As 31 melhores leituras da Raio Laser em 2018

Direto ao ponto, porque esse post é uma "long and winding road". Quem segue a Raio Laser sabe que nosso "best of" de fim de ano corresponde às melhores leituras em quadrinhos, de qualquer época ou nacionalidade, realizadas no decorrer dos últimos 12 meses. Como a Raio é um bicho solto, cada escriba faz a sua lista do jeito que quiser, isso se quiser fazer. Para a lista de 2018 três colaboradores se habilitaram. Eu, Márcio Jr. e Marcos Maciel de Almeida. Márcio e Marcos fizeram listas com dez títulos. Marcos colocou em ordem. Eu fui fominha e fiz 11 títulos. Eu e Márcio não colocamos em ordem. Tem de tudo aí nesse balaio: lançamentos, quadrinho nacional, BD, mangá, erótico, comics, romance gráfico, fumetti, era de ouro, etc. Para se ir lendo em partes, mas para se ler inteiro! Até 2020! (se tivermos mundo em 2020). (CIM)

Edições anteriores do nosso Best Of:

Melhores quadrinhos lidos em 2017 - Parte 1

Melhores quadrinhos lidos em 2017 - Parte 2

Melhores quadrinhos lidos em 2017 - Parte 3

Melhores quadrinhos lidos em 2017 - Parte 4

Best of da Raio Laser: melhores leituras de 2016

Bons quadrinhos que lemos em 2015 - Parte 1

Bons quadrinhos que lemos em 2015 - Parte 2

Bons quadrinhos que lemos em 2015 - Parte 3

Bons quadrinhos que lemos em 2015 - Parte 4

por Ciro Inácio Marcondes, Márcio Jr. e Marcos Maciel de Almeida.

HELL AND HIGH WATER: lista do Ciro Inácio Marcondes

Insira aqui algumas linhas sobre dificuldade de conciliar leituras, compromissos profissionais, outras coisas e depressão pós-2018. De resto, quadrinhos fodas salva-vidas por aí. (CIM)

A Chegada

– Shaun Tan (Edições SM, 2011 [2006]): Este livro é uma das mais arrebatadoras obras em quadrinhos jamais feitas, e digo isso sem qualquer medo de estar exagerando. O australiano Shaun Tan constrói – a partir de uma arte a lápis realista e ao mesmo tempo carregada no steampunk – espécie de alegoria/metáfora exata entre a condição do imigrante na primeira metade do século 20 e um mundo de opressão imaginado como ficção científica. A arte muda procura informar os próprios limites da comunicabilidade nas áridas condições de vida deste lugar implacável, monumental e frio como vento polar. A narratividade é sutil e soft, com requadros grandes que nos fazem entrar numa floresta de detalhes. É comovente, cheio de estupor e beleza humanista. Um dos quadrinhos mais universais de que se tem notícia. Mais aqui.

Coleção Histórica Marvel – Os Defensores – Vol. 2

– Stan Lee e Steve Ditko (Panini, 2016 [1963-1966]): Vamos lá. Não tinha como faltar Lee/Ditko nesta lista considerando que ambos morreram (estranha operação do destino) em 2018. Na verdade, a menos comentada morte de Ditko me levou ao primeiro run do Dr. Estranho, no início dos 60’s. Na real, são aventuras pulpescas infladas por jargão new age pé inchado. Coisa do moralismo barato e meio canalha de Lee, o que na verdade torna a coisa imensamente divertida e sempre boa de se revisitar. Porém, a despeito da ambiguidade do “Cara”, a arte de Ditko aqui se mostra visionária, lisérgica e muito influente. Em seu arsenal se encontram recursos de cinema mudo, de visões psicotrópicas, de tecnologias ocultas. Fala-se muito no imagética de Kirby, mas a proposta de iconografia que Ditko impõe ao Dr. Estranho com certeza não fica atrás. Mais aqui e aqui.

Bone – O Vale ou Equinócio Vernal

– Jeff Smith (Todavia, 2018 [1991-1995]): A beleza de Bone, ainda que seja um quadrinho com séria pretensão de refletir sobre a vida em geral, não está em sua mensagem, mas na maneira com que trabalha perfeitamente (na exata medida entre a homenagem e o reprocessamento) as suas influências. Carl Barks e Walt Kelly são as principais, mas também há uma impressão forte de Al Capp, Herriman, Peyo. A saga de Jeff Smith é um monumento – de muito forte impulso narrativo – ao despojamento e à capacidade crítica do quadrinho clássico. Uma sacada e um tipo de metalinguagem que quadrinistas de hoje em dia não têm capacidade de fazer. De quebra, é uma história interminável e linda, cheia de emoções e surpresas, tudo temperado com técnica e criatividade de primeiro nível. Uma perfeita jornada do herói. Mais aqui.

Blade, a Lâmina do Imortal

– Edições 01-09 – Hiroaki Samura (Conrad, 2004 [1994-1999]): Com a “missão” de ver o filme (não tão cultuado) do bizarro Takashi Miike adaptando a obra de Hiraoki Samura, fui atrás destas ótimas ediçõezinhas da Conrad (thanx Hocus Pocus) e pude ler uma parte substancial da saga do vampiresco samurai sem regras de Blade. No começo fiquei entediado com a repetitividade das histórias, mas logo percebi que se tratava de um processo cujo fim era refletir sobre a condição da imortalidade. Como em todo seinen, há tolices de ordem erótica e humorística (algo da própria dicção em quadrinhos do mangá moderno), e os personagens oscilam entre visões de mundo até sofisticadas e outras retardadamente juvenis. Porém, diante da arte estupeficante de Samura, quem se importa com a cor fantasiosa nos contornos da saga? Mestre especialmente do lápis, o mangaká zoeiro ilustra e narra com a segurança de um veterano (o que não era na época), investindo na pungência das linhas, expressões, gestos e movimentos. Uma arte sólida, capaz de hipnotizar adolescentes mangazeiros e de tirar a tranquilidade de velhos ranzinzas como eu. Mais aqui.

A Arte de Charlie Chan Hock Chye

– Sonny Liew (Pipoca e Nanquim, 2018 [2015]): Percorra – dentro de uma apropriada sincronicidade – ao mesmo tempo a barra-pesada trajetória da ilha de Singapura, a história recontada da própria mídia dos quadrinhos, e também o percurso do maior quadrinista deste país, um personagem totalmente fictício.

A Arte de Charlie Chan Hock Chye brilha em sua potência plurivocal, sua capacidade de dizer muito, e dizer denso, e ao mesmo tempo ser um gibi lustroso e atraente, engenhosamente ilustrado em suas referências, e carregado de anedotário visual, textual, pictórico. O quadrinista malaio não poupou ambição ao elaborar um romance gráfico tão cheio de reentrâncias que me lembrou automaticamente o alcance estilístico de Maus e Watchmen, tornando este lançamento do Pipoca e Nanquim uma espécie de clássico instantâneo. Fica aqui também o registro da grande qualidade e crescimento da editora, que tem lançado títulos peso-pesados, muitos que poderiam também figurar nesta lista. Mais aqui.

Sem Volta

– Charles Burns (Cia. das Letras, 2018 [2010-2014]): A publicação de Sem Volta ajuda a preencher lacunas, no Brasil, de um dos quadrinistas mais influentes da atualidade: Charles Burns traz aqui um pesadelo pessoal, intimista e memorialístico, que nada deixa a dever àquela que é considerada sua obra-prima (Black Hole). Fossem uma banda de rock, as HQs de Burns seriam uma mistura dos Smiths com os Pixies e o Pavement. Ou seja: algo genuíno, carregado de sentimentos obscuros e um apelo à avant-garde. Originalmente uma trilogia, este quadrinho também traz narrativas paralelas, uma de cunho realista e outra numa fantasia que lembra um Moebius ainda mais macabro. Ambas se cruzam em reminiscências angustiantes que acompanham o aniquilamento de nossas experiências da juventude nas decisões erradas que tomamos. Coisa densa, de gente grande. Mais aqui.   

Thorgal: A Feiticeira Traída – A Ilha dos Mares Gelados – Les Archers

– Van Hamme e Rosinski (VHD Diffusion, 1983, 1983 [1980, 1980]; Les Editions Du Lombard, 1999 [1985]): O espetacular entrosamento entre o roteirista belga Jean Van Hamme e o ilustrador polonês Grzegorz Rosinski já havia me impressionado em O Grande Poder de Chninkel, e logo resolvi encarar a empreitada mais clássica e longeva da dupla – o incontornável Thorgal. Li logo os dois primeiros volumes da saga, ainda incipientes e juvenis, que tracejam os pontos básicos e os personagens-chave da longa história (que até 2018 contabiliza 36 volumes). O conteúdo é ainda precipitado, um tanto desequilibrado e rasteiro, mas cheio de brilho nas vívidas ilustrações, e com grande potencial. O jogo vira quando encarei o nono volume, “Os Arqueiros”, em edição francesa, e o salto de qualidade é brutal. A história amadurece, ganha contornos psicológicos e sofisticação narrativa (baita influência de Príncipe Valente), com forte tensão entre os quadros, que atuam no limite do movimento. Rosinski também alcança seu auge: são ilustrações realistas carregadas de potência barroca, com expressividade que emana dos olhos de cada herói desenhado neste imaginário galáctico-viking. Obrigatório.

Slot-Barr

– Ricardo Barreiro e Francisco Solano-López (Colihue, 2009 [1977]): Uma pequena viagem à Argentina me fez voltar com malas cheias de clássicos desta incontéstil escola de quadrinhos. Li muita coisa legal, mas nada me impressionou tanto quanto esse grosso volume contendo todo o Slot-Barr, uma maravilhosamente bem escrita e ambientada space-opera dos anos 70, ilustrada pelo viril (!) Solano López, lendário desenhista do Eternauta. Os textos ficam ao encargo do ótimo roteirista Ricardo Barreiro, especializado em ficção científica. Que paulada, bicho! Esse quadrinho saiu primeiro na Europa e só foi recuperado, na Argentina, recentemente, com essa edição da “colección narrativa dibujada”, da Colihue. Slot-Barr é um astronauta mediano e meio boçal que tem sua inteligência e percepção intensificados por um alienígena disforme que “aterrissa” no seu cérebro, criando uma perturbadora simbiose e salvando sua vida. Algo como se o Lanterna Verde fosse algo legal. Impérios galácticos estilo Fundação, de Asimov, e uma rica fauna de aliens e situações pitorescas, associadas ao traço genial e quase neandertalesco de Solano López, fazem de Slot-Barr uma das HQs sci-fi mais originais e instigantes que já li, superior a muitos pioneiros europeus da mesma época. 

XIII – Le Jour Du Soleil Noir – Là Où Va L’Indien...

– W. Vance e Van Hamme (Dargaud, 1999 [1984 e 1985]): Mais Van Hamme por aqui (gênio absoluto), mas o motivo desta inclusão é também fazer uma homenagem ao ilustrador belga William Vance, falecido em 2018. XIII, a longeva série de espionagem finalizada em 19 álbuns, é um dos maiores êxitos da BD franco-belga. A arte minuciosamente realista de Vance, em belas cores saturadas e paisagens cheias de grafismos, aplica um tom imponente ao intrincado e misterioso roteiro de Van Hamme, com um monte de reviravoltas num clássico esquema conspiratório envolvendo perda de memória, o assassinato do presidente dos Estados Unidos e um macho alfa encurralado. Clichê do bem. Solid rock. Mais aqui.

O Idiota

– André Diniz (Cia. das Letras, 2018): Na minha opinião, a adaptação do monumento dostoievskiano

O Idiota, feita por André Diniz, foi a melhor publicação brasileira de 2018. A coragem do homem foi quase irresponsável: ilustrar uma adaptação muda de uma vaca sagrada excessivamente verborrágica da prosa do realismo novecentista. A verdade é que a simpatia do traço amigável de Diniz, muito inspirado no cordel, somaram à visão lacônica e estupefata que Míchkin, o “idiota” e personagem principal do livro, lança sobre uma sociedade russa corrupta e hipócrita. Diniz se priva das palavras para se valer da expressão dos olhares e de uma estética visual que nos transporta para um imaginário físico do mal-estar dostoievskiano. De fato, não é fácil reinventar o grande autor russo. Palmas para André Diniz. Mais aqui

A Vida É Boa, Se Você Não Fraquejar

– Seth (Mino, 2018 [1993-1996]): Chamar este livro do canadense Seth, escrito no início dos anos 90, de obra-prima não é exagero. Influente, ele ditou tendências nos romances gráficos (como o daydream impressionista a respeito de suas próprias ideias). Sofisticado, utiliza técnicas de decupagem cinematográfica para sequências melancólicas, oníricas. Literário, possui um dos textos mais poéticos e ao mesmo tempo filosóficos dos quadrinhos. Seth aparece aqui como um nódulo que faz florescerem galhos do quadrinho contemporâneo, ajudando fortemente a sedimentar a tendência pela autobiografia no romance gráfico, algo que deixou o meio ainda mais distinto e especializado. Isso criou até um estereótipo atual: o quadrinista excêntrico, peixe fora d’água e fora de época, que transforma sua vida numa espécie de performance ilustrada de suas excentricidades. Neste sentido, 90% dos quadrinistas indie são devedores de Seth e de sua maior influência, Crumb. Mais aqui.

HELL BENT FOR LEATHER: lista do Márcio Jr.

2018 entrará para a História como um ano de trevas. Não que seja um grande consolo, mas pelo menos tivemos os quadrinhos para nos ajudar a segurar a onda até aqui. Então, além do inquestionável Angola Janga do Marcelo d’Salete, a lista das minhas dez melhores leituras do ano é essa. Sem hierarquias, lógico. (MJR)

Baiacu

(Todavia, 2017): Editada pelas legendas Laerte & Angeli – com a retaguarda devidamente protegida pelo ninja Rafa Coutinho –, a pretensiosa Baiacu parece não ter atraído a atenção merecida. Uma pena, pois o invocado projeto reuniu um time de primeira (Fabio Zimbres, Eloar Guazzelli, Power Paola e outros de mesmo calibre) para criar um tratado de experimentação quadrinística. Destaque para o suplemento Pirarucú, do onipresente Diego Gerlach – que ao longo do ano nos ofereceu algumas das mais instigantes HQs veiculadas no país. Loucura boa.

Revisão

- Marcos Farrajota (Associação Chili Com Carne, 2016): O incansável guerrilheiro punk dos quadrinhos portugueses chamou para si a responsabilidade de celebrar os 40 anos da seminal e revolucionária revistaVisão. Em edição primorosa, Revisão compila o melhor dos parcos 12 números do magazine original, apresentando uma produção radical e sintonizada com o que havia de mais interessante no panorama mundial da época. Lisergia lusitana.

Príncipe Valente - Vol. I

– Hal Foster (Pixel, 2016): É uma vergonha, mas devo confessar: apesar de ter uns tantos volumes em minha coleção, jamais havia lido pra valer a obra máxima de Hal Foster. Não foi surpresa alguma a arte acachapante – aqui valorizada pelas cores originais –, mas sim o fato que a narrativa segue viva e contagiante, mesmo passadas oito décadas da primeira publicação. Clássico e maravilhoso. 

História de O

– Guido Crepax (L&PM, 1988): O mestre do erotismo Guido Crepax parece ter nascido para se apropriar e transubstanciar a transgressora obra de Pauline Réage. Perversão, sadismo, submissão, prazer. Leitura difícil em tempos fascistóides.

Ghita: An Erotic Treasury

– Frank Thorne (Hermes Press, 2016): Se Crepax é um mestre do quadrinho erótico europeu, Frank Thorne pode ser considerado seu equivalente norte-americano. Após o estrondoso sucesso na Marvel com Red Sonja, Thorne partiu para campos mais liberais e criou sua própria guerreira sacana, Ghita of Alizarr. A edição da Hermes Press segue os preceitos das Artist Editions: páginas escaneadas diretamente dos originais e publicadas no formato em que foram produzidas. Dá para ver o prazer escorrendo pelo papel.

Chapa Quente

– André Kitagawa (Atrito Art, 2006): Pérola obscura do quadrinho brasileiro, o livro compila sete pedradas urbanas do paulista André Kitagawa. A vida é dura nas quebradas.

Coleção Histórica Marvel - Mestre Do Kung Fu - Vol. 1 a 4

– Doug Moench, Paul Gulacy e outros (Panini, 2018): A Marvel dos anos 70 é um dos ápices criativos do quadrinho mainstream norte-americano. Passei o ano lendo coisas legais como o tresloucado retorno de Jack Kirby à Casa das Ideias com seu Capitão América: A Bomba Enlouquecedora; o furioso Pantera Negra de Don McGregor; e o histriônico Howard, o Pato, de Steve Gerber. Descobri que o Hulk da dupla Bill Mantlo / Sal Buscema não é muito mais que nostalgia. Mas no quesito super-herói das antigas não tem pra ninguém: o melhor de 2018 foi a republicação do seminal Shang Chi, o Mestre do Kung Fu. Doug Moench é um dos maiores roteiristas do período. Aliado a Paul Gulacy – discípulo fervoroso de Jim Steranko – a coisa fica séria. Mistura perfeita de James Bond e Bruce Lee. A segunda caixa já está nas bancas. Tomara que a Panini consiga chegar à fase do único rival à altura de Gulacy: o saudoso Gene Day.

Elektra Vive

– Frank Miller e Lynn Varley (Panini, 2017): Inexplicavelmente fora de catálogo desde 1991, Elektra Vive é a prova cabal – principalmente para os leitores mais jovens – de que Frank Miller era, indiscutivelmente, um gênio das HQs. Aqui, ele está no auge – tanto no desenho e na narrativa quadrinística, quanto em sua simbiose com a colorista (e então esposa) Lynn Varley. Ressuscita, Miller!

Dylan Dog nº 3: MATER MORBI

– Roberto Recchione e Massimo Carnevale (Lorentz, 2017): Meu Bonelli do ano foi, sem dúvida, este novo clássico de Dylan Dog. Palmas para a Editora Lorentz, que realizou um excelente trabalho ao trazer o Detetive do Pesadelo de volta às bancas do país – até ter o seu tapete puxado pela Mythos. 

Antes do Incal - Vols. 1 a 3

– Alejandro Jodorowsky e Zoran Janjetov (Devir, 2007 a 2008): Em nova e alucinante trilogia, Jodorowsky traça a vida de John Difool antes dos eventos relatados na antológica série O Incal. Com dignidade mediúnica, um jovem Zoran Janjetov substituiu a divindade Moebius. Pena que a Devir optou pelo apelo fácil das tenebrosas cores photoshopadas, ao invés da paleta original. Imperdoável. E ainda assim, imperdível. Taí outra leitura que ganha dimensões distintas em tempos de arminha com as mãos.

HELL'S BELLS - lista do Marcos Maciel de Almeida

Algum filósofo de botequim uma vez me disse que “da quantidade, se extrai a qualidade”. Se essa máxima for verdadeira, talvez seja por isso que foi tão difícil montar essa lista de dez melhores leituras de 2018. Não porque tenha sido um ano de poucos lançamentos interessantes ou porque não haja bons materiais na minha estante me esperando, mas pelo simples fato de que o tempo está teimando em ser cada vez mais escasso, inexistindo horas minimamente suficientes para me dedicar à leitura de gibis. Paciência. Não se pode ter tudo, já cantaram os Rolling Stones.  

Aqui na Raio Laser costumamos colocar listas de melhores leituras sem ordem de preferência. Neste ano vou fazer diferente. A lista a seguir está na ordem crescente em relação ao prazer proporcionado. Enjoy. (MMA)

10) Sunny - Vol.1

- Tayio Matsumoto (J-Pop, 2013): Um misto de orfanato e escola japonesa cuida de crianças que têm pais que moram muito longe ou que simplesmente não se importam mais. E Sunny é um veículo abandonado nas imediações que serve como refúgio para os funcionários e clientes da instituição. Quando entram nele, todos dão vazão a seus anseios mais profundos, como que dirigindo o carro na busca por sonhos já esquecidos ou apenas por mero escapismo. A partir dessa premissa, Tayio Matsumoto nos faz conhecer o inconsciente de personagens interessantes e tridimensionais, cujas agruras e conflitos internos vão fazer com que ciscos caiam automaticamente nos olhos de leitores desavisados. 

9) Anuí

– Lelis (Independente, 2017): A história sobre o conserto da caixinha de música de Alice, de autoria do talentoso quadrinista mineiro Lelis, é contada com sensibilidade invejável. Aliando complexidade em cenas simples – ou seria simplicidade em cenas complexas? – ele não economizou esforços para entregar quadros belíssimos, quase hipnóticos. Em cada pedra, ruela e personagem do vilarejo desse gibi é possível vislumbrar nossa brasilidade latente, quase que esculpida por pinceladas simultaneamente vigorosas e leves. Mais aqui

8) Minha Vida Mal Desenhada

– Gipi (La Repubblica, 2018): Grosso modo, pode-se resumir as obras do quadrinista italiano Gipi em três tipos: álbuns com temática mais séria, como A Terra dos Filhos (Veneta, 2018); histórias curtas; e narrativas de caráter autobiográfico/experimental. Minha Vida Mal Desenhada é um exemplo do último caso. Mistura passagens da juventude do autor e diversos interlúdios e digressões, numa narrativa que se assemelha a um fluxo de pensamentos. A opção por este tipo de roteiro foi acertada e coroada por escolha gráfica feliz: o intercalamento de capítulos coloridos com outros em PB que, entre outras inferências, transmite a ideia da confusa sucessão de fases da vida do autor. Esta sequência caótica certamente se originou dos problemas pessoais do autobiografado. Relação conturbada com drogas, dificuldade em aceitar suas tendências homossexuais e por aí vai. Gipi não tem medo de se expor e de se expressar. A obra é um convite para mergulhar no turbilhão de emoções e pensamentos que se acotovelam na mente do autor. 

7) 120, Rue de la Gare

– Jacques Tardi (Casterman, 1988): Falar bem do trabalho do francês Tardi é chover no molhado. Não satisfeito em ser o responsável por clássicos como Era a Guerra de Trincheiras e O Grito do Povo, esse gaulês irredutível ainda nos deixou essa incrível série de álbums do detetive Nestor Burma, iniciada com Brumas sobre a Ponte de Tolbiac (Zarabatana, 2012) e seguida desse 120, Rue de la Gare. Para quem não sabe, o personagem foi originalmente criado pelo também francês Léo Malet em 1942, sendo considerado o primeiro detetive privado da literatura policial francesa, gênero mais conhecido por aquelas bandas como “Polar”. A popularidade de Burma é tamanha que inspirou filmes, série de TV e até peça de teatro. O gibi – não poderia ser diferente – é uma grande homenagem à literatura do gênero. E claro, teremos mistério, mulheres fatais, assassinatos e reviravoltas até a última página, mas tudo isso feito com uma elegância e frescor que só os grandes mestres da nona arte conseguem oferecer. 

6) Partie de Chasse

– Pierre Christin e Enki Bilal (Casterman, 2006): Cansado de ler gibis do Bilal e fingir que entendeu só para não passar vergonha? Seus problemas acabaram! Brincadeiras à parte, sempre tive dificuldades em compreender o ponto – se é que existe – nas histórias roteirizadas pelo artista sérvio naturalizado francês. Claro que sempre rola muita doideira intencional e isso é muito massa, mas confesso que às vezes preciso de um mínimo de lógica para me entreter de verdade. Por isso acho que a parceria com o escritor Pierre Christin fez muito bem para o quadrinista, como ficou claro nas obras As Falanges da Ordem Negra (Meribérica, 1979) e Exterminador 17 (Meribérica, 1989). E um dos pontos altos dessa dupla é justamente este Partie de Chasse. Aqui a arte de Bilal parece atingir seu apogeu, com traços certeiros. Seus personagens estão lindamente desenhados, alcançando um fino equilíbrio entre a leveza e a densidade.

E o argumento não fica atrás. Partie de Chasse narra a história de um dos encontros anuais de dirigentes da União Soviética. Cada um deles oriundo de países vassalos do gigante comunista ou do COMECON (Conselho para Assistência Econômica Mútua). E o líder e anfitrião, claro, é russo. O objetivo da reunião é realizar a tradicional caça ao urso, mas tudo aqui funciona como sutil metáfora para ilustrar a complexa metodologia – frequentemente brutal e explícita – empregada pela URSS para manter o controle sobre os Estados satélites. A interatividade entre os membros do grupo é um dos grandes chamarizes da estória e revela um pouco da dinâmica entre os países do bloco socialista durante a Guerra Fria. O momento mais marcante ocorre após o assassinato de um dos participantes. A forma pela qual o pretenso culpado é acusado e punido revela bastante sobre as formas utilizadas por Moscou para assegurar a prevalência de seus interesses, que terão de ser observados custe o que custar.

5) Um Pedaço de Madeira e Aço

– Christophe Chabouté (Pipoca & Nanquim, 2018): Este catatau de 340 páginas foi uma das leituras mais fluidas que já tive o prazer de desfrutar. Não porque seja um quadrinho sem balões e recordatórios, mas pela habilidade com que o francês Chabouté teve para contar as diversas situações que se desenrolam ao redor de um simples banco de madeira e aço localizado em uma cidade qualquer. É uma ideia simples, mas que ninguém teve antes. O resultado é magistral. Mais aqui.

4) Ken Parker: Faccia di Rame “Rosto de Cobre”

– Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo (Sergio Bonelli Editora, 1977): Nós, leitores, às vezes não temos noção de como somos sortudos em diversos aspectos. Se pudesse mencionar um deles, diria sobre como somos privilegiados em ter milhares de páginas de Ken Parker para ler, a grande maioria delas desenhadas por Ivo Milazzo. Esse piemontês endiabrado tem as manhas de fazer o difícil parecer fácil. Tem tamanho domínio do desenho que parece desferir apenas pinceladas certeiras. Nada sobra ou falta. É quase como se sua mão fosse conduzida por uma inteligência artificial que preenche cada espaço de papel com precisão milimétrica. 

Mas uma andorinha só não faz verão e Milazzo sempre contou com o mais que competente auxílio do parceiro Giancarlo Berardi. E dentre as inúmeras histórias do anti-cowboy Ken Parker que a dupla nos brindou, tive a sorte de me deparar com essa “Cara de Cobre”, espécie de homenagem ao mito moderno do “Último dos Moicanos”. 

Ishi é o único sobrevivente de sua tribo indígena e acaba sendo acolhido pelo xerife da cidade. A generosidade do chefe da lei não pega bem com os habitantes, cegos em seu ódio de enxergar aqueles que são diferentes como fonte de suas próprias mazelas. (Coisa impensável nos tempos atuais, não é mesmo?). O sequestro de uma garçonete funciona como catalisador para a raiva dos moradores, que partem numa cruzada para fazer Deus sabe o que com o indígena. Paro aqui para não dar spoilers, mas não posso deixar de mencionar a sequência genial na qual Ken Parker e o xerife partem em busca dos verdadeiros criminosos enquanto a turba ensandecida tenta linchar Ishi. Ação vertiginosa ocorrendo de forma simultânea e intercalada, sem pausa para explicações nem recordatórios. Só lendo para crer. Imperdível.

3) Já Era

– Felipe Parucci (Lote 42, 2017): Quem nunca teve vontade de chutar tudo para o alto e recomeçar do zero? Esse é um dos motes desta interessante HQ brasileira. Regina é uma garota descolada que trabalha numa agência de publicidade. Num belo dia, se dá conta que está de saco cheio de tudo e decide partir para outra. A partir de então sua vida se torna palco de uma sucessão de eventos surreais que culminam em sua abdução e consequente contato com seres de outros planetas. Com pitadas autobiográficas e cheia de ironia, Já Era é uma obra cativante, especialmente em razão de sua beleza estética e despretensão. O que mais me atraiu, entretanto, foi o senso de humor de Parucci, bastante espirituoso e mordaz. Os momentos em que me peguei caindo na gargalhada foram inúmeros. 

A obra tem um estilo próprio e autêntico, bastante peculiar. Felipe foi bastante feliz em puxar seu traço para um aspecto mais cartunesco, mas nem por isso simplista. Extremamente bem cuidada, a HQ é repleta de detalhes bacanas. Um deles é a língua utilizada pelos extraterrestres. Parucci se deu ao trabalho de inventar um idioma alienígena que contribuiu para dar um clima de estranhamento à trama, nos aproximando das sensações de não pertencimento que Regina deve ter sentido ao travar contato com os aliens. Verdade seja dita, a história funciona como pano de fundo para que Felipe possa disparar uma metralhadora giratória de críticas aos hábitos de nossa sociedade contemporânea, extremamente egoísta e consumista. Mas não tem problema. Você vai saborear esse manifesto com um sorriso nos lábios.

2) Black Dog: Os Sonhos de Paul Nash

– Dave McKean (Darkside, 2018): Na minha modesta opinião, este foi o grande lançamento da Editora Darkside no ano passado. A obra original surgiu de uma solicitação feita por uma fundação inglesa a Dave McKean, e foi encomendada para coincidir com o centenário da I Guerra Mundial. Black Dog é uma espécie de biografia do pintor Paul Nash, que serviu durante o conflito, tendo retornado para casa após um acidente. Essa experiência no front, claro, foi bastante marcante para o ex-soldado britânico, que passou a retratá-la em belíssimas e impactantes obras de arte. Uma das boas sacadas de McKean foi contar a história num formato diferente, intercalando a narrativa com capítulos contendo os sonhos de Paul Nash. E mais genial ainda foi alterar o estilo da arte em cada um desses interlúdios, usando um arsenal de técnicas como colagem, desenho à mão livre, pinturas e recortes de fotografias. 

É aquele gibi que você sabe que terá de reler várias vezes para conseguir obter a experiência completa. A sensação durante a leitura é semelhante aos instantes seguintes ao despertar de um sonho. É como tentar se recordar de todos os detalhes daquele momento fugaz, buscando guardar na memória as imagens que estão rapidamente se esvaindo por nossos dedos. Dave McKean chegou a afirmar em entrevistas que sua intenção ao fazer a obra era justamente essa. E a missão foi cumprida, com louvor.  

E o tal Black Dog do título? Bem, essa aí é uma das grandes questões do gibi. O fato é que o animal aparece em várias cenas, atuando como uma espécie de misterioso fio condutor. Pode ser que ele signifique a depressão pós-traumática de Nash oriunda de sua participação no conflito. Ou ainda o sentimento de impotência diante dos fatos que se desenrolaram entre 1914 e 1918. Há quem acredite que o cachorro represente a guerra em si. Pode ser que não seja nenhuma dessas coisas. Cabe a você descobrir.  Não que isso seja importante. Black Dog, sem dúvidas, é uma daquelas experiências em que a viagem per se já vale mais que a própria estadia. 

1) Uzumaki (Devir, 2018) e Fragmentos do Horror

(Darkside, 2017) – Junji Ito: Quem consome filmes, livros e HQs de terror japonês percebe que há algo seriamente errado com nossos colegas nipônicos. Os dois gibis em questão não são exceção a essa regra. Talvez a visão diferenciada dos asiáticos sobre a vida e outras cositas mas faça com que suas histórias de violência e medo pareçam mais terríveis que o normal. Afinal, se a brincadeira com os mundos do além já é por si mesma sórdida e macabra, o que se poderia dizer dos sonhos de terror proveniente dos filhos da Terra do Sol Nascente, rotulados por muitos ocidentais como sendo quase uma raça alienígena? Exageros à parte, pode-se dizer que Uzumaki e Fragmentos do Horror mantêm a tradição de provocar estranhamento e desconforto nos incautos leitores que se aventuram por suas páginas. Muitos apontam Uzumaki como sendo a obra-prima de Junji Ito. Eu também faço coro a estas vozes. É um álbum massivo e fenomenal, muito bem planejado. Tem uma história aparentemente simples, mas que dá margem para inúmeras abordagens. Num belo dia, numa cidadezinha do interior do Japão, as pessoas começam a ficar obcecadas por espirais, que passam, gradativamente, a influenciar e enlouquecer as pessoas das maneiras mais tresloucadas que você puder imaginar. Junji começa a história devagar, oferecendo pequenos bocados do que a trama irá oferecer. Os primeiros capítulos, com casos isolados de influência da espiral são apenas o tira gosto do que virá, porque, quando o caldo engrossa, a história resvala nos limites da loucura e do absurdo. 

Surrealismo é pouco para definir pessoas que se transformam em caramujos, botam o cabelo para brigar, aprendem a cavalgar furacões e até a moldar o próprio corpo em formato de espiral. Ademais de sua capacidade em materializar em nanquim e papel todas as esquisitices que habitam seu inconsciente, Ito revela-se um mestre na ambientação e condução do ritmo da história. Constrói uma narrativa que alcança um clímax surpreendente e lógico, com amarração de todas as pontas. Resumo da ópera: pura e bem vinda insanidade. Fragmentos do Horror também não fica atrás no quesito bizarrices. Como já diria Philip K. Dick, quando um autor escreve um conto, não há espaço suficiente para ficar embromando o leitor. O recado tem que estar ali, presente naquelas poucas páginas. Novamente Ito não decepciona. Suas pequenas histórias de terror são curtas na duração, mas têm o maldito hábito de ficar ressoando na cabeça do leitor durante semanas. Menção especial para duas histórias: “Monstro de Madeira”, um conto de pan sexualidade levado às últimas consequências e “Dissecação-Chan”, sobre uma garota que sonhava em ser dissecada viva.