Paralelas: Império x Imperdoável

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por Marcos Maciel de Almeida

O objetivo da seção Paralelas é tecer comparações entre dois gibis. A ligação entre ambos pode ser de qualquer tipo ou natureza. Pode, inclusive, não ter relação nenhuma. Se o raiuka (apelido carinhoso para os escribas da Raio Laser) da vez quiser falar sobre Luluzinha junto com Corto Maltese, por exemplo, não será admoestado pelos coleguinhas. Bem, para a coluna de hoje escolhi dois títulos que sempre tive grande curiosidade de ler: Império (Mythos, 2017) e Imperdoável (Devir, 2018), ambas do argumentista Mark Waid. O ponto de contato entre as publicações é o twist dado pelo autor nas clássicas histórias de super-heróis. Em Império temos uma realidade em que o vilão venceu. Já em Imperdoável encontramos um mundo no qual o Superman local perdeu as estribeiras e passou para o lado dos malvados. Quais seriam as semelhanças e diferenças entre as tramas? Será que as temáticas escolhidas têm fôlego para segurar o formato minissérie/série mensal? E, mais importante que isso, será que alguém ainda se importa com gibis de super-heróis?

 Império – Conquistar o mundo é fácil. O difícil vem depois.

Nesta realidade, o cruel Golgoth conseguiu derrotar todos os heróis e conquistar o mundo. Restou, portanto, governar o planeta com mão de ferro, escolhendo ministros e distribuindo cargos de confiança para poder assegurar a continuidade no poder. O vilão possui um semblante trágico, que remete a um passado de sofrimento. Assemelha-se bastante física e psicologicamente ao Doutor Destino. Essas características conferem-lhe enorme peso a cada momento em que está em cena.

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Apesar de ficar claro que se trata de um facínora, não é difícil que o leitor se flagre torcendo pelo protagonista, tamanha é a sensação de empatia que Waid consegue fazer brotar no sujeito. Mais do que isso, há um sentimento perene de acerto de contas esparramado pelo gibi, como se a vitória do vilão também fosse a de todos os personagens que tiveram de fazer esse papel, muitas vezes movidos pela força inexorável das circunstâncias. Desse modo, é como se Golgoth vingasse inúmeras gerações de malfeitores que – apesar de possuírem senso ético grandemente deturpado – agiram de acordo com suas convicções e foram punidos por estarem na contramão da moral vigente.

Império tem uma trama surpreendente, cheia de reviravoltas incríveis. Trata-se de entretenimento de alto nível. É delicioso assistir ao clima de desconfiança entre os personagens que – por diversas e nada altruísticas razões – querem desbancar Golgoth. Outro ponto interessante são os sórdidos bastidores da ascensão do vilão principal, gradualmente revelados pelo autor, que oferece migalhas de alpiste para os famintos pássaros (leitores) presos na teia do seu enredo.  E no momento em que finalmente começarem as descobertas sobre a fonte do poder de influência do vilão, ficará claro que existe algo muito podre adormecendo nos subterrâneos da cidade.

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Golgoth faz o típico vilão clássico dos gibis, ou seja, é mais um sujeito brilhante e arrogante que se esconde atrás de máscara e armadura altamente empolada. Waid, com a sutileza que lhe é peculiar, ironiza o paradoxo inerente a este tipo de personagem. Ainda que superpoderoso, tem a própria vestimenta como cárcere. Não pode tirá-la nem mesmo quando visita a filha, por motivos de segurança pessoal, porque não são poucos os que desejam eliminá-lo para usurpar seu posto. Ainda que tenha praticamente tudo, não usufrui de nada. A realização de seu sonho ensejou a própria maldição, como ocorreu com o Rei Midas da mitologia.

Barry Kitson, está (pasmem!) desenhando bem, coisa que nunca tinha feito antes na vida. Os trajes e uniformes dos personagens são fantásticos e demonstram que o veterano artista investiu bastante tempo no processo de criação do elenco. É isso aí, meu amigo decenauta, Barry mostrou que ainda tinha lenha para queimar e se regenerou de trabalhos medíocres como o horrendo JLA: Ano Um.

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Imperdoável – Quando o Superman roda a baiana

Nunca fui um grande fã do Superman. Seu excesso de bom mocismo e quase perfeição em todos os sentidos impedem que sinta empatia pelo personagem. Mas o principal motivo de meu baixo interesse é o fato de seus poderes o tornarem praticamente invencível. Quando vemos sua galeria de vilões, percebemos rapidamente que eles não dão nem pro cheiro. Enfrentá-los é tão desafiante quanto ir à padaria. Apesar disso, não ignoro a importância do azulão e sua influência no mundo dos quadrinhos, sentida principalmente pelo sem número de personagens inspirados em seu arquétipo. As réplicas do filho de Kripton, entretanto, sempre me pareceram mais interessantes que o original. Principalmente em razão da maior liberdade que os autores têm para brincar com as versões alternativas. Imperdoável não foge a esta regra.

A premissa de Mark Waid é bastante simples, mas poucas vezes bem utilizada. O que aconteceria se o Superman passasse para o outro lado? Como seria possível tentar derrotar um sujeito com atributos tão formidáveis? E – pior ainda – como vão fazer para se virar os demais heróis daquela realidade, todos com poderes de dar pena, pra enfrentar um Superman – aqui rebatizado de Plutoniano – fulo da vida e com requintes de sadismo? Aí sim. Isso seria uma trama bacana de se ver.

A narrativa ocorre por meio de flashbacks contados por cada um dos heróis que já foi membro do grupo do Plutoniano. É interessante observar como eles enxergavam o colega e como se deu o desenrolar dos fatos que culminaram em sua loucura, deserção e – finalmente – vilania. Ao invés de seguir a cartilha desse tipo de história e apresentar companheiros de equipe que são cópias do Batman, Flash e etc, Waid criou uma nova galeria de personagens, mostrando uma dinâmica de relações bastante espontânea, que não fede a mofo. 

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Um dos grandes deleites do gibi são os momentos em que Waid nos mostra sua interpretação para cenas clássicas do Superman, agora vistas pela ótica do Plutoniano. Lembra quando Clark revelou para Lois que era o Azulão? Bem, isso também acontece aqui, mas o resultado é bastante diferente. Quem adora a interação do casalzinho vai odiar. Quem sempre achou a relação meio sem graça certamente vai rir de nervoso.

Outra das boas sacadas de Waid é mostrar os poderes do herói contribuindo para seu gradual stress e posterior enlouquecimento. Imagine que – por conta de sua superaudição – o Plutoniano simplesmente não consegue deixar de ouvir pedidos de ajuda 24 horas por dia. É claro que seu senso de moral não permitirá que ele descanse enquanto houver um gatinho preso numa árvore no interior de Taubaté, mas esse excesso de bondade vai cobrar seu preço, pois não há ninguém – seja em Kripton, Plutão ou Terra – capaz de aguentar tamanha encheção de saco.  

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Intencionalmente, o Plutoniano é desenhado de forma similar ao Miracleman, talvez para lembrar o aspecto trágico inerente a seres superpoderosos que – por heroísmo ou covardia – foram responsáveis por atrocidades incomparáveis.

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 Convergências e divergências

Império e Imperdoável são gibis feitos para quem já manja de HQs de super-heróis. Tudo bem que neófitos também possam embarcar nessa aventura, mas a jornada será mais divertida para quem passou anos comendo o feijão com arroz da Marvel e DC. Para além da subversão da fórmula tradicional deste tipo de publicação, fica clara a intenção de Waid em construir um universo coeso e rico em possibilidades, baseado em premissas sólidas, como de hábito na trajetória deste competente escritor.

Ambas publicações são centradas em personagens com forte carga psicológica, desencadeada por eventos traumáticos. O retrato de ambos protagonistas é praticamente construído tendo por base relatos de terceiros, sendo quase residual o espaço para se autoexpressarem. Reinam, portanto, o mistério e a mera especulação sobre a motivação que os leva a acordar todas as manhãs para tocar a vida. Golgoth aparenta ser apenas mais um tipo ganancioso e sedento por poder, mas sua raison d´être é materializar a própria visão de mundo, ainda que – para conseguir isso – tenha que empurrá-la goela abaixo da população. Já o tesão do Plutoniano – enquanto herói – não era poder, mas a busca infrutífera por reconhecimento e admiração. Sem conseguir satisfazer suas pretensões, decide descontar a frustração no egocêntrico povo terráqueo, incapaz de expressar gratidão para com o herói que, durante décadas, atuou com incansáveis altruísmo e abnegação.

Outro ponto de contato entre as HQs é o enfoque no caráter solitário de personagens que alcançaram posições de destaque em suas realidades. Golgoth é dono de metade do mundo, enquanto que o Plutoniano é considerado o humano definitivo. Ambos teriam razões de sobra para se dizerem realizados, mas estão cercados de olhares desconfiados e temerosos. São, acima de tudo, prisioneiros de suas próprias fortalezas da solidão, erguidas com o suor de seu venenoso sucesso.

Sobre Golgoth recai o papel de ser o vilão capaz de gerar empatia, tamanha é a densidade trágica a ele emprestada por Waid. É o tipo de personagem que nos faz perguntar se não tomaríamos aquelas decisões, caso nos encontrássemos na mesma situação. Para o Plutoniano não foi reservada a honra do benefício da dúvida, muito pelo contrário. A cada página entramos mais fundo na alma de um personagem que foi tragado por uma onda de decadência construída pela própria incapacidade de lidar com as derrotas cotidianas. É a fábula do homem que achava que tinha tudo, mas que, ao descobrir-se imerso num mundo de ilusão, resolve deixar o ódio como seu legado para a humanidade, usando para isso todas as formas de crueldade disponíveis.

O gênero dos super-heróis morre um pouco mais a cada dia. O uso contínuo de fórmulas batidas, somado à boa e velha falta de criatividade, tem afastado leitores que possuam um nível razoável de inteligência. É por isso que projetos como Império e Imperdoável devem ser valorizados. Mark Waid merece uma salva de palmas por conseguir injetar sangue novo num tipo de gibi que chafurda na mesmice há décadas. HQs como essas mostram que o gênero dos super-heróis, embora ainda respire por aparelhos, segue vivo.

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