NOVA DENTIÇÃO: AMANDA MIRANDA E O POLIMENTO DE JUÍZO

por Lima Neto

O corpo é como um livro. Ou melhor, vários livros. Cada órgão é autor de uma narrativa que na maioria das vezes se apresenta com a inevitável estrutura de início, meio  e fim. É fato que nenhuma parte foge desta sina, mas o cérebro talvez seja o autor com mais liberdade poética na ordenação de seus capítulos. A maioria dos outros órgãos, entretanto, contam histórias estritamente contidas. Mas há aqueles que são verdadeiros guardiões da passagem do tempo, acompanhando cada mudança de seus portadores. Os dentes são um desses casos.

A história que os dentes contam parte do vazio e retorna à mesma não existência. Seus capítulos são semelhantes em quase todos nós animais que narram: há os dentes de leite, apresentando à criança sua verdadeira origem como carnívora. Há o momento de descarte dos dentes não mais apropriados, insuficientes para as grandes presas que o corpo necessita para se sustentar. E, em seguida, a maturidade da razão. A dolorosa hora em que os terceiros molares começam a rebentar a carne em busca de ar. Estes também conhecidos como sisos.

Tal qual a troca de dentes, a quadrinista Amanda Miranda lançou agora em junho uma versão “permanente” da HQ Juízo, originalmente publicada na coletânea Tabu da editora Mino em 2019. Nesta nova versão, uma espécie de “director´s cut” radical, Amanda busca calar uma inquietação que a persegue desde o primeiro lançamento. Como resultado, o quadrinho retorna à mesma história, porém com arte, layout e diálogos inteiramente novos. No geral, a nova Juízo é uma HQ mais amadurecida, com páginas que exploram o espaço de forma muito consistente. Os contrastes de linhas da primeira versão dão lugar a texturas e aguadas de nanquim que enriquecem visualmente o quadrinho sem atrapalhar sua leitura. Mas a mudança mais sensível está no campo do conteúdo escrito. 

De modo simplista, Juízo é uma HQ de horror corporal que tem como tema um elemento comum na grande maioria das pessoas: O dente do Siso, suas simbologias e implicações. Mas o verdadeiro horror da história não está na biologia, embora ainda seja muito corporal. Como parte de um tema maior do trabalho de Amanda Miranda, o verdadeiro elemento desconcertante está na percepção de que, mesmo que os dentes contem uma história universal, a sociedade patriarcal reescreve esta narrativa nos corpos femininos. E não é uma boa história.

Nesta nova versão da HQ a narrativa ainda se debruça na dolorosa visita ao dentista de uma mãe de família profissionalmente realizada, porém o que antes era narrado como uma experiência um pouco mais individual (diálogos internos muito descritivos, momentos particulares que tomam um espaço mais estéticos que significativos, etc.),  agora tem seu escopo ampliado pelo texto, fazendo da personagem um espelho para várias identidades femininas que compartilham o mesmo temor quanto à maturidade do corpo. Os corpos masculinos e femininos narram histórias bem diferentes. Mas a diferença cultural é muito mais penosa que a anatômica. Os sinais de maturidade no corpo feminino são uma exposição ao mundo social da visão masculina. É ter seu corpo sequestrado. Sua história e autonomia interditadas.

Sob esse jugo, o olhar feminino é tornado impotente. Os olhares que Amanda desenha (quando existem) são empedrados, vazios, distantes. E o vazio incomoda, como o vão onde antes havia um dente. E parte do terror de Juízo está no controle desses vãos anatômicos que deveriam ser de posse total de suas donas, mas que terminam sendo alvo do interesse político-social dos representantes do nosso sistema. É aí que “juízo”  também vira julgamento. E que a prudência e sensatez que é representado pelo siso, torna-se medo e apreensão, “preenchendo vazios ainda desconhecidos por nós”. 

Na esquerda, página da primeira versão de Juízo (Mino). Ao lado, a página equivalente da nova edição

Esta nova versão de Juízo é um exercício de ajuste de foco, de cuidado com a própria produção. Algo que, curiosamente, era até comum nos quadrinhos nacionais de terror de outrora. Autores como Jayme Cortez,  Flavio Colin ou o Ota refizeram e revisaram muitas HQ´s já publicadas para fazer reedições melhoradas, ou simplesmente para um público diferente. Era um outro momento, com muitas publicações fasciculadas e um mercado promissor para o terror à brasileira. Amanda se junta a este grupo seguindo as mesmas inquietações, porém em um momento onde criadories são as pessoas mais responsáveis por abrir e ampliar seu próprio mercado. As distinções e semelhanças entre as duas edições de Juízo trazem reflexões ricas sobre o gesto de fazer quadrinhos e sobre a responsabilidade que criadories têm com a própria criação. Criação esta vista como um algo vivo, um órgão que se desenvolve e altera a história que conta e segue contando.