Nausicaä: poesia, steampunk e holocausto no Vale do Vento

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Este texto falando sobre o filme Nausicaä do Vale do Vento, de Miyazaki, foi escrito para o catálogo de uma mostra sobre Anime no CCBB. Porém, o filme acabou caindo da programação e ele não foi utilizado. Aproveitando que Nausicaä chegou à Netflix e o mangá será relançado no Brasil pela JBC, achei que era um bom momento de fazê-lo ver a luz do dia. (CIM)

por Ciro Inácio Marcondes

Na Odisseia de Homero, quando Odisseu deixa a ilha de Calipso e naufraga na Feácia, ele é resgatado por Nausícaa, filha do rei Alcínoo e da rainha Arete, que o acolhem com fraterna hospitalidade. Na ocasião, o herói compara a distinta e corajosa princesa com a deusa da caça, Ártemis e, a partir daí, todo um imaginário sobre a personagem é criado. O tom épico de Nausicaä do Vale do Vento, segundo longa animado de Miyazaki - e o filme que lançaria as diretrizes do Estúdio Ghibli, antes de sua fundação - não é por acaso.

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De fato, Nausicaä do Vale do Vento tem apelo grandioso: situado a incontáveis eras no futuro, após um cataclisma que consumiu boa parte do planeta e o deixou à mercê de uma floresta tóxica e colossal (o “mar da corrupção”, povoado por insetos gigantes e plantas venenosas), cujo avanço não pode ser contido, o filme nos mergulha numa guerra entre os reinos remanescentes, com forte pegada retrofuturista. Aqui, Nausicaä, a princesa do pequeno Vale do Vento, é a heroína que vai suturar os problemas entre nações políticas, e a sua odisseia é também a da compreensão sobre a natureza ecológica dos seres corrompidos, que parecem ter se tornado invencíveis. A Ártemis do futuro está à caça de uma nova ética animal.

Apesar de ser um trabalho primevo de Miyazaki, Nausicaä ostenta completa maturidade. O design de vestimentas, acessórios e tecnologia é arrojado e remete a influências setentistas ocidentais (especialmente Moebius), porém completamente incorporadas aos modos característicos do cineasta. A beleza do imaginário medieval, misturado a um futurismo a vapor (steampunk), com batalhas aéreas clássicas que lembram os duelos classudos da Primeira Guerra, além de profunda intimidade com a criação de paisagens alienígenas, tudo isso remete ao estado precoce da argúcia criativa de Miyazaki. Temas que ele vai desenvolver a fundo em outros filmes (a poética do tempo, o feminismo, a ecologia) já emergem inteiros aqui. Há os que dizem que esta continua sendo a sua obra-prima.

O mangá Nausicaä e a confessada influência de Moebius

O mangá Nausicaä e a confessada influência de Moebius

Nausicaä do Vale do Vento foi lançado em 1984, produzido pelo pequeno estúdio Topcraft, e lançado pela Toei, tendo alcançado um estrondoso sucesso no Japão. Foi devido a este triunfo que Miyazaki, juntamente a Takahata, Suzuki e Tokuma, fundaram o estúdio Ghibli no ano seguinte. O filme era baseado em um mangá de mesmo nome (e equivalente arrojo estético), escrito e desenhado também por Miyazaki, ainda incompleto na época da elaboração do roteiro (na verdade, o artista só o concluiu em 1994). Foi sua primeira parceria com o genial compositor Joe Hisaishi - em trilha que mimetiza os diversos sentimentos suscitados pela odisseia do filme -, e ainda conta com cenas de ação dirigidas por um jovem Hideaki Anno (que faria Neon Genesis Evangelion).

Nausicaä, para além de uma aventura épica de guerra com fortemente carismático protagonismo feminino, é um tratado de panteísmo ecológico (ou seja: para além do humano), representado na consciência mística dos ohmus: besouros-leviatãs tóxicos que carregam a bandeira da destruição e também do equilíbrio natural, botânico e animal. Miyazaki apresenta estes temas com seu reconhecido tratamento poético: no respirar dos planos de um esporo que floresce, numa nuvem venenosa que sobe, no despertar de um colosso.

Diferentemente da Odisseia de Homero, que instaura uma ética para os homens, Nausicaä de Miyazaki prevê um estatuto das coisas, em um animismo conciliador que faz um mar de toxinas reaparecer com a beleza de tudo o que é vivo. Seus insetos e aberrações surgem como uma bela flor que brota do lixo. Destas condições nasce também um imaginário - o do Estúdio Ghibli -, cujo legado sequer pode ser calculado.