"Os Donos da Terra" e os Tupinambá: etnografia de superação em quadrinhos

por Jota Erre

Os Donos da Terra, de Daniela Fernandes Alarcon, Vitor Flynn Paciornik e Glicéria Jesus da Silva, é uma HQ-documentário, uma investigação e um convite a conhecer e ter a consciência da História de um dos povos formadores da diversidade brasileira, o Povo Tupinambá. Na diversidade interna ao próprio Povo, a HQ se centra na condição política atual e nas condicionantes históricas e sociais que caracterizam a vida do Povo Tupinambá de Olivença, cuja Terra se localiza no estado da Bahia.

No campo antropológico, há mais ou menos 150 anos, partindo das contribuições de Malinowski, Boas, Lévi-Strauss, Geertz, entre outras, um dos motores interdisciplinares do campo é a distinção entre sincronia e diacronia, entre História e Cultura. Uma imagem popularmente cultivada, mesmo nos períodos recentes, é a de que as culturas dos povos originários estariam ou num estágio estacionado anterior ao das culturas colonizadoras, ou num estágio não exatamente anterior ao delas, mas, de qualquer forma, numa espécie de estágio perene, imutável, e alheio a qualquer mudança histórica ou à interação e reação ao contato, diálogo ou superposição de outras culturas.

Uma outra imagem popularmente cultivada é a de que trata-se de povos que, ao contrário do ocidente urbanizado e de mentalidade industrial, ou industrialista, possuem uma relação com a natureza mais fortemente marcada. Essa imagem se associa à comum dissociação ocidental, motor do desenvolvimento do pensamento moderno – e de sua ciência e tecnologia – de domínio sobre a natureza, apartando o cultural humano do natural não-humano.

No campo antropológico, essa dicotomia encontra um ponto de questionamento ou superação no apontamento, por exemplo, de Roy Wagner, segundo o qual não há natureza dissociada de cultura; o que consideramos cultural será sempre o que nos faz nomear ou interpretar o que consideramos natural, sendo talvez o que entendamos como natureza muito mais produto – do que produtora – da cultura.

Na capa da HQ, nos colocamos como público-testemunha, do lado da resistência representada pela anciã Tupinambá, que nos conta sua história familiar e sobre a resistência à exploração do Areal, extração invasiva da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, de forma a alimentar uma demanda da construção civil.

O trabalho de construção simbólica de referências visuais e a intenção explicitada na formação de uma história coletiva passa pela forma como são retratadas as figuras e os povos que representam essa história. E há uma leitura que se adapta a necessidades históricas, em especial quando historicamente vivemos momentos de oposição ao silenciamento de povos subalternizados, de forma a subverter a interpretação histórica que os subalternizava, por exemplo, aquela que torna heroicas figuras que representavam a opressão a esses povos subalternizados em outros momentos históricos.

A manifestação, no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, que colocou em chamas a imagem do bandeirante Borba Gato, é um exemplo de questionamento da heroicidade atribuída a essas figuras escravocratas e genocidas a partir da atuação do Instituto Geográfico e Histórico, Nacional ou Paulista, desde o século XIX, perpetuando a subalternização de povos indígenas e da diáspora africana, formando uma imagem “modernista” do país como a de um futuro branco. O modernismo e o futurismo não será branco, nem a Democracia. Como apontam Ta-Nehisi Coates e Nikole Hannah Jones, em podcast do NY Times - a Democracia é uma construção em curso, não está terminada, e não é branca, formada por heróis perfeitos, como Thomas Jefferson, porque este era igualmente um escravocrata.

A construção do que significa o desafio que a ideia de Democracia apresenta para um mundo plural está em curso, e, no campo das representações literárias ou estéticas, queimar um Borba Gato gigantesco, ou desenvolver uma HQ como Donos da Terra são manifestações nesse campo, nessa pegada, e colocam sobre a mesa essa leitura sobre possíveis superações quanto à subalternização histórica de Povos Originários ou da Diáspora Africana.

Numa cotidianidade em que, em redes sociais, imagens neonazistas, ou da invasão do Capitólio em Washington, com terroristas intencionalmente apresentando uma espécie de alegoria, de fantasia, são vistas ou compartilhadas, podemos calcular a importância dessas superações do colonialismo, do racismo, do anti-indigenismo, dos atos como aquele contra a estátua, ou do desenvolvimento de uma HQ que apresenta uma situação concreta vivida por um Povo Indígena, como os Tupinambá de Olivença, a partir dos depoimentos do próprio Povo.

No dia 24 de julho de 2021, o coletivo Revolução Periférica promoveu uma manifestação em que ateou fogo à estátua do bandeirante Borba Gato, no bairro de Santo Amaro, na cidade de São Paulo. A imagem que resulta do ato possui uma potência transformadora na relação entre a sociedade contemporânea e o seu passado. A versão promovida pelos Institutos Geográfico-Históricos do período imperial, fundados na época de Dom Pedro II, era a de que bandeirantes deveriam ser representados como heróis – o que justificaria erigir uma estátua de grande porte num espaço público de um centro urbano. A ação promove uma contestação a essa heroicização de personagens ligados ao escravagismo e ao genocídio de Povos Indígenas.

Interessante aspecto do produto cultural dos quadrinhos é propor, visual e graficamente, uma leitura do mundo, uma interpretação do mundo, cumprindo o seu papel cultural de trazer a páginas legíveis – ou a telas, no caso das digitais – uma entrada para uma realidade sempre política e cultural do público leitor. A nomeação do continente como “América” vem da popularidade das publicações, na Europa, dos relatos do florentino Americo Vespucci. O imaginário europeu, repleto de poder mitificador (como bem explorado por Buarque de Holanda nas Visões do Paraíso) naquele século XVI que testemunhava o próprio advento e crescimento de publicações impressas (que lançavam mão das gravuras em madeira ou metal), a respeito destas terras, denominadas Brasil primeiramente por franceses que almejavam fundar a França Antártica – como bem aponta Lévi-Strauss nos seus Tristes Trópicos –, formulou a sua ideia dos povos e das características da paisagem, da fauna e da flora daqui a partir da imaginação, invenção ou documentação em primeira ou segunda mão de olhares como os de Thévet e Jean de Léry.

Séculos mais tarde, no período em que a Corte Joanina transferiu-se para o Rio, e que Debret foi encarregado da Missão Artística Francesa, o artista bonapartista, escandalizado com a distância social que apartava a sociedade da capital do ideário democrático e iluminista da Revolução Francesa – me pergunto se dois séculos passados, hoje, este país conseguiu superar ao menos um pouco essa distância; precisamos ter em mente que a Revolução Francesa, assim como a citada Democracia estadunidense, mesmo presente no Haiti, esteve contaminada pela subalternização de povos não-brancos –, passou a retratar a vida escravocrata da elite brasileira, a violência contra o povo negro na cidade do Rio, e esse retrato de nossa infeliz e violenta cultura compôs o imaginário do seu público leitor – europeu – sobre a realidade brasileira da época, por meio de suas gravuras publicadas por lá. Foi a época das expedições, responsáveis por publicações de gravuras de Rugendas – como a que retratava os navios negreiros, e a realidade do interior das Minas Gerais e Goiás, da Amazônia – ou Hercule Florence – desenvolvendo uma visão da fauna e da flora.

Assim como hoje percebemos esse papel destacado para a Nona Arte, exemplos de séculos anteriores dão conta da importância de publicações de imagens, na Europa leitora, na construção de um imaginário e de uma discurso sobre as terras e povos daqui. As representações artísticas europeias – ou do Norte Global como um todo – desde há pelo menos 150 anos, vem sendo afetada ou alterada pelo ambíguo jogo do retratar “outras” culturas, com elas dialogar, ou ignorá-las. No campo artístico, Van Gogh é um dos representantes de um japonismo, Gauguin buscou retratar a Polinésia, o modernismo das Demoiselles d’Avignon de Picasso tem muito de apropriação estética das imagens de máscaras africanas do Trocadero.

“Derrubada de uma floresta”, de Johann Moritz Rugendas, cerca de 1820 a 1825. Publicações com gravuras de Rugendas eram lidas na Europa, ganhando um caráter jornalístico, com imagens de episódios e rotinas no Brasil. Aqui a relação de trabalho representada pelo escravagismo da população negra, e a visão técnico-econômica mercantil-capitalista da floresta como fonte de recursos, entrave a ser desgastado, em busca do que poderia ser aproveitado para o comércio – já que a indústria nacional, outro motor do desmatamento – ainda não existia.

Debret retratou igualmente Povos Originários, embora se tenha em conta que não realizou expedições ao interior do Brasil para ter uma impressão próxima, por exemplo, do Povo Aymoré, ou do Povo Guaykuru, cuja imagem, pintada pelo artista consagrando, a sua característica de povo exímio dominador de cavalos é muito conhecida. A HQ Os Donos da Terra diferencia-se, entre outras coisas, dessa tradição de leitura sobre esses Povos, adotada do ponto de vista colonizador – mesmo quando saída da pena de um bonapartista, ou seja, defensor de direitos humanos, a princípio –, por adotar, desde sua concepção, o ponto de vista mais próximo do relato das próprias pessoas que compõem o Povo Tupinambá, mais propriamente, representantes da população da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, na Bahia.

“Carga de Cavalaria Guaykuru”, de Jean-Baptiste Debret, de 1822. Mais um exemplo de gravura que integraria publicações na Europa, onde o público dos centros urbanos formavam as suas leituras sobre Povos Originários no continente americano. Debret não foi à região hoje conhecida como Mato Grosso, território onde estava o Povo Guaykuru, mas produziu a imagem a partir de relatos. Até os meados do Século XIX, mesmo em pesquisas na área da Antropologia, dados sobre Povos Indígenas recolhidos de segunda ou terceira mão foram usados na pesquisa antropológica. Casos como o da interlocução entre Curt Nimuendaju e Constant Tastevin com instituições de pesquisas europeias são exemplos dessa prática.

Desde a capa, e no primeiro capítulo da história, a “Briga do Areal”, o confronto entre o apelo econômico e exterior ao que a Terra do Povo Tupinambá pode guardar e as pessoas do próprio povo, ali vivenciando a Terra não como potencialidade econômica, mas como local de desenvolvimento de seu sustento e cultura, se coloca na oposição entre a robustez de tratores, caminhões e carros policiais e pessoas Tupinambá trajadas com sua coragem e cocar, com sua determinação e ligação com Encantados, unindo litoral e serras no compromisso de defender a própria Terra.

Ao longo da HQ, temos vários exemplos de conexão entre a realidade espiritual do Povo Tupinambá, elemento formador de indivíduos e coletivo daquele Povo, representada pelos Encantados, ligados de forma íntima com o que o território significa para aquele coletivo, e a realidade de luta política do Povo, em sua trajetória histórica de resistência e busca por superação de problemas colocados pelo violento esbulho de suas terras por interesses de patrões locais, há décadas.

Destacando a importância das lideranças atuais, a HQ segue, nos capítulos seguintes, traçando um panorama da história recente daquela região, de acordo com a transmissão oral, representada pela reunião de pessoas de idade, relembrando a perseguição a Marcellino, líder perseguido em período que compreendeu os anos 1920 e 1930, sendo apontado que a sua prisão se deu em 1937 – ano marcado pelo advento da ditadura do Estado Novo. Marca daquele período está na indicação de que Marcellino fora acusado de “comunismo”.

Numa só página, condicionantes muito comuns na história recente de resistência indígena em muitos locais do país são reunidas: em meados do século XX, muitos povos passaram a não se identificar como indígenas, de forma a evitar a violência e a perseguição; muitas famílias indígenas deixaram as próprias terras, em busca de sustento; proprietários rurais promoveram esbulho de suas terras, por meio de invasões ou negociações injustas, por dívidas contraídas de maneira a desfavorecer essas famílias e expulsá-las.

Por esses fatos terem acontecido ao longo das últimas décadas em tantos lugares e contextos no Brasil, não faz sentido apoiar a tese do Marco Temporal, segundo a qual apenas Terras ocupadas por famílias indígenas quando da data de promulgação da Constituição Federal, em 1988, poderiam ser demarcadas e homologadas pelo Governo Federal como Terras Indígenas. E, por ter sido essa realidade de esbulho uma constante nas últimas décadas, principalmente em período anterior aos processos de retomada, é muito violento considerar essas retomadas como processos criminosos ou ilegítimos.

O líder Marcellino, atuante nas décadas de 1920 e 1930, resistindo em nome do Povo Tupinambá, é, nessa página, representado como um guerreiro, em sintonia com a ambiência da Terra Indígena.

Os cantos, na HQ, são transcritos com o recurso do recordatório de fundo negro, diferenciando-o da narração da história, também de tradição oral. O canto é uma arte entoada de maneira coletiva, pela qual são ensinados aspectos da cultura Tupinambá e são posicionados os seus embates políticos, aqui referentes à defesa do território e à resistência contra a violência que os assedia.

Ao longo dos capítulos, narradas pelo relato oral de pessoas experientes e conhecedoras do território e de suas entidades, imagens e alusões a sabedorias compartilhadas e religiosidade, retratos da infância, da manifestação do Toré, da produção da farinha, do trabalho diário, da paisagem, alternam-se com a dura e persistente luta contra a opressão dos patrões, contra o furor incitado contra o Povo Tupinambá.

Casos históricos são marcados na narrativa, como a prisão do líder Marcellino, a perseguição de famílias, o assédio de patrões, o esbulho categórico das terras, a exploração do Areal, extração ilegal de areia da Terra Indígena para a utilização na construção civil, a violência contra as retomadas, a prisão do Cacique Babau. A Terra Indígena Tupinambá de Olivença, como detalhado na HQ, se constitui de mais de 20 localidades, com uma população de 5.038 pessoas, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, a Sesai, em 2019. Os relatos e narrativas, as pessoas retratadas e cujas impressões sobre as histórias estão presentes na HQ, centram-se na Aldeia Serra do Padeiro, com a exceção do relatado no primeiro capítulo, referente ao litoral, retratando a extração da areia da terra indígena de maneira invasiva.

A narrativa traz registros do cotidiano do coletivo, o trabalho da terra (libertando-a), aqui representado pelo cultivo da mandioca, elemento cultural essencial de muitas culturas indígenas.

O registro do cotidiano do Coletivo Tupinambá também está nos diálogos e imagens da infância na Terra Indígena, sendo o conhecimento sobre o território e o que ele possui, como os frutos, fundamental para a formação da pessoa Tupinambá.

Caminhando para o desfecho, sem deixar a presença dos Encantados e as palavras cantadas no coletivo, a HQ, aquecida e iluminada como uma fogueira num terreiro próximo à mata da Serra do Padeiro, abre caminho para um futuro de permanente superação e resistência; nas palavras do texto apresentado ao final, após os quadrinhos: “Os Tupinambá consideram que os encantados, entidades não humanas que habitam o território e com quem convivem intimamente, são os donos da terra. Além de constituir a morada dos encantados, o lugar de repouso dos mortos, o âmbito dos bichos e de outras classes de seres, a terra é condição de possibilidade de um projeto coletivo assentado no viver bem. E ela vem sendo corajosamente libertada, conforme os Tupinambá atuam para reverter o esbulho. É essa utopia concreta que movimenta as histórias deste livro”.

A projeção para o futuro está na ligação com o presente e o passado, Tupinambá e Encantados, território e canto, coletivo e consciência sobre a resistência a chamar o Povo, no campo cultural e político.

A edição lida como fonte para este texto é a da primeira reimpressão da HQ Os Donos da Terra, de 2021, da Editora Elefante, publicada com o apoio da Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo.