ferro e Thor já assimilavam com desenvoltura componentes conceituais e visuais do gênero.

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Lançado em fevereiro de 1969, o primeiro título Marvel da Lug foi Fantask, uma polpuda antologia mensal de 100 páginas coloridas em formatinho (15 cm x 21 cm). Com cerca de quatro HQs do Quarteto por edição, foi recebendo um aumento gradual de aventuras solo do Surfista e, a partir do quinto número, do Homem-Aranha. A primeira capa assinada por Frisano foi a da sétima edição, datada de 15 de agosto de 1969. Qualquer um não familiarizado com os personagens Marvel chegaria naturalmente à conclusão de que aquilo se tratava da mais pura Ficção Científica: uma enorme e ameaçadora cabeça flutuante de um alienígena, de pele verde e orelhas pontudas, bombardeia com raios saindo de seus enormes olhos um agonizante terráqueo de traje azul colado ao corpo, identificado apenas com o número 4 no peito. Ou, em linguagem marvete, Super-Skrull versus Sr Fantástico.

Uma ponte entre duas culturas

Por quase duas décadas, Jean Frisano produziu literalmente centenas de capas de revistas mensais e edições especiais de Super-Herói - a maior parte pintadas à guache - sem contar inúmeros posters que eram encartados nelas (algo que impressionou o próprio Stan Lee). Embora os dois primeiros títulos Marvel publicados pela Lug tenham tido vida curta - Fantask teve apenas sete edições publicadas em 1969, e Marvel, treze edições entre 1970-1971 - todos os subsequentes ainda existiam em 1987, quando Frisano morreu: Strange (publicada entre 1970-1996), Special Strange (1975-1996), Titans (1976-1998), Nova (1978-1996); Spidey (1979-1989) e Strange Spécial Origines (1981-1996).

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O processo imagético e configurativo de tradução visual realizado por Frisano moldou a percepção da Marvel na França. Seu trabalho costumava ter como ponto de partida a arte das capas originais, mas mesmos as mais fiéis chegavam a passar por processos de tradução imagética de alguma forma intencional, guiados por diferentes motivos. Como artista, Frisano procurava respeitar o estilo da HQ que estava sendo representada na capa - principalmente se era de um desenhista cujo estilo admirava, como John Buscema, Joe Kubert, John Romita ou Gil Kane - mas não se eximia de corrigir a anatomia dos personagens retratados. De acordo com o colecionador Jerome Pescheloche, proprietário de muitas das peças selecionadas pelo curador Philippe Fadde para a retrospectiva, o artista não admitia as posições esdrúxulas e os músculos exagerados existentes em muitas das capas originais, e buscava imprimir nos heróis o ideal grego do que seria um corpo atlético. Além disso, havia também uma orientação por parte dos editores para facilitar a identificação dos protagonistas, que não deveriam estar de costas para o leitor. Nestes casos, Frisano se apropriava de imagens do miolo da HQ, ou mesmo decalcava poses de outros personagens: os saltos de um Homem de Ferro ou Pantera Negra podiam ser aproveitados para um Homem-Aranha ou Demolidor, e vice-versa. Como trabalhava de sua casa, o artista raramente tinha acesso à HQ completa, recebendo da editora apenas cópias de algumas de suas páginas.

Os desenhos do Homem de Ferro e Pantera Negra de um página dupla de John Buscema e Bill Everett em Avengers Annual #2 (1968) tornam-se referências para Homem-Aranha e Demolidor nas capas de Strange #21 (1971) e #49 (1974)

Os desenhos do Homem de Ferro e Pantera Negra de um página dupla de John Buscema e Bill Everett em Avengers Annual #2 (1968) tornam-se referências para Homem-Aranha e Demolidor nas capas de Strange #21 (1971) e #49 (1974)

Uma seção da mostra é dedicada a exemplificar, através de comparações com as capas estadunidenses originais, as tomadas de decisão de Frisano. Uma destas artes é a da capa de Strange #25 (1972) que modifica radicalmente o ângulo do confronto visto na capa de The Amazing Spider-Man #35 (1966). Frisano altera a composição dos elementos, valendo-se de uma pose do Homem-Aranha do interior da revista, simultaneamente posicionando-o de frente e destacando sua característica agilidade - mais, inclusive, do que na pose original. Em outra ilustração, usada na capa de Strange #79 (1976), ele se baseia no quadro de abertura da HQ publicada em Daredevil #81 (1971) para criar uma composição mais equilibrada e que inclui o contexto do acidente que deixou o Demolidor desacordado, ausente da capa original.

Apropriação das imagens da capa e página de abertura de Daredevil #81 (1971) para compor a capa de Strange #79 (1976)

Apropriação das imagens da capa e página de abertura de Daredevil #81 (1971) para compor a capa de Strange #79 (1976)

As proporções anatômicas dos desenhos de Jack Kirby eram sutil porém constantemente corrigidas por Frisano, como pode-se ver pelas pontas dos dedos do Sr Fantástico e do Monge do Ódio na capa do álbum especial Les Fantastiques #28 (1982). Embora a capa da edição francesa mantenha a estrutura básica vista em Fantastic Four #21 (1963), a anatomia kirbyana não foi a única alteração engendrada pelo francês: o estilo do penteado da Mulher Invisível é atualizado (afinal, duas décadas já haviam se passado desde a publicação original) e Nick Fury é removido da cena. O sumiço do personagem, no entanto, seguia uma orientação para que as capas não possuíssem imagens muito violentas, eliminando sangue, armas de fogo, linhas de ação que sugerissem golpes ou cortes profundos, e mesmo onomatopeias de tiros. Fantask e Marvel tiveram vida curta por terem sido cancelados devido à censura da Comissão de Vigilância e Controle de Publicações Destinadas à Crianças e Adolescentes. A Comissão as considerou “extremamente prejudiciais por causa de sua ficção científica aterrorizante, lutas traumáticas, histórias assustadoras e acompanhadas de desenhos em cores violentas ”, conforme carta enviada à Lug e publicada no derradeiro número de Fantask.

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Criada em 1949 - época em que os comics americanos se espalharam por muitos países europeus após a Segunda Guerra Mundial - visando proteger os jovens franceses de males específicos, como "banditismo, mentira, roubo, preguiça, covardia, ódio, deboche ou qualquer ato qualificado como crimes ou ofensas”, a Comissão precedeu a Autoridade do Código de Quadrinhos, estabelecida em 1954 pela Associação de Revistas em Quadrinhos da América. O número da Lei 49.956, de 16 de julho de 1949, vinha impresso na quarta capa das revistas. Isso obrigava os departamentos de arte das editoras francesas a realizar retoques meticulosos não apenas nas capas mas nas próprias HQs, inclusive suavizando rostos de vilões mais assustadores e cobrindo moças em trajes sumários.

O panorama da produção de Frisano apresentado no Vaisseau Mœbius reflete claramente este contexto histórico e de bastidores do mercado editorial da época. Apesar de dinâmicas e repletas de ação, suas capas muito raramente retratam o clímax do confronto entre heróis e vilões - a luta em si - optando pela tensão que precede o combate. Não há socos e, via de regra, os raios disparados nunca atingem seus alvos.

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Das pulps às telas de cinema

Essa “aversão à violência” também é observada nos demais trabalhos que Frisano fez para a Lug, especificamente nos dois gêneros progenitores do Super-Herói: a Aventura e a Ficção Científica. A partir de meados da década de 1970, a editora francesa publicou HQs desenvolvidas pela Marvel com personagens originários das revistas pulp dos anos 1930 - como Conan, o Bárbaro, Ka-zar da Terra Selvagem e Doc Savage, o Homem de Bronze - e de séries cinematográficas que seriam longamente cultuadas: Planeta dos Macacos e Guerra nas Estrelas.

Observa-se, no entanto, uma mudança na condição dos protagonistas destas duas séries em relação ao que se vê nas capas de Super-Herói. Enquanto Homem-Aranha e companhia são apresentados como forças positivas da sociedade, protegendo-a ou buscando o confronto para restauro da ordem, tanto os humanos de Planeta dos Macacos como os rebeldes de Guerra nas Estrelas frequentemente são retratados em fuga, escondidos ou ameaçados pelo poderio superior dos seus antagonistas, sistematicamente no papel de Estado.

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Os dezenove números de Planète des Singes foram publicados na França entre fevereiro de 1977 e agosto de 1978. Inicialmente com 60 páginas, mas logo passando para 52, continham HQs publicadas pela Marvel entre 1974-1977 em Planet of the Apes Magazine, e a partir do número 13, também de Doc Savage. Frisano assinou treze capas do título, com as demais sendo aproveitadas das edições estadunidenses, lindamente pintadas por Bob Larkin, Ken Barr e Earl Norem. Embora a maioria de suas capas tivesse os filmes como referência, uma ou outra foram compostas usando imagens das HQs do miolo, como frequentemente acontecia com os super-heróis. É o caso da capa do número 11, que usa elementos da HQ Kingdom on an Island of the Apes, publicadas dois anos antes em Planet of the Apes Magazine #9 e #10. Escrita por Doug Moench, com arte de Rico Rival, a HQ se passa numa espécie de Corte do Rei Artur do Planeta dos Macacos, o que explica o castelo e cavaleiro medieval pintados por Frisano.

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Já o seu envolvimento com a bem sucedida franquia concebida por George Lucas foi um pouco mais longo, com cerca de trinta ilustrações abrangendo todos os episódios da trilogia original e o universo expandido pela série de HQs. As caracterizações de Frisano nas capas da antologia Titans - onde as HQs de Guerra nas Estrelas foram publicadas entre 1979-1986 - não tomavam mais liberdade com os personagens de Lucas do que as já estabelecidas por Roy Thomas, Archie Goodwin, Howard Chaykin, Gil Kane, Carmine Infantino e outros.

Seguindo os mesmos princípios que norteavam seus trabalhos com super-heróis, Frisano também fez traduções imagéticas das capas das séries originais. Planète des Singes #19 (1978) apresentava Doc Savage saltando de um penhasco com skis à jato nos pés, uma mulher desacordada nos braços, e vários atiradores em seu encalço. A belíssima ilustração foi baseada na capa de Doc Savage #3 (1976), de autoria de Ken Barr. Em sua versão, Frisano corrigiu os ângulos da cabeça e dos skis de Savage, além de reduzir os frangalhos da blusa e a agressividade no rosto do personagem, aproximando-o das feições que John Buscema desenhava nas HQs. Da mesma forma, ao pintar a capa de Titans #36 (1982), manteve praticamente a mesma composição criada por Carmine Infantino para Star Wars #21 (1979), mudando apenas a Princesa Leia ao subtrair-lhe um enorme rifle de raios.

Tradução visual imagética de capas originais de Ken Barr e Carmine Infantino

Tradução visual imagética de capas originais de Ken Barr e Carmine Infantino

Sua carreira profissional fica marcada pela modéstia - discreto, não assinava seu trabalho - e por conseguir equilibrar um estilo pessoal enquanto atendia demandas específicas do mercado. A intenção do curador Philippe Fadde era que esta exposição ajudasse a tornar sua obra mais popularmente conhecida, mas não conseguiu evitar o alto preço da única publicação disponível sobre o artista: 99€ por um portfólio contendo 80 reproduções e um livreto de 32 páginas de textos, em pequena tiragem. A única outra publicação dedicada ao artista é o livro Jean Frisano: une vie d’artiste, co-autorado em 2016 por Fadde e pelos filhos de Jean, Sylvia e Thomas, está esgotado.

Embora tenhamos a percepção que o gênero Super-Herói faça o leitor europeu médio de quadrinhos - se é que há isso - torcer seu nariz, fiquei com a impressão que a exposição teve uma visitação semelhante à vizinha Dans la tête de Pierre Christin, no térreo do Vaisseau Mœbius. E olha que a retrospectiva do roteirista - laureado na edição passada do Festival d'Angoulême com o Prix Goscinny - contava com artes de Jean-Claude Mézières, Enki Bilal, André Juillard e Annie Goetzinger, entre outros nomes muito conhecidos. A mostra de Frisano, com certeza, recebeu um público mais eclético, composto por grupos de crianças e adolescentes vestindo camisetas de Capitão América e Homem-Aranha, fãs - de todas as idades - de Guerra nas Estrelas e saudosos cinquentões colecionadores de Strange e Titans, que se seduziram por uma fantasia apelidada de América pelo filtro visual de Jean Frisano.

Para mais imagens da exposição, confira o vídeo Jean Frisano, o artista que reinventou a Marvel na França no canal Eurocomics.