Obituário: Howard Cruse (1944-2019), pioneiro dos quadrinhos queer norte-americanos

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por Lima Neto

O movimento dos quadrinhos underground dos Estados Unidos não deu espaço apenas para os dropadores de ácido e esquisitões expressarem suas paranoias e viagens lisérgicas nas páginas de HQ. Eles também abriram as portas para gays e lésbicas construírem cantinhos aconchegantes e sexys para uma crescente parcela da população que engatinhava para autoaceitação durante a revolução sexual em curso e propulsionados pelos movimentos de direitos civis. Um dos pioneiros desse levante, Howard Cruse, faleceu no dia 26 de novembro após uma longa batalha contra o câncer. 

Praticamente um desconhecido no Brasil, Cruse nasceu no Alabama (1944), e em sua juventude se viu inspirado pelo clima de protesto que se formava no sul dos EUA. Iniciou sua carreira nos anos 70, publicando sua tira de humor Barefootz no jornal underground Crimson White. Mas somente nos anos 80 que Cruse passou a abordar sua sexualidade nas páginas de quadrinhos, primeiramente com as tiras do personagem Wendel, nas páginas de The Advocate - principal publicação destinada ao público LGBT, sendo publicada desde 1969. Em Wendel, Cruse vai narrar, com sagacidade, leveza e bastante indignação, as desventuras de um jovem idealista gay e seu namorado durante um dos períodos mais conturbados pra comunidade queer norte-americana. As tiras de Wendel chegaram a ser encadernadas em um volume único, com introdução especial de Alison Bechdel. É em 1979 que o trabalho de Cruse ganha mais destaque, ao ser convidado por Denis Kitchen para editar a antologia Gay Comix que se proporia a publicar quadrinhos de autor@s gays e lésbicas dos EUA. Cruse editou as 4 primeiras edições, mas o título Gay Comix foi publicado até 1998. Em seu período mais efervescente, a qualidade de seu material fez com que a revista fosse considerada por gigantes do mainstream, como Alan Moore, como um dos melhores quadrinhos dos anos 80 no mercado americano. Um reconhecimento costumeiramente obscurecido quando se aborda a revolução dos quadrinhos dessa década. 

CRUSE. Foto: Frederic Lorge

CRUSE. Foto: Frederic Lorge

Em 1995, a carreira de Cruse alcança o topo a que estava destinado com o  lançamento de sua graphic novel Stuck Rubber Baby, pelo selo Paradox Press da DC Comics. O traço elegante de Cruse chegava à sua máxima maturidade, adicionando tons sombrios ao seu cartum renderizado com ricas texturas obsessivamente construídas. Décadas de trabalho no mercado alternativo o prepararam para fazer de Stuck Rubber Baby um clássico até hoje inédito no mercado brasileiro. Na HQ, Toland Polk é um jovem que, após perder os pais em um acidente, passa a viver sem rumo. Entre trabalhar em uma oficina e manter um namoro de fachada na esperança de que uma mulher o cure de sua homossexualidade latente (resultando na entrega de seu filho para adoção), Polk se vê envolvido com a comunidade negra da região do sul dos EUA onde mora, que o vê com mais naturalidade e calor humano do que vice-versa. Os laços de afetividade que  cria entre os membros desta comunidade o coloca em contato direto com os protestos pelos direitos civis, e com a repressão violenta que se segue. Stuck Rubber Baby foi relançado em 2010 pela Vertigo, também com uma introducão de Alison Bechdel. Resta-nos torcer para que o legado de Cruse seja publicado por estas bandas, principalmente neste momento em que mais precisamos de inspiração e da lembrança viva de que é necessário lutar com as armas que pudermos para que o passado não se repita.

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