O CAVALEIRO DAS TREVAS DE GROO: COMO TRANSFORMAR UM IMAGINÁRIO DE IDIOTIA EM SOCIOPOLÍTICA - PARTE 2

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O texto a seguir dá continuidade às ideias comentadas na parte 1 e analisa as histórias Inferno na Terra (Hell on Earth, 2007/8 - publicada no Brasil pela Mythos em 2008) e A Grande Crise (Hogs of Horder, 2009/10, publicada no Brasil pela Mythos em 2010). Aqui, Groo encontra a pós-modernidade. É bastante importante ler a primeira parte. (CIM)

por Ciro Inácio Marcondes

Inferno na Terra

Um rei com traços de psicopata (Buco) se alimenta da indústria da guerra ao dar incentivo aos seus cidadãos para que construam mais e mais armas, o que faz com que volumes grandes de fumaça tóxica saiam dessas forjas e atinjam o reino vizinho. Bem, como a poluição vai para o território ao lado, ninguém se importa. Porém, o reino vizinho, vislumbrando uma guerra por causa disso, passa também a fabricar armas, aumentando a emissão de poluição e a tensão bélica. Percebendo esse movimento, Buco envia o um exército (curiosamente liderado por... Groo) ao território adjacente para intimidá-los.

A guerra está estabelecida, e é somente sobre isso que a população fala, é somente com isso que ela se preocupa. Porém, a poluição da fabricação de armas começa a atingir vários outros reinos numa reação em cadeia, fazendo com que geleiras no norte derretam, florestas queimem, rios sejam contaminados, etc., ameaçando todo o ecossistema do mundo de Groo. Porém, para a população, existe um risco mais iminente e que não pode ser contornado sem que seja encarado de frente, que é a própria guerra. Os efeitos do desequilíbrio ecológico fazem com que hordas de refugiados passem a invadir o reino de Buco, deixando a crise cada vez mais complexa e sem solução. Aliás, a solução é sempre culpar o vizinho, negar a crise ambiental e investir mais ainda na guerra. Parece algo que você já viu no mundo real?

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Inferno na Terra foi publicado pela Dark Horse entre 2007 e 2008, final da segunda era Bush, e claramente alegoriza uma primeira onda de discursos mais efetivos alertando sobre o aquecimento global (hoje mudança climática - quem não se lembra de Uma Verdade Inconveniente?, de Al Gore) e os efeitos da Guerra do Iraque (com suas consequências que desembocariam no Estado Islâmico). Buco representa o expansionismo e a motivação bélica norte-americanas no contexto pós-11 de setembro, na época em que o Bush filho era, para alguns setores da sociedade, a personalidade mais vilanesca a ser vilipendiada no mundo (afinal de contas, onde estão as armas químicas de Saddam?). Estes eventos vão ter efeito direto, inclusive, para a elaboração da próxima história, A Grande Crise. Tudo muito nefasto, obviamente. Mas, olhando para o que foi a era Trump, podemos até dizer que dá uma saudadezinha.

Na figura do irmão de Buco está Guco (dã), um príncipe de viés mais “progressista” que procura, em primeiro lugar (e necessariamente nesta ordem), tomar o trono do irmão e ocupar seu lugar político e, em segundo, diminuir a produção de armamentos e resolver a crise climática. Guco está para Gore como Buco está para Bush, e Evanier/Aragonés não se privam se criticar o interesse do príncipe em politizar a crise ambiental em benefício próprio. De certa maneira, Inferno na Terra representa uma ambição maior em toda a longa trajetória de histórias de Groo: os efeitos em cadeia do ataque à natureza são mostrados didaticamente na figura do Sábio em vários territórios, enquanto, por outro lado, vai-se delineando um argumento sobre como as guerras são sustentadas por hipocrisia e o velho hábito de jogar a culpa dos incidentes incitantes nos inimigos (false flag operation), gerando uma bola de neve especulativa de mentiras e desculpas esfarrapadas que levam a milhões de mortes e miséria.

Crise de refugiados no GROOVERSE! Que p@#$# é essa?

Crise de refugiados no GROOVERSE! Que p@#$# é essa?

Inferno na Terra vai crescendo em escala, e o próprio Groo aparece como general-coadjuvante fazendo patetices do tipo levar seu exército para a direção contrária, e combater seus próprios soldados. Alívio cômico dentro de uma muito bem sacada trama que puxa várias camadas e fios para construir um tecido sobre a ordem política do mundo que tem, na verdade, muito pouco de ingênua. É lógico que as situações absurdas e as exagerações típicas de uma história de Groo (fora as ótimas feições histéricas dos governantes desenhadas por Aragonés) estão lá para tornar tudo deliciosamente divertido, mas o que vai tomando nosso fôlego e nos surpreendendo durante a trama é a amarração bastante complexa desses motivos. Quando o paralelo claro com a vida real fica mais que evidente, a boca saliva, o coração bate mais forte. O cinismo e até pessimismo desta história não nos deixa negar: “estamos fodidos”, pensamos.

O que mais me surpreendeu foi a antecipação da epidemia de negacionismo, das notícias falsas, da ideia de que o ato de acreditar em qualquer merda é preferível a dar crédito à verdade atroz de que estamos destruindo o planeta. Diante da primeira enchente, os aldeões culpam Groo, e a vida “tem de voltar ao normal”. Quando uma vila fica alagada, os camponeses pensam em “criar camarões de água doce” para a “vida voltar ao normal o mais rápido possível”. Ninguém, do camponês refugiado mais pobre e fodido, a praticamente todos os monarcas do universo de Groo (incluindo aí os “progressistas”) se dispõe a fazer o trabalho de longo prazo: sacrificar a imediatez da guerra ou da “economia” (sempre uma donzela que precisa ser salva por algum tecnocrata neoliberal) e poupar milhões de vidas, além de garantir salubridade para o mundo das gerações futuras.

Olhando os fóruns na internet sobre Inferno da Terra (uma ação indigesta, para dizer o mínimo), percebi que, sobre estas histórias que estou colocando no arco “Cavaleiro das Trevas de Groo”, paira, como em tudo atualmente, a polarização. Muitos acham que Evanier e Aragonés estavam trazendo um debate político ambíguo e inconcluso para a adorável alienação barbárica que sempre foi Groo (não sempre: vamos lembrar de “A Aldeia de Malefá”). Outros acham que os autores estão simplificando grosseiramente a questão. De minha parte, acho sinceramente que, considerando o material-base (um personagem que ilustra a “ode à idiotia”) e a paródia que Groo sempre representou das ações estúpidas da nossa vida cotidiana, Inferno na Terra apenas eleva os mesmos dilemas a questões de ordem mais social e ecológica. É como se aquelas fábulas didáticas e inocentes da Turma da Mônica sobre ecologia e temas politicamente corretos fossem elevadas a uma costura inteligente e verossímil sobre os sistemas (comunicacionais, midiáticos, políticos, ecológicos) que regem a estrutura dos macroacontecimentos no nosso mundo. De minha parte, esta história é genial em cada aspecto da sua concepção, e um dos grandes feitos dos quadrinhos dos anos 2000.

Groo em meio a um embate “climático”!

Groo em meio a um embate “climático”!

A Grande Crise

Esta história se inicia de um jeito muito significativo. Groo está na fronteira com o oriente, guerreando contra Kithan (que representa a China; curiosamente é o mesmo nome de uma das nações da Era Hiboriana de Howard). Uma guerra que é decidida com estranha disposição diplomática por parte dos generais orientais. Groo recebe seu soldo (um mísero kopin) e vai dar um rolê em Kithan para encontrar algo que possa comer. Lá, em raro momento de introspecção, o bárbaro trapalhão fica surpreso com a imensa quantidade de comida que ele consegue comprar com seu kopin: ele percebe que a enorme e miserável população trabalha em tempo integral, e que é pessimamente remunerada pelos poucos donos das terras, que ficam com a maior parte do rendimento pelo labor do povo. Em determinado momento, espantado com os baixos preços dos serviços e produtos em Kithan, Groo pensa: “se eu tivesse dinheiro e precisasse de algo, compraria vários algos por aqui”.

Em “A Grande Crise”, Groo vai a Kithan (China) e descobre suas contradições.

Em “A Grande Crise”, Groo vai a Kithan (China) e descobre suas contradições.

Muito mudou na China desde que A Grande Crise foi produzida por Evanier/Aragonés, incluindo uma cada vez progressiva abertura de seu “socialismo de mercado”, com grandes empreiteiras chinesas ocupando enorme espaço em mercados ascendentes no mundo todo. Na década de 2010, a economia chinesa, pouco afetada pela “grande recessão” da qual falaremos, chegou a crescer perto de 10% ao ano. O panorama político e sociocultural chinês é obviamente muito complexo para caber nestas linhas.

Hoje fala-se em soft power chinês. Vejam o exemplo do filme Terra à Deriva (Frant Gwo, 2019), o mais bem sucedido blockbuster de língua não-inglesa de todos os tempos. Fala-se no crescimento de grupos ultranacionalistas e tecnicistas chineses na internet, num movimento semelhante à ascensão da alt-right americana, que defendem uma maior militarização da China, e a subjugação do povo por “elites esclarecidas” que detêm monopólio do acesso à tecnologia. Um horror.

A China (ou Kithan), porém, tem um outro papel neste Cavaleiro das Trevas de Groo. Como em “A Aldeia de Malefá”, uma grave crise econômica é deflagrada por uma conjunção (desta vez, bem mais complexa) de fatores que espelham o que ocorreu no mundo entre 2007 e 2009, com a crise das hipotecas subprime, a quebradeira dos bancos americanos pelo excesso de circulação de títulos podres, e a consequente recessão que tomou conta do mundo nos anos seguintes. Os efeitos desta crise, por mais que ela não seja tão frequentemente citada quanto deveria, são claros hoje em dia, desde em conflitos bélicos como a guerra da Síria, passando pela retração de diversos mercados importantes, até na ascensão da extrema direita no mundo.

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Vale lembrar que boa parte do discurso conspiracionista, neo-tradicionalista e “anti-establishment” da chamada alt-right decorre de eventos como o fechamento de grandes fábricas americanas, na precarização de empregos e serviços, na desconfiança absoluta nas instituições (principalmente financeiras, mas também geopolíticas), e se fia em esperanças messiânicas, no retorno a um ocidentalismo quase medieval, com discurso bélico e de ruptura democrática. Tudo isso aliado à ascensão das big techs e de uma sociedade neoliberal do controle (como diz o filósofo Byung-Chul Han) sobre a psiquê do indivíduo, motivada por essas insurreições erráticas organizadas em fóruns na internet. A entrada da pandemia nessa gororoba (que, conforme vimos em Inferno na Terra, pode ter suas raízes também nesse contexto) foi apenas a pá de cal para deflagrar a condição distópica em que nos metemos.

Até ler A Grande Crise eu achava que o produto cultural que melhor tinha refletido sobre a Grande Recessão havia sido o episódio três da 13ª temporada de South Park, “Margaritaville” (2009), em que a crise econômica se abate sobre a pequena cidade do Colorado. É aquele em que o Kyle, no final, abre uma conta de cartão de crédito e se oferece para pagar as dívidas de todos os cidadãos dos EUA e, tal qual Jesus Cristo, se martiriza pelo bem de uma sociedade mesquinha e voluntariosa, que basicamente o odeia. Este episódio é uma hilária e frenética mistura de crítica ao consumismo vazio e à leniência dos banqueiros, misturada com uma paródia genial da passagem do Velho Testamento para o Novo.

A Grande Crise, no entanto, expõe melhor as ossadas da coisa toda, por mais que valha a pena ressaltar a simplificação (que beira a xenofobia) em relação à questão chinesa. A mote principal gira em torno, de qualquer forma, do reino de Horder e alguns grupos de personagens: os magnatas do mercado imobiliário, que vendem casas em terrenos dos quais eles se apossaram de graça; uma construtora de carruagens (representando o mercado automobilístico), que sofre crise de vendas por seu produto ser muito custoso, sofisticado e pomposo; os ricos banqueiros, que dão crédito irresponsavelmente; o rei de Horder, Hordes, que administra os cofres públicos com uma enorme criação de cavalos (metáfora para commodities como o petróleo) no território do vassalo Azzur, que se insurge contra ele, provocando uma guerra entre os reinos que logo se torna uma guerra civil entre duas diferentes  (“porém meio iguais”) etnias; e Groo, que funciona, mais uma vez “forrestgumpicamente”, como catalisador de toda desgraça que se acomete nesse frágil cenário.

Na verdade, a ida de Groo a Kithan o faz alertar, aos cidadãos comuns de Horder (especialmente comerciantes), que as coisas que eles fabricam com mão de obra local são dez vezes mais baratas em Kithan. Logo, toda manufatura e produtos que circulam na economia de Horder passam a ser comprados em Kithan, desempregando a mão de obra do reino ocidental, o que os leva a pegar cada vez mais empréstimos com os banqueiros. Uma bolha gigante se forma em torno de Horder, porque a economia se reaquece, mas a mão de obra básica (o proletariado) continua desempregada.

“A Grande Crise” deve ser um dos primeiros gibis que põe em evidência a ação… dos banqueiros!

“A Grande Crise” deve ser um dos primeiros gibis que põe em evidência a ação… dos banqueiros!

Novos empréstimos são solicitados, porém, como não há consumidores em Horder, não há como pagá-los, e os bancos também começam a quebrar. Paralelamente, o tesouro nacional não tem interesse em vender os ativos em cavalos (“petróleo”, manja?), e a guerra contra Azzur começa a se tornar muito cara. Banqueiros passam então a pedir dinheiro ao rei Hordes. Grassam a miséria, refugiados, desemprego, guerra e cobiça em Horder. Dizer (ainda) mais seria estragar a genial solução que Evanier e Aragonés deram a essa rocambolesca história. Digamos que é no mínimo tão astuta quanto a de South Park, e que, no mundo real, o que ocorreu foi que governo Obama desembolsou mais de dois trilhões de dólares (com dinheiro do povo) para “salvar a economia”.

A Grande Crise não é uma parábola tão simples e direta como Inferno da Terra, que também é mais atraente visualmente, porque ali Aragonés teve a oportunidade de desenhar uma variedade maior de povos, cidades e habitats. É mais fácil, também, compreender o problema do aquecimento global (bem, num mundo de imbecis que acham que a Terra é plana, tudo fica difícil de compreender) do que uma bolha econômica global baseada em capital especulativo que gera uma recessão mundial, mas ambos os arcos (também por serem do mesmo tamanho) são coerentes em suas ambiciosas propostas narrativas: transformar aquelas duas velhas e simplistas piadas de Groo em uma estrutura discursiva capaz de traduzir panoramas geopolíticos complexos.

É um movimento parecido com empurrar um conjunto de ideias inverossímeis para crianças dos anos 1930 (“super-heróis”) em direção a críticas sobre sociedades totalitárias, grupos midiáticos inescrupulosos e ao aspecto fascista do capitalismo. Talvez seja querer demais de uma história de Groo? Bem, muita gente pensou o mesmo quando O Cavaleiro das Trevas saiu. E muita gente continua pensando assim.

O certo é que esta história de 2009/10 faz uma leitura aguda dos eventos que envolveram a Grande Recessão. Evanier/Aragonés não poupam as administrações Bush e Obama (na figura do rei Hordes), Saddam Hussein (Azzur), os bancos americanos, o megaempresariado da indústria automotiva, a política econômica passivo-agressiva dos chineses, o individualismo do próprio povo, etc. Ao mesmo tempo, o bárbaro, desta vez indagador, serve como espelho da incongruência do cidadão comum, refletido no leitor, incapaz de enxergar o quadro total dos fenômenos que ocorrem ao seu redor. Groo não está ausente das suas próprias desventuras. Ele é a própria consciência “acrítica” que questiona os eventos do mundo, mas questiona burramente. Qualquer semelhança com o grupo de zap da “sua tia” não é coincidência.

Uma avalanche bancária!

Uma avalanche bancária!

Nosso quadro pandêmico é indício de que haverá (para os que sobreviverem) uma recessão ainda maior que a que se seguiu à crise de 2008/9 no âmbito global. Estamos num estágio mais avançado de deterioração de uma sociedade neoliberal do desempenho, e estruturas sociais que ainda podiam ser lidas de acordo com teorias sociológicas clássicas agora intrigam cientistas políticos do mundo inteiro com mudanças estruturais profundas. As instituições tradicionais se vaporizam na modernidade progressista enquanto vemos, ao mesmo tempo, o recrudescimento do atavismo e do fundamentalismo religioso no seio do cristianismo ocidental. Podemos até juntar as duas histórias, Inferno na Terra e A Grande Crise, como partes irmãs de um mesmo desastre (ao mesmo tempo ambiental, econômico e político) que se cristaliza na interminável crise sanitária dos dias de hoje.

Por fim, este estado das coisas obriga o indivíduo comum, os Groo da vida, a se meterem na aventura vida loka de ser “empreendedor de si mesmo” num mundo em crise perpétua, vendendo sua liberdade a troco de likes. Vale citar, para não perder o ensejo, o que Han diz sobre esse mundo pós-Grande Recessão: “O neoliberalismo é um sistema muito eficiente – diria até inteligente – na exploração da liberdade: tudo aquilo que pertence às práticas e formas de expressão da liberdade (como a emoção, o jogo e a comunicação) é explorado. Explorar alguém contra sua própria vontade não é eficiente, na medida em que torna o rendimento muito baixo. É a exploração da liberdade que produz o maior lucro”. Durmam com essa.

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