ConstelaChão: a FabriquInvenção das CidadesSonhos

Com sua prosa poética deslizando sobre as estrelas de concreto das cidades, nosso colaborador especial Jota Erre escreve aqui sobre Lendas Inventadas, HQ de Lima Neto (membro fixo da Raio Laser) lançada em 2021 que conta, na forma de fábulas sócio-imaginativas, as histórias das regiões administrativas (cidades) do Distrito Federal, em estilos artísticos distintos, fugindo à banalidade do historicismo oficioso sobre a capital e seus arredores. (CIM).

por Jota Erre

Em Tristes Trópicos, Claude Lévi-Strauss tece uma interessante reflexão sobre a vida social, as cidades e as obras de arte: 

(...) as grandes manifestações da vida social têm em comum com a obra de arte que elas nascem ao nível da vida inconsciente, por serem coletivas no primeiro caso, e apesar de serem individuais no segundo; mas a diferença acaba sendo secundária, ela é até mesmo aparente, pois umas são produzidas pelo público e as outras para o público e esse público fornece às duas seu denominador comum, e determina as condições de sua criação. Não é, pois, de forma metafórica que temos o direito de comparar - como o fizemos tantas vezes - uma cidade a uma sinfonia ou a um poema; são objetos de mesma natureza. Mais preciosa ainda, talvez, a cidade se situa na confluência da natureza e do artifício. Congregação de animais que encerram suas histórias biológicas nos seus limites e que a modelam, ao mesmo tempo, de todas as suas intenções de seres pensantes, por sua gênese e por sua forma, a cidade lança mão simultaneamente da procriação biológica, da evolução orgânica e da criação estética. É tanto objeto de natureza quanto sujeito de cultura; indivíduo e grupo; vivida e sonhada: a coisa humana por excelência. 

As cidades são, pois, a coisa humana por excelência, mesmo quando não as consideramos “ainda” uma cidade, um vilarejo, um lugarejo, um povoado, uma comunidade, aqui cidade está no sentido amplo. A qualidade de urbano, o que é da urbe, seria o antônimo do que seria o rural, o agrário, a diferenciação entre um grupo humano dependente da natureza (mas todos o são), e outro organizado politicamente (mas todos o são). Coisa humana por excelência por ser formada pelo conjunto de sonhos, de anseios, de desejos, reunião de sabores e saberes humanos, agrupamento que reflete nossa ordem e nosso caos, nosso caosmos, nosso cosmos e caos da reunião de grupos, na dissociação e segmentação. Entre o indivíduo e o coletivo, da mente projetista modernista de Lúcio Costa, em seu Plano Piloto Concretista e Corbusiano, partiu a definição para o que se construiria como “Civitas”, e, não, “Urbe”, uma modernista esperança no Cosmos, uma ligeira distração em relação ao Caos, ao movimento político de desejos e violências, em direções de massas humanas, por décadas, resultando no que atualmente seria o Distrito Federal, e, a partir daqui, o que seria o futuro desse agrupamento humano, cidade e cidades, comunidades e povoados, ocupações e reconquistas do solo. Em meio ao que se constrói como a definição do terreno, uma constelação de possibilidades, uma constelachão de vivências caóticas e ordenadas, segundo nossos GPS de sonhos ou desilusões, nesse ritmo percebemos nossas culturas nos fazendo pertencer a esses territórios. 

Fundar um território e lhe dar um nome, a partir daí, criar, aos poucos, o sentimento de identidade em quem lá habita, Taguatinga, Ceilândia, Núcleo Bandeirante, Gama, Guará, Recanto da Emas, Riacho Fundo, Samambaia, Sobradinho, Varjão, Itapoã, São Sebastião, Cruzeiro, Planaltina, Brazlândia, Noroeste, Santuário dos Pajés, Sudoeste, Vila Telebrasília, Vila Planalto, e suas subdivisões, e suas futuras conurbações, e suas futuras alterações, e todos os seus cruzamentos, vínculos, suas pessoas e seus sonhos, suas origens – não há lugar humano sem uma origem de sonho. 

Lima sugere e funda mitos criadores para cidades, como Taguatinga, tão ligada à Ave Branca, à Águia, a Tesourinha, lar de tantas gerações taguatinguenses. Aqui a sequência vertical de leitura, e o vazamento do requadro, a mescla entre o momento, a pirâmide que coincide com o horizonte, o topo como a luz solar de uma tarde dessa cidade do cerrado, o movimento de câmera, esse zoom in entre o topo, com o rosto da personagem, até o traçado das mãos colhendo a fragilidade das asas da ave. É nesse ritmo humano dos sonhos que Lima nos guia pela sua proposta de viver poeticamente essas cidades.

O artista se aventura nessa pegada, nessas quebradas, na HQ Lendas Inventadas. Guardando a distância que os ônibus, baús do asfalto, mantêm da abstração corbusiana de Costa, Lima Neto devolve a potência criadora, humana por excelência, do que seria a formação mítica e poética que envolve o nascimento – e o crescimento – de uma cidade. Porque uma cidade cresce – caoticamente –, mas apenas – e principalmente – pelo fato de que o número de habitantes aumenta. E, aqui, habitantes, para o artista – e para o humano – sempre vai ser a expressão dominante sobre a expressão “número”.

O diálogo entre a Ave Branca e o Tijolo é a base para alternar o celeste e o terreno – o céu ultrapassa o traço do arquiteto e se democratiza realmente no traço do sonhador –, o sonho e o concreto dessas cidades, esse passeio pela constelachão de sonhos das cidades não só inventadas, mas sonhadas, simbolizadas por personagens que marcam a contação de histórias – arte tão antiga – com a recente arte das HQs.

Entre a abstração e a vivência, Lima examina, Lima – stamina – percorre histórica e geograficamente a potência simbólica das quebradas, sabendo que o sonho da cidade é tão – ou mais – importante que a crua realidade – a cultura torna esse cru o cozido da arte. Simbólico, mas não iludido, simbólico que interpreta essa constelação em seu chão, essa constelachão de angústia dessas décadas de cidades inventadas.

Uma flor de concreto, desenhada em estilo de Cordel, talvez uma homenagem à Casa do Cantador, certamente um comentário ao que é tão fundamental para o que significa Ceilândia em si: um lar nordestino. O lar mais nordestino, no que tudo isso significa, na poesia delicada e musical da flor, na superação e força que representa a dureza do concreto, Ceilândia e sua história, seu caos e sua complexidade, homenageada e valorizada pelo traço do quadrinista, em sintonia com tantos significados artísticos que um lar nordestino pode dar.

A invenção não é uma diminuição de importância; inventar é celebrar o que temos de mais humano, a nossa própria capacidade de espanto diante da realidade concreta de que somos parte. É a partir de nossa leitura – de nossa cultura – do que vivemos que podemos criar e identificar símbolos, representantes do que temos como identidade enquanto compartilhamos o solo em que pisamos. Sem esse solo, não alçaríamos nossos voos, não haveria arte.

A escala e a localização descentralizada, desbrasilianizada, despatrimôniodahumanidadezada do popular Chifrudo, sua ousada popularização e parentesco paradoxal com a Maria Martins das águas do Palácio da Alvorada; Lima brinca e propõe antropofagicamente um Solarius louisXVImístico ambivalente, simbolizando uma caminhada retirante. No jogo simbólico, no acúmulo de signos que o caosmos urbano de nossas cidades nos colocam como fundadoras de seu significado – e de seu futuro –, uma reflexão sobre a luta diária de tantas almas, de tantos sonhos, a percorrer o DF, a viver e trabalhar o DF.

As datas de inauguração destas cidades não significam um início do zero, um vazio frio para preencher buracos no concreto de uma força de trabalho, para girar as engrenagens, elas inauguram organizações que não prescindem de um caos mais antigo, mais antigo que os próprios sonhos. Um caos que desterritorializa, massas de trabalhadores que, chamados de várias partes – notadamente do Nordeste – formam famílias da periferia, que, longe de serem massas amorfas de força de trabalho, trazem seus signos e suas forças, sua poética, e, daí, se pode pensar essas comunidades, essas travessias, esses prédios e as vidas ali abrigadas – ou refugiadas –, suas narrativas.

Falar – ou criar obras de arte – sobre o DF é refletir sobre o fluxo de massas trabalhadoras que nos forma enquanto povo, enquanto povos, saber da trajetória de luta, da resistência dessas famílias. Entender que o DF é o resultado dessa conjuntura opressora que reuniu retirantes nesse desafio que é construir a capital é saber que os sonhos que formam as tantas cidades do DF são os sonhos dessas famílias, suas esperanças e desilusões – e seu futuro.

A importância da HQ Lendas Inventadas é significativa para as pessoas do DF, os povos e grupos que se reúnem nesses territórios. Pensar e criar sobre as possibilidades simbólicas desses territórios é um reconhecimento e uma valorização de sua luta diária, no campo material e no do sonho, nessa constelachão frenética, nesse emaranhado de rios de asfalto e blocos de concreto e aço que são caosmos e lar para esperanças e desilusões. E a HQ trata de necessidades tão reais por meio do ritmo e música tão necessários para a tão milenar tradição da contação de histórias. Contar histórias é abordar o essencial de maneira atrativa, de maneira a envolver quem escuta, quem lê – tanto as imagens quanto as letras da HQ –, nesse momento de simultaneamente estar na obra quanto em seu entorno, no passar de páginas e no passar dos dias. Estar na HQ e nas cidades do DF, porque somos seres concretos e de sonho, somos o humano por excelência, e essas são as nossas cidades, e como as cidades devem estar contentes de serem retratadas e sonhadas assim pela sensibilidade e perspicácia de um quadrinista.

A HQ Lendas Inventadas, de Lima Neto – com a participação de James Figueiredo –, teve sua primeira edição publicada em 2021 pela editora MMarte e produzida pela Diferente Arte, e contou com o Apoio do Fundo de Arte e Cultura – FAC, do DF.