OTA: SEMPRE MAD, MAIS QUE MAD

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por Márcio Jr.

SEXTA: UM DIA DE HORROR

Sexta-feira, 24 de setembro de 2021. O dia não poderia ter começado pior. Fui acordado por minha esposa, Márcia Deretti, aos prantos:

– Márcio, me ajuda! Uma repórter do SBT me procurou perguntando sobre a morte do Otto Guerra!

Tentando raciocinar dentro da súbita onda de desespero, nos pusemos a ligar, sem sucesso, pro próprio Otto. No início dos anos 2000, a Márcia havia trabalhado na Otto Desenhos Animados. A conheci graças a uma viagem em que ela acompanhava o cineasta gaúcho a Goiânia. Amor à primeira vista, ela deixou o estúdio e veio pro Centro-Oeste, onde nos casamos e criamos a MMarte Produções – que, entre outras coisas, recentemente lançou Nem Doeu, autopornografia, do Otto.

Alarme falso. Em poucos minutos, o Otto nos retorna. Alívio e gargalhadas. Enquanto a adrenalina baixava, um pensamento tomou minha mente, como um raio: “E se for o Ota?”. Em um desses movimentos típicos do inconsciente, expurguei a ideia com a mesma velocidade com que ela surgiu. Havia um longo dia de trabalho pela frente e já estava nos meus planos ligar pro mais divertido e amalucado dos meus amigos.

Por volta das 16h, protocolando uma prestação de contas na Secretaria de Cultura de Goiânia, recebo uma ligação do Sidney Gusman, editor da MSP e do site Universo HQ. Sidão me pergunta se eu tenho notícias do Ota, pois havia um boato de que ele havia sido encontrado morto em seu apartamento, na Tijuca. Atônito, conto sobre o mal-entendido envolvendo o quase-xará Otto Guerra. Ligo pro Ota, envio mensagens de whatsapp e nada de resposta. Nesse meio tempo, começam a chover mensagens pedindo notícias do cartunista – que logo se transformam em notícias confirmando seu falecimento. Confesso que passei o resto do dia acalentando a tola esperança de que tudo não passasse de mais uma das tresloucadas brincadeiras do Ota. Havia falado com ele, pela última vez, na terça passada.

 

CONHECENDO OTA EM CARNE, OSSO E COLETE DE FOTÓGRAFO

Com meu grande amigo Ota

Com meu grande amigo Ota

Conheci pessoalmente o Ota na saudosa Rio Comicon, início da década passada. Ele participaria de uma mesa com Angeli e Laerte – e eu fiquei pensando como seria difícil estar sentado entre gênios, shakespeares do humor gráfico. Mais uma das minhas infinitas tolices. Mal o papo começou e Ota roubou a cena, com seu humor idiossincrático. Ainda me lembro de Angeli e Laerte literalmente rolando de rir a cada frase proferida pelo cartunista.

Em 2015, o cartunista foi convidado a participar do GO HQ, um evento local de histórias em quadrinhos. Com pouca experiência em produção, os organizadores me pediram para cuidar do Ota na cidade – um verdadeiro presente em minha vida. Litros de cerveja, toneladas de gargalhadas e o início de uma profunda amizade que jamais imaginei terminar de forma tão inesperada. Na ocasião, ao lado do cinegrafista Katu Leão, gravei uma entrevista de cerca de duas horas, como parte de um projeto audiovisual que ainda não se concluiu sobre quadrinhos brasileiros. Agora é questão de honra.

Fazendo a barba, ao vivo e a seco

Fazendo a barba, ao vivo e a seco

De lá para cá, foram muitos encontros – todos marcados por efusiva diversão – e um contato quase cotidiano na virtualidade do mundo contemporâneo. Rara era a ligação que não ultrapassasse uma hora de duração, em meio a histórias antológicas e hilárias sobre quadrinhos e vida. Nos últimos meses, devido ao projeto de republicação de Os Estranhos Hóspedes do Hotel Nicanor, estávamos ainda mais próximos. Muitos planos em gestação.  A ideia de nunca mais conversar com Ota me causa, nesse exato momento, uma dor lancinante. Talvez por isso eu esteja me obrigando a escrever esse texto.

 

MAD É POUCO

Sempre MAD, mais que MAD

Sempre MAD, mais que MAD

Otacílio d’Assunção Barros, o Ota, está indissociavelmente relacionado à revista MAD no Brasil. Foi ele quem trouxe o magazine humorístico para o país, ainda em 1974, pela editora Vecchi. Graças às marcas que imprimiu ao título – como a presença de autores e temas nacionais, além da profunda intimidade com os leitores –, foram décadas de sucesso estrondoso, colhido em diferentes casas editoriais. Ouso afirmar que aqui, mais do que Alfred E. Newman, a cara da revista era o próprio editor-cartunista, encarnado no bonequinho taquigrafado nos histriônicos Relatórios Ota – que faziam disparar as vendas da publicação. Um feito que, por si só, justificaria uma vida. Mas que diante da importância de Ota para a história dos quadrinhos no Brasil, é pouco.

Após o início – ainda imberbe – na Ebal, Ota fez carreira na Vecchi, onde foi responsável por uma verdadeira revolução na HQ brasileira. Ao final dos anos 1970, trouxe à luz uma série de publicações que não só dava continuidade, mas amplificava e renovava a tradição dos quadrinhos de terror no país: Spektro, Sobrenatural, Pesadelo e Histórias do Além. Se num primeiro momento estes gibis exibiam apenas material enlatado – obedecendo à velha sanha das editoras em obter lucro fácil –, gradativamente Ota ocupou suas páginas com mais e mais quadrinistas nacionais.  

Uma das antológicas edições de Spektro

Uma das antológicas edições de Spektro

Foi graças a Ota que veteranos como Julio Shimamoto e Flavio Colin retornaram às HQs, após longa temporada dedicada à publicidade. E também foi ali que uma nova geração de grandes quadrinistas surgiu, com nomes do quilate de Watson Portela, Mano, Itamar Gonçalves, Jonas Schiaffino e Olendino Mendes. Essa foi a tônica de Ota por onde passou: apostar no quadrinho brasileiro.

Por décadas, as grandes editoras se esquivaram de publicar autores nacionais, ancoradas nos discursos mais demagógicos: HQ brasileira não tem público, não é tão boa quanto a estrangeira, não possui profissionalismo... Tudo para disfarçar as facilidades e a margem de lucro ao se publicar material importado comprado a preço de banana. Quando muito, contratavam quadrinistas que permaneceriam anônimos, produzindo commodities como Disney e quetais. A uma certa altura, a Vecchi comprava entre 300 e 400 páginas mensais de HQ feitas por artistas brasileiros – um volume impensável mesmo para os padrões atuais. Ota provou, sozinho, que o quadrinho nacional era viável e lucrativo – desde que houvesse um verdadeiro editor trabalhando o material. E isso me deixa propenso a dizer que ele talvez tenha sido o maior editor brasileiro de todos os tempos.

Shima e Ota, encontro de titãs

Shima e Ota, encontro de titãs

Suas habilidades editoriais, todavia, extrapolavam o caráter nacionalista que sempre carregou em seu indefectível colete de fotógrafo. A MAD, mais que uma revista em quadrinhos, foi uma revolução comportamental no humor brasileiro. Se hoje a tônica do quadrinho nacional possui um pé fincado na estética indie, foi Ota quem nos apresentou, em primeiríssima mão, o universo criado pelos irmãos Hernandez na série Love & Rockets, ainda nos anos 80, via editora Record.

E ainda teve Bonelli (adivinha quem trouxe Dylan Dog pro Brasil?), Asterix, Popeye, King Features Syndicate, Recruta Zero (com muito material produzido por aqui, como a antológica paródia Zeronin), EC Comics, Tenente Blueberry, Otacomix e etc., etc. e mais tantos etc. couberem em um texto. Uma vida dedicada aos quadrinhos. Traduzindo: uma vida dedicada a distribuir felicidade.

 

MAIS VIVO QUE NUNCA

A paixão de Ota pelas HQs nunca arrefeceu, assim como seu conhecimento enciclopédico e memória cristalina permaneceram o tempo todo disponíveis a qualquer um que deles necessitasse – fosse jornalista, pesquisador ou fã. Como disse o tradutor Érico Assis, com dolorosa precisão: “Tem coisas que só ele sabia e acabaram de morrer”.

Em cinco décadas inteiramente dedicadas aos quadrinhos, Ota surfou todas as ondas do atribulado mercado brasileiro. Os últimos anos testemunharam sua última e não menos notável mutação: de prestador de serviço para grandes editoras a quadrinista independente. Foi impressionante observar como ele se adaptou aos modelos de autopublicação, participação em feiras e eventos e criação de uma rede de parceiros de trabalho. De modo que quando ouço que o Ota atravessava situação de grande penúria e depressão, sou obrigado a parafraseá-lo: “Não é bem assim”.

Obviamente, de uma perspectiva financeira, as coisas não iam bem. Mas a situação de Ota não era muito diferente da de tantos outros quadrinistas do Brasil. Sua personalidade idiossincrática terminava por projetar uma imagem pessoal um tanto difícil de ser compreendida por quem não o conhecia de perto. O fato é que Ota estava trabalhando bastante e desenvolvendo diversos projetos com entusiasmo juvenil. Além disso, se recusava terminantemente a viver olhando para o passado.

Por diversas vezes, sugeri republicarmos os antológicos Relatórios Ota – seu trabalho autoral mais popular. Ele logo desconversava. Seu interesse atual residia nas tiras da Garota Bipolar, que produzia em ritmo alucinado sob um processo criativo absolutamente único. As tiras nasciam de um esboço instantâneo, feito a qualquer momento numa folha de papel dobrada que sempre trazia em um dos muitos bolsos do colete. A prancheta podia ser a própria barriga. Aqueles desenhos relâmpagos eram, na minha opinião, os mais bonitos de Ota. Ele poderia simplesmente finalizar a tira direto no papel, mas preferia refazê-la no computador. Ali Ota redesenhava, ou melhor, montava a tira, a partir de um bizarro banco de imagens produzido ao longo de anos. Ou seja, o que o movia não era o método mais simples e lucrativo, mas o prazer envolvido na criação. Havia em Ota a mesma seriedade e afinco com que as crianças tratam as próprias brincadeiras.

Bibi, o amor de Otinha

Bibi, o amor de Otinha

A Garota Bipolar deu origem a dois gibis que Ota vendeu de mão-em-mão Brasil afora. Estimo, sem medo de errar, que cerca de quatro mil exemplares circularam nesse modelo contracultural. Veio então a ideia de compilar os dois volumes em um livro, acrescido de novas tiras. Uma bem-sucedida campanha de financiamento coletivo foi realizada pela editora Tai e a publicação deve chegar em breve à mão dos apoiadores, ainda que incompleta. Ota não se contentou em apenas completar a saga de Bibi, refazendo todas as tiras que já estavam prontas. Em uma de nossas últimas conversas, ele me confessou estar novamente apaixonado pela personagem.

Para além do trabalho autoral, Ota tornou-se um ás na criação de fontes para HQs. Era dele, por exemplo, o letreiramento dos livros da editora Figura – reconhecida pela excelência do acabamento gráfico em suas publicações. Acompanhei de perto o exímio tratamento de imagens que Ota fez a partir das pranchas originais da Supermãe, antológica criação de Ziraldo. Infelizmente, o trabalho feito não foi utilizado, em virtude de um desentendimento com os responsáveis pela reedição. Justiça seja feita, desentendimentos eram comuns na vida de Ota.

 

UM HOTEL CHEIO DE PROJETOS

Layout para o Hotel do Terror

Layout para o Hotel do Terror

sonhei com você

vocw wra horwlwiero w ravqa querendo fazer uma ocnvencao d ehq no seu hotel

e tem mais

era voce mas a cara era mais parrecida com o shmep dos 3 Patetas

Essa foi uma das típicas mensagens enviadas por Ota via whatsapp. A aparente dislexia avançava à medida que a noite surgia, onde a baixa luminosidade prejudicava sensivelmente sua visão. Às vezes as coisas ficavam realmente incompreensíveis. Não foi o caso. O assunto aqui não era outro senão Os Estranhos Hóspedes do Hotel Nicanor, antológica série publicada na Vecchi, que será compilada na íntegra pela MMarte.

Para os antigos leitores da Spektro, não existe dúvida: o Hotel Nicanor é um clássico. As quatro HQs que compuseram a série estão sempre entre as mais lembradas do período. Não é para menos. De forma brilhante, elas sumarizam o quadrinho brasileiro de terror: erotismo, humor e gore, em doses mais que generosas. O Hotel Nicanor é o feliz encontro de dois mestres, ambos no ápice de suas qualidades: Flavio Colin nos desenhos e Juka Galvão no roteiro. E Juka Galvão não era outro senão o próprio Ota.

No período da Vecchi, em virtude de sua posição de editor, Ota estava impedido de encomendar seus próprios roteiros, por melhores que fossem. A saída foi a criação de pseudônimos, alguns dos quais se notabilizaram na preferência dos fãs, como Said Cimas, Basílio de Almeida (que dividia com o cartunista Luscar) e Juka Galvão. Eis outro problema que surge com sua precoce partida: identificar os roteiristas dos anos Vecchi.

Leitor da série em primeira mão, por anos acalentei o sonho de republicá-la em uma antologia coletando tudo que foi produzido – inclusive o remake de 1994, rebatizado de Hotel do Terror. Não era um sonho muito simples. Nosso gênio maior, Flavio Colin, faleceu levando consigo uma rusga não resolvida com Ota. O roteirista, por sua vez, dizia que mesmo não guardando mágoas de Colin, não queria nenhum tipo de problema com os familiares do desenhista. Logo, as chances de republicação de Nicanor – ou qualquer outra história feita em parceria com o saudoso artista – eram praticamente nulas. A ideia de um tesouro das HQs brasileiras ficar para sempre trancado nas gavetas do esquecimento me fizeram insistir.

Ilustração inédita de Colin para o Hotel do Terror

Ilustração inédita de Colin para o Hotel do Terror

Graças à amizade e confiança de Flavio Colin Filho, obtive a autorização para levar o projeto adiante. E também graças à nossa amizade, Ota não fez diferente. Sua única exigência foi não se envolver de forma alguma com o projeto. Mas isso, eu já previa, iria mudar em breve.

Assim que enviei as páginas originais escaneadas para Ota, os quarenta anos que o separavam da criação da HQ se dissolveram. Comentários como “Colin era mesmo um gênio” e “Os roteiros eram ainda melhores do que eu me lembrava” se tornaram frequentes em nossas conversas. E logo a coisa evoluiu para sugestões editoriais, planos para o lançamento e a publicação de um volume posterior, em 2022, compilando as outras HQs feitas em parceria com Flavio Colin. Eu não poderia estar mais feliz. Era como se, através da MMarte, o reencontro de dois dos maiores nomes dos quadrinhos nacionais finalmente acontecesse.

As ideias fervilhavam e começamos a discutir um outro projeto: a reencarnação da Spektro. O livro compilaria algumas das histórias e autores mais emblemáticos que passaram pelos títulos de terror da Vecchi, além de trazer alguma HQ inédita que capturasse o estilo da histórica publicação. Falamos da necessidade de textos que apresentassem a abordagem editorial de Ota, responsável por conduzir aqueles gibis ao sucesso. E demos início ao processo de seleção do material.

Num movimento típico do ímpeto frenético de Ota, começamos com o Hotel Nicanor e já tínhamos outros dois livros previstos. Sua empolgação era contagiante. De repente lá estava ele, planejando a adaptação de Nicanor para a Netflix: Nick and the Monsters! Contrariando seu postulado inicial de “tudo bem, mas não quero me envolver diretamente”, fiz o óbvio: o convidei para ser o responsável pelo tratamento de imagem das HQs. Ele topou.

Hotel Nicanor, pág. 1, tratada por Ota

Hotel Nicanor, pág. 1, tratada por Ota

Na segunda, dia 20 de setembro, Ota me envia a primeira página tratada. No e-mail, um único comentário: “Ainda não tá 100%” – o que revela o zelo com que assumia seu trabalho. No dia seguinte, terça, me avisa que não havia encontrado a página 12 da primeira HQ do Nicanor. Atabalhoado com a maldita prestação de contas que me consumiria a semana inteira, recomendo a ele que apenas anote as páginas faltantes, e que desse prosseguimento ao tratamento das imagens. Depois a gente procurava o que fosse necessário. Ele concordou. E foi a última vez que nos comunicamos.

A busca pela tal página também foi responsável por sua última postagem no facebook, no grupo Altos Estudos Sobre HQ, no mesmo dia 21. E depois disso, só as tristes notícias da sexta-feira.

Um jornalista da Folha de São Paulo havia me procurado para uma entrevista sobre o resgate que algumas editoras estão fazendo de clássicos quadrinistas brasileiros. Pensei em aproveitar a ocasião para anunciar o projeto da Spektro e deixei anotado na minha agenda: “Falar com Ota”. Pretendia fazer isso após a entrega da prestação de contas, no longo trajeto de volta para casa. Não deu.

Márcia Deretti, Ota e Márcio Jr., perdidos na madrugada paulista

Márcia Deretti, Ota e Márcio Jr., perdidos na madrugada paulista

Sem nenhum exagero, Ota era uma lenda viva. Tanto a MAD quanto sua personalidade singular lhe conferiam uma fama que o precedia onde quer que fosse. Mas digo e repito: é pouco. E injusto. Assim como é injusto ele partir tão cedo. O conjunto de obras a caminho ajudarão a lançar luz sobre a verdadeira dimensão que o anárquico artista tem para os quadrinhos brasileiros: a dimensão de um gigante incontornável. É uma pena ele não estar aqui para desfrutar do reconhecimento que já se anuncia no horizonte. Mas nós celebraremos por ele, com tudo que é de direito. Viva Otacílio d’Assunção Barros!

VIVA OTA!

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Confira a live que a equipe Raio Laser fez com o grande OTA em 2020.