Marcello Quintanilha: Deus está no detalhes, por Lucas Reis

Nosso colaborador Lucas Reis, aproveitando o ensejo do Fauve D’Or de Marcello Quintanilha no Festival de Angoulême 2022, nos enviou duas resenhas poderosas e minuciosamente elaboradas, com enfoque sobre como a linguagem do autor se desdobra em sua visão de mundo, de suas mais recentes obras em quadrinhos. Lucas que, por sinal, é agora Mestre em Audiovisual ela Universidade Federal Fluminense. (CIM)

Seguem também todos os materiais em que resenhamos o trabalho de Quintanilha na Raio Laser:

Aqui, nossa cobertura completa de Angoulême com o canal Eurocomics.

LASERCAST #34 – ALMANACÃO DE FÉRIAS RAIO LASER

13 PERGUNTAS PARA MARCELLO QUINTANILHA - DESERAMA: O ESPETÁCULO DO DESEJO

LUZES DE NITERÓI: O ESGARÇAR DO TEMPO

TALCO DE VIDRO: INESCAPÁVEL ARMADILHA MENTAL

ZIP (Metrópoles): Marcello Quintanilha é autor do quadrinhos que inspira o filme Tungstênio

ESSENCIALMENTE BRASILEIROS

CONTÉM SPOILERS

por Lucas Reis

Escuta, Formosa Márcia: Mergulho no abismo

Escuta, Formosa Márcia é a mais nova publicação de Marcello Quintanilha. Após Luzes de Niterói, que funcionava como uma síntese de seus últimos trabalhos resgatando elementos narrativos  de materiais anteriores como Tungstênio e Talco de Vidro, e Deserama, sua primeira obra literária, era de se supor que o quadrinista demoraria um pouco para retornar ao universo das histórias em quadrinhos.

No entanto, não foi o que aconteceu. Ao contrário, Escuta, Formosa Márcia foi lançado em fluxo contínuo com o recente trabalho do autor, embora transpareça uma mudança na carreira de Quintanilha. Aqui, o autor se dedica à protagonista Márcia, enfermeira que atua em um hospital e como cuidadora de idosos, vivendo em uma comunidade do Rio de Janeiro com sua filha adolescente, Jaqueline, e o companheiro, Aluísio.

Jaqueline e Aluísio são personagens coadjuvantes que dão tridimensionalidade para a protagonista a partir da forma como ela expressa o amor pelos dois. Com Aluísio é uma relação morna, gentil, carinhosa - dois adultos que se entendem e claramente se gostam. Por outro lado, a relação com Jaqueline é sempre conflituosa e costumeiramente cheia de atritos. A adolescente começa a ter amizade com criminosos da região em que elas vivem e Márcia faz de tudo para que a filha não enverede pelo mesmo caminho. Dessa maneira, há uma distinção clara na personagem - a calma com que leva a vida com Aluísio e a raiva que a acomete quando se relaciona com a filha. De qualquer modo, são nesses momentos em que a personagem tem a liberdade de ser quem realmente é, pois a realidade se impõe de forma que suas atividades sejam entre a casa e o trabalho.

Então, atividades corriqueiras como se sentar com amigas no bar para tomar cerveja após o expediente ficam completamente apagadas em sua rotina, mesmo que o convite seja constante. É quase como uma vida sem descobertas. Não por acaso, um dos momentos mais bonitos do gibi acontece quando Márcia descobre um CD na casa de uma senhora onde trabalha como cuidadora. Uma marchinha antiga com o mesmo título da história de Quintanilha.

Márcia escuta a marchinha interessada e ali é como se tivesse uma epifania. Uma vontade de fazer com que a vida não seja apenas a sua rotina diária. Por isso, o encontro feliz após voltar para casa é com o companheiro. Esse é o maior exemplo do lugar onde Quintanilha situa a sua história. Mesmo alguém sem direito a momentos de ócio pode mergulhar em um momento de puro deleite ao se deparar com algo que sempre existiu, mas que nunca lhe foi dado o direito de conhecer.

Chama a atenção também o fato de Márcia ter encontrado uma canção que lhe marcou em um CD. Certamente, é um tipo de mídia que ainda existe e é costumeiramente utilizada em ambientes domésticos. Por outro lado, por ser uma mídia em franca decadência, ao menos, embaça uma condição temporal clara. O que parece ser o desejo de Marcello Quintanilha em embaralhar o tempo presente. Afinal, é evidente que a marchinha que Márcia descobre faz parte do passado, mas o presente é algo um tanto indefinido. É curioso como Quintanilha traz o passado como um escape em Escuta, Formosa Márcia, o que não parecia ser algo relevante para seus personagens em histórias anteriores. No entanto, o passado o toca de alguma maneira como artista, em Fealdade de Fabiano Gorila e Luzes de Niterói, ele retorna a década de 1950 para mergulhar na história de seu pai.

Ainda sobre a questão temporal em Escuta, Formosa Márcia a própria arte se encarrega em não esclarecer tudo a primeira vista. Em Luzes de Niterói, Quintanilha havia chegado em um nível de detalhes extraordinário, que compunha toda a ambiência da década de 1950. Todavia, em Escuta, Formosa Márcia, é diametralmente oposto. As cores explosivas saltam dos quadros e não mantêm a característica realista de seus trabalhos anteriores. Dessa maneira, fica mais custoso identificar em qual época se passa. Então, se da janela de D. Cremilda é possível identificar a Zona Sul do Rio de Janeiro ou se aos arredores da casa de Márcia, uma comunidade da mesma cidade, já não é tão palpável o momento exato em que a história se desenrola.

No entanto, se a arte em Escuta, Formosa Márcia difere do trabalho anterior de Quintanilha, algo que perdura é o vocabulário coloquial cheio de gírias e expressões tipicamente cariocas, que trazem profundidade ao trabalho do autor quando penetra no ambiente retratado. É a partir das falas de Márcia e Jaqueline que se marca uma diferença geracional e uma distância na relação entre mãe e filha. Há um interesse em desvendar um Brasil profundo por meio das personagens em suas relações mais íntimas, ou talvez, um interesse em desvendar as personagens que, de alguma forma, faz com que se radiografe uma parcela da população brasileira.

Em Escuta, Formosa Márcia, porém, essa tentativa de iluminar as periferias do Brasil se faz de forma complexa. O gibi se manifesta como o oposto de Central do Brasil - provavelmente a obra mais icônica dos últimos trinta anos a tentar desvendar os meandros do Brasil e da brasilidade - ao não oferecer uma redenção final. Tampouco Márcia pode ser comparada com Dora (Fernanda Montenegro) que encontra a redenção ao salvar uma criança de sua realidade e levá-la ao seio de um espaço social idealizado. Pelo contrário, Márcia termina em direção ao desconhecido sem uma sensação de fechamento real, porém cheia de incertezas perante a nova vida.

Quintanilha não oferece o caminho fácil. Cria uma história complexa em que as feridas não se fecham com um final reparador. Márcia se mantém em uma mesma situação sufocante econômica e socialmente da qual sempre tentou se livrar, porém não é fácil escapar de uma estrutura social massacrante. Chega a ser doloroso pensar que a melhor situação que Márcia entendeu para Jaqueline foi colocá-la em uma cadeia de outro estado para que não sofresse com represálias ou se aproximasse novamente de um ambiente criminoso.

Dessa maneira, a tentativa de Márcia de ter uma notícia da filha através de recorrentes viagens em ônibus interestaduais é o mesmo que a leva para uma vida nova. É diferente do ônibus que leva Dora de volta ao Rio de Janeiro depois de ter cumprido sua missão com Josué (Vinicius Oliveira). A foto que leva do menino em um brinquedo que ela o apresentou,  é o desfecho de um registro que embala saudades, mas onde reside uma ligação sólida. No final de Escuta, Formosa Márcia, não há qualquer registro real de Jaqueline, além da própria Márcia e Aluísio falarem sobre ela de uma maneira um tanto distanciada. São condições impostas pela narrativa, mas que fazem do gibi uma história complexa e que permanece para além do tempo de leitura.



Luzes de Niterói:  Deus está nos detalhes 

Luzes de Niterói é um dos mais recentes trabalhos de Marcello Quintanilha que, cada vez mais, se consolida como um dos principais quadrinistas do Brasil. Aqui, ele mantém o rigor de seu trabalho e realiza a sua obra mais ambiciosa ao absorver a história real de um jogador de futebol do clube Canto do Rio, de Niterói/RJ. O jogador em questão, se chama Hélcio e é o próprio pai de Quintanilha que, junto do amigo Noel, tiveram uma história improvável antes de um jogo importante do Canto do Rio pelo campeonato carioca.

Ao resgatar trabalhos antigos de Marcello Quintanilha, fica claro que o autor tem um apreço especial pelas relações humanas mais simples, neste caso, busca investigar a amizade entre os dois sujeitos. Após perceberem que alguém está fazendo uma pesca com bombas, os rapazes têm a ideia de conseguir vários peixes rapidamente para vender. Assim, iniciam uma cruzada de barco que dura muito mais tempo do que poderiam imaginar.

Quem conhece o trabalho anterior de Quintanilha sabe que a pesca com bombas não é algo incomum. O mesmo acontece em Tungstênio (2014). De certa forma, várias ideias de Luzes de Niterói podem ser compreendidas em outros gibis do autor. Além da já citada pescaria, a vida de um jogador de futebol está em Fealdade de Fabiano Gorila (1999), a paixão pelo esporte em Sábado dos meus amores (2003) e a cidade de Niterói é um componente importante em Talco de Vidro (2015).

Sobre Niterói, cabe destacar a profunda pesquisa para a recriação geográfica da “cidade sorriso”. Mesmo o famoso trampolim da praia de Icaraí, que não existe mais, aparece rapidamente - o artefato ainda é lembrado com saudosismo por quem vive há muito tempo no município. Niterói não dá apenas o título do livro, contudo, é parte importante da reconstrução de um universo proposto por Quintanilha. Nascido e criado na cidade, o autor parece respirar Niterói e reproduzir a própria visão de um lugar que conhece muito bem e, contraditoriamente, de uma época em que não viveu - a história se passa na década de 1950 e Marcello Quintanilha nasceu na década de 1970.

Ainda sobre a reconstrução histórica e de imaginário que permeia Luzes de Niterói, a pesquisa sobre a década de 1950 foi exemplar. Como é sabido, Quintanilha faz questão de criar os diálogos mais naturais possíveis. Os seus balões são cheios de ginga e gírias comuns à forma de falar das pessoas, respeitando inclusive, manifestações locais de fala. O mesmo ocorre em Tungstênio, em que expressões idiomáticas típicas de Salvador são comuns. Em Luzes de Niterói, a editora Veneta chega a inserir certas notas de rodapé para que o leitor não se perca na quantidade de gírias comuns à época. É possível comparar o texto de Luzes de Niterói com alguns filmes brasileiros da década de 1950 passados no Rio de Janeiro - as famosas chanchadas -  que utilizam as mesmas expressões.

Na página 81, quando Noel pergunta para Hélcio se ele quer um enterro de “gente bem” - o que seria alguém de posses - lembra a contraposição entre “gente bem” e “gente de bem”, do importante filme Depois eu conto (José Carlos Burle, 1956). Neste, os protagonistas destacam as diferenças entre quem tem dinheiro (gente bem) e quem tem valores (gente de bem). Já na página 96, a frase “Mais por fora do que umbigo de vedete” é a mesma que Sônia Mamede costuma usar em De Vento em Pôpa (Carlos Manga, 1957). Na página 100, a expressão “vivaldino” está na famosa canção de encerramento de Garotas e Samba (Carlos Manga, 1955). As expressões que se conectam com filmes brasileiros populares na década de 1950, dão a ver o capricho em resgatar a forma de falar da época. Exemplos do apuro de construção em Luzes de Niterói.

Ao lidar com a história do próprio pai, da cidade em que nasceu, do esporte mais popular do país e com os próprios trabalhos anteriores, é possível afirmar que Marcelo Quintanilha compõe o trabalho de sua vida em Luzes de Niterói. Não pretendo encerrar prematuramente a carreira do autor, porém destacar que é inegavelmente um marco em seu percurso artístico, pois funciona como uma síntese de diversas questões que permeiam o universo de Quintanilha nos últimos anos e eleva particularidades de seu trabalho. Se os diálogos que sempre são um prato cheio em seus gibis, ganham uma nova camada em Luzes de Niterói, há também outras construções marcantes que ascendem neste trabalho.          

A narrativa de Quintanilha nunca esteve tão apurada como em Luzes de Niterói. A aventura de Hélcio e Noel é, basicamente, dividida em episódios: a pesca, a tentativa de vender os peixes em uma feira, a praia de nudismo, a tempestade, o jogo de futebol, o baile e o reencontro na praia. Uma progressão temporal é costurada pela amizade entre Hélcio e Noel. É essa camaradagem que fundamenta o gibi, desde os momentos em que os amigos estão mais unidos, até a fase em que estão brigados.

A característica episódica descrita acima ganha maior dimensão porque em todas as passagens há catarses após um clima de apreensão, que Quintanilha insere com muita propriedade. É o caso do sujeito que confunde os amigos com policiais e ameaça os assassinar se eles não forem embora. Essas tensões recorrentes ganham mais peso porque o autor está muito à vontade para esmiuçar todas essas ações. Há uma qualidade específica do autor em dilatar o tempo narrativo para promover a aflição, que ganha contornos cada vez mais fortes até chegar na grande tempestade que coloca Hélcio e Noel em grandes apuros.

Outro exemplo importante da dilatação do tempo é o paralelo de Hélcio imerso nas profundezas da Baía de Guanabara com a sua carreira de jogador de futebol. Essa passagem é de um brilhantismo único. Além de elevar o tempo de desespero com o rapaz tentando chegar à superfície, valoriza a sua história como zagueiro, que será destrinchada páginas à frente.  

Embora existam essas questões de tensão narrativa, o que ainda predomina no trabalho de Quintanilha é uma visão sobre o cotidiano. Ou melhor, do que é terreno. Não existe Deus nos seus gibis. Ao menos, não da forma onipotente, onisciente e onipresente como costuma ser compreendido nas leituras cristãs mais convencionais. O que se estabelece em Luzes de Niterói é um conflito entre o homem e a natureza. Na realidade, da força da natureza contra a pequenez humana. A tempestade que acomete a costa litorânea de Niterói é de uma força muito acima de qualquer possibilidade de enfrentamento. Quando Hélcio consegue tirar o barco da força do vento e posicioná-lo em uma faixa marítima mais amena, ele o faz com as últimas forças que lhe restam. Não é um milagre, porém também não é um golpe de sorte. É como se a divindade no trabalho de Marcello Quintanilha estivesse em todas as coisas; é como se fosse uma força espalhada pela natureza e não uma força única e concentrada. O apego pelo mínimo que há em volta, se estabelece, inclusive, na sua arte que intenta radiografar tudo que está ao redor em suas particularidades.

A arte de Quintanilha, costumeiramente assombrosa em seu detalhismo, tem momentos bastante fortes em Luzes de Niterói. O episódio da tempestade em que a água do céu se choca com a água do mar, além dos quadros que parecem rasgados pela chuva fazem com que o próprio desenho crie uma aflição palpável. Entretanto, a fixação do autor aos detalhes tem o seu ponto alto durante a sequência do baile. Quintanilha está tão à vontade que brinca com a linguagem dos quadrinhos. Em certo momento, Hélcio corre atrás da garota que conheceu e está indo embora por exigência dos pais. Enquanto a moça está no carro com os vidros fechados e, portanto, sem a possibilidade de emitir sons, ela apenas flexiona a boca para dizer seu nome. Em quatro quadros, Quintanilha se fixa apenas na boca da moça que faz diferentes movimentos. As histórias em quadrinhos, obviamente, não emitem sons. Contudo, o autor nega o balão e estende a aflição para o espectador que não sabe se o rapaz conseguiu captar o nome da pretendente ou não. Além do mais, estende até a página seguinte o balbuciar de Hélcio: “Deise”. Novamente, há a dilatação do tempo. Porém agora não é por um risco de morte, mas por um possível romance.

A história de Hélcio e Deise se encerra nesse momento. Ao menos no gibi. O que importa em Luzes de Niterói é o amor fraterno. A amizade arranhada entre Hélcio e Noel não poderia ficar sem reparação. É diante do fogo que essa condição é retomada. Esse elemento principiador de vida que origina luz e calor, mas também é capaz de queimar quem lida diretamente com ele. Ali os rapazes passam a ver a vida de forma diferente e têm de lidar com sentimentos incomuns de fragilidade na amizade cheia de carinhosas agressões. Entretanto, quando a relação retorna ao estágio normal, eles não são mais os mesmos. Um sentimento de maturidade ou, ao menos de cuidado com o outro, se estabeleceu. Se, para Quintanilha, a divindade está nas pequenas coisas, as luzes de Niterói também estão nesses jovens ordinários que não apenas refletem, mas também emanam suas próprias luzes.