Aqui, uma geografia

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Nesta sua segunda contribuição para a Raio Laser, o enigmático colaborador Chackal, estrategicamente posicionado fora do espaço e do tempo, tece seus comentários sobre a singular obra de Richard McGuire: Aqui, lançada em 2017 pela Quadrinhos na Cia. (MMA)

“O espaço é a acumulação desigual de tempos” – Milton Santos

 por Chackal

No princípio era o ponto. Seu potencial era alto e se alongou em uma reta. Esta se multiplicou em um plano (e o plano era bom). Então ele se desdobrou em três dimensões, e o espaço deixou de ser informe. Do espaço emergiu o tempo, e suas noções foram delimitadas em superfícies: segundos deram-lhe feição, tornando-o paisagem; horas transformaram suas áreas em lugares, nos quais o espaço seria vivido, e anos desfiaram-se e sucederam-se, condicionando sua geografia.

A obra de Richard McGuire é múltipla. Polivalente em significados a serem decifrados pelo leitor, Aqui contém leitura que recompensa quem puder apreendê-la a partir de um entendimento multifacetado. Tal compreensão não se resume apenas em definir um ponto no espaço pelo qual se vislumbra o tempo, mas também, e principalmente, de fixar momentos no tempo com os quais se obtém o próprio espaço.

Com ajuda da Geografia, ciência que busca analisar a extensão do espaço desde seus primórdios até suas ramificações futuras mais remotas, é possível considerar Aqui uma aula magna. Os conceitos científicos de Paisagem, Lugar e Espaço, que são signos decodificados por geógrafos dedicados a compreender que tipo de relação existe entre humanidade e seu ambiente, foram empregados magistralmente por McGuire, com o fito de narrar os acontecimentos.

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O geógrafo brasileiro Milton Santos (1926-2001), em seu livro A Natureza do Espaço – Técnica e Tempo, Razão e Emoção, buscou integrar ao espaço geográfico, elemento estático e físico, o tempo, elemento fluido e virtual. Segundo Santos, esse espaço consistiria em um agrupamento de várias e descontínuas unidades temporais, denominado técnica. Em Geografia, a técnica é formada pela cultura de um povo, pelas convicções e experiências humanas, desenvolvidas e aperfeiçoadas ao longo do tempo, para ser empregada na configuração espacial.

Além de consolidar um ferramental para moldar o espaço em benefício da humanidade, a técnica é um processo que implica o uso intensivo do tempo. Nesse sentido, um tijolo não seria apenas uma unidade feita de barro cozido, mas também de uma quantidade de tempo materializado. Uma parede, por sua vez, demandaria outra quantidade de tempo só para ser erigida. Uma edificação exigiria, além do tempo de sua construção, o das discussões em torno de seu projeto, o das autorizações para seu licenciamento, o da compra de materiais etc.

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Ao modificar o espaço em que está inserido, o ser humano o personaliza, dando-lhe características próprias da técnica à sua disposição em determinado momento. Assim, o espaço geográfico assume extensão humana, que evolui em consonância tanto com a inovação tecnológica quanto com as necessidades utilitárias e estéticas, típicas de uma época. A essa feição do espaço, os geógrafos dão o nome de paisagem. Trata-se de um tipo de “fotografia” – um registro instantâneo – de um cômodo decorado, da fachada de uma casa, do estilo arquitetônico de um bairro ou do traçado urbano de uma cidade.

Em Aqui, tal percepção está definida e delimitada em um canto de uma sala de estar, um espaço cujas ramificações no tempo propõem ao leitor construir e desconstruir a paisagem que vê mentalmente. McGuire divide o tempo daquele espaço em momentos que podem ser qualificados como fotografias do espaço em diferentes épocas. Tal qual em um antigo álbum fotográfico de família, onde algumas memórias estão agrupadas e eternizadas no papel, o canto da sala abrange diferentes instantes que lhe caracterizaram indelevelmente.

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A personalização do espaço conduz à familiaridade – esta não é mais uma sala qualquer, mas um lugar. Geograficamente, lugar é um espaço de afetividades, onde quem o frequenta deposita sentimentos e estabelece significados singulares. É o que torna uma casa um lar. Em Aqui, o canto da sala ganha esse perfil, envolvente, confortável ao leitor, que acaba por identificar naquele espaço elementos que compartilha eventualmente com outros lugares. Assim, é lícito afirmar que McGuire usa a Geografia para criar vínculos emocionais em sua obra.

A sucessão do espaço, mediante mudanças na paisagem, incita maior curiosidade em quem testemunha as alterações do tempo, o qual não apenas avança e recua, mas também se vincula e se desprende do lugar, de acordo com a mudança na técnica. Para Milton Santos, o espaço assim se relaciona com o tempo, acumulando paisagens de diferentes características, o que lhe confere identidade por meio de uma história. É pela técnica, pela paisagem que ela conforma e pelo lugar que ela transforma, que se descobre que o espaço geográfico se estende para o passado e também para o futuro.

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Ao exibir momentos no tempo vividos naquele canto da sala, McGuire desenvolve sua obra, tirando proveito de diversas épocas para revelar a história daquele lugar. Os avanços e recuos inerentes do tempo são elementos de aporte a esse registro, mas que só podem sugerir a totalidade de eventos que ali se sucederam. Técnicas que ajudam o autor a dinamizar sua narrativa – nos momentos que estão ali localizados, pontos de tempo sincronizados no espaço, à espera de complementação. O resto deve ser inferido a partir das noções particulares do leitor, que completa a história com a percepção diacrônica de tempo.

Em termos temporais, a diacronia está para o lugar, assim como a sincronia está para a paisagem. Enquanto o ato de sincronizar só existe ao se fixar um instante na paisagem, a ação diacrônica se percebe pela passagem do tempo, pelas evoluções humanas ao longo da história do lugar. Para Milton Santos, essa inter-relação do espaço com o indivíduo que nele se insere é infinitamente cíclica – o espaço condiciona as vontades humanas, mas é também condicionado por elas –, traduzindo-se em movimentos de coexistência (sincrônicos) e de experiência (diacrônicos).

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Em se tratando de uma representação, toda história em quadrinhos pode ser uma experiência espaço-temporal. Tanto a passagem do tempo, pontuada pela narrativa, quanto a valorização dos momentos mais importantes estão nuançadas em suas páginas. Eminentemente, o espaço, conceito sempre mais abrangente na Geografia, é retratado com destaque em Aqui, onde figuras menores – paisagens – situam pontos relevantes da narrativa e que enfatizam algumas singularidades daquele lugar em determinada época, ao passo que o avançar da história acresce às subjetividades da leitura experimentações.

A inovação da obra de McGuire está na linguagem com que o autor manipula os conceitos geográficos em favor de uma história em quadrinhos formidável. Nesse ponto, ela nada mais é do que um método bidimensional a transformar tridimensionalidades que, por sua vez, simulam noções em quatro dimensões: enquanto a pontuação dos momentos é sobretudo gráfica, a passagem do tempo é simbólica, imiscuindo-se entre as sarjetas de cada quadrinho, compelindo o leitor a quantificar os diferentes tempos que ali se sucedem e a vislumbrar a que tipos de espaço eles podem levar.

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Essa maneira lúdica de instigar a imaginação, e de fazê-la agir em conjunto com a curiosidade ressaltada sobre o quão pouco se sabe a respeito do lugar em que se vive, foi realizada com primor por Richard McGuire. Se, conforme ensina a Geografia de Milton Santos, o espaço nunca está divorciado do tempo, assim como, nesta história em quadrinhos, a ilustração não está dissociada das subjetividades do leitor, então Aqui é, tanto na forma quanto no conteúdo, obra seminal, pois demonstra que até a história da humanidade pode estar contida em um simples canto de uma sala.