Charles Schulz no divã: exposição Good grief, Charlie Brown! Celebrating Snoopy and The Enduring Power of Peanuts

Quem estreia em colaborações na Raio Laser é o não menos que excepcional Bruno Porto, que vem dialogando com a gente já de longa data, e que agora nos presenteia com essa caprichada resenha dessa incrível exposição sobre Charles Schulz em Londres. (CIM)

Bruno Porto é designer, professor e consultor. Atuou como curador da 12ª e 10ª Bienais Brasileiras de Design Gráfico (2017 e 2013) e de uma dúzia de exposições de artes gráficas montadas em países da  América do Sul, Ásia e Europa. Tem livros e textos publicados sobre design gráfico e recentemente vem pesquisando o assunto no âmbito das Histórias em Quadrinhos. Atualmente integra o GIBI - Grupo de Estudos de História em Quadrinhos do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília – UnB e os Conselhos Consultivos da ADG Brasil e do Comitê Tipos Latinos. Nascido e criado no Rio de Janeiro, já morou em Nova York, Xangai e Brasília, e atualmente vive na Haia.

por Bruno Porto

A primeira exposição na Inglaterra da obra do cartunista estadunidense Charles Schulz (1922-2000) — realizada de 25 de outubro a 3 de março de 2019 na Somerset House em Londres — tem utilizado como principal mote promocional a apresentação em paralelo de originais das tiras Peanuts com obras de vinte artistas plásticos contemporâneos inspirados pelo trabalho do criador de Snoopy e cia. Apesar das reflexões interessantes geradas por estes dois chamarizes - que procuram conectar a tira iniciada em 1950 com a produção artística do século XXI - o que se destaca na montagem é a compreensão do pioneirismo de Schulz em abordar nas suas tiras diárias tópicos de extrema relevância nos dias de hoje, como racismo, feminismo e religiosidade.

A primeira parte da exposição, organizada em parceria com o Charles M. Schulz Museum and Research Center, apresenta uma revisão biográfica e introdutória de criador e criação ilustrada por fotos da infância e juventude de Charles Monroe Schulz, itens como sua luva de baseball e outros brinquedos dos anos 1920 e 1930, seus primeiros trabalhos publicados, vários rascunhos e materiais de desenho, culminando no indefectível vídeo do quadrinista desenhando e descrevendo seus principais personagens. Artes originais das tiras permeiam a exposição em toda sua extensão, mas as apresentadas nesta ala - que ocupa uma generosa sala subterrânea da Somerset House - buscam enfatizar as semelhanças entre os dois Charles, Schulz e Brown, como o pai barbeiro, o interesse pela patinação no gelo e o cãozinho ganho na infância - o pointer Spike que se tornaria o beagle Snoopy.

Para qualquer apreciador de quadrinhos, do menino que gosta de desenhar ao pesquisador acadêmico, ver os originais de um artista revela um aspecto essencial do processo de produção de uma obra. Muitas criações artísticas se valem das experiências pessoais dos seus autores, e no caso das HQs, alguns personagens ficam definitivamente associados a seus criadores (especialmente no caso da proibição de novas histórias após a morte do profissional). Quando Hergé declarou “Tintin c’est moi”, o fez também no sentido de reivindicar quaisquer decisões relativas à sua maior criação (que, a propósito, também ganhou uma exposição na Somerset House há quatro anos) mas isso não se compara a Schulz dizer “I am the strip”: embora ambos tenham incutido suas frustrações e desejos em suas obras, Hergé trabalhou com diversos assistentes na grande maioria de seus álbuns, enquanto Schulz escreveu e desenhou sozinho 17.897 tiras de Peanuts entre 1950 e 2000. Este dado revela também como a pertinente seleção das tiras expostas é indubitavelmente um dos pontos fortes da mostra.

Os originais de Schulz revelam, portanto, que ele trabalhava as tiras diretamente com sua pena de nanquim, evitando o desenho a lápis antes (embora rascunhasse à parte), numa proporção aproximadamente três vezes maiores do que seriam impressas. Segundo o designer e editor Chip Kidd, Schulz desenhou a grande maioria de suas tiras usando uma pena de nanquim específica, a Esterbrook Radio Pen 914, tendo comprado todo o estoque disponível em 1952 quando a Esterbrook anunciou que iria descontinuar sua produção. Há uma visível evolução nas formas dos personagens e um aprimoramento dos enquadramentos (principalmente nas tiras dominicais, mais extensas), assim como se nota a mão trêmula do autor nos anos 1990, mas não há exatamente uma grande variação nesta vasta obra, do ponto de vista técnico: um original de Schulz não é tão rico como um de Hugo Pratt ou Will Eisner, por exemplo. A solução econômica e limpa do inimitável traço impressiona, mas não impede que neste aspecto a mostra se torne relativamente previsível.

Após esta introdução, sobe-se a um comprido mezanino onde a exposição passa a ser subdividida por temas explorados por Schulz nas suas tiras, ilustrados simultaneamente por uma combinação de tiras (sempre originais), documentos, itens de memorabilia e as obras de arte contemporânea. A mostra é muito bem sucedida em enfatizar a penetração da Peanuts na cultura popular estadunidense da segunda metade do século XX. Os personagens saltam das páginas dos jornais para capacetes, jaquetas e escudos bordados de soldados da Guerra do Vietnam, capas de revistas de notícias - como uma Time de 9 de abril de 1965, intitulada The world according to Peanuts -, roupas, calendários e os mais diversos brinquedos. Estão lá a primeira edição de Peanuts em italiano (Arriva Charlie Brown!) com prefácio de Umberto Eco, um dos primeiros a reconhecer o existencialismo e a qualidade poética do trabalho de Schulz, e flâmulas, cartazes e botons das campanhas de Snoopy para a presidência promovidas por estudantes em 1968 e 1972 - o que levou o Estado da Califórnia a aprovar uma lei que proibia que se escrevesse o nome de um personagem de ficção na cédula eleitoral.

O Charles M. Schulz Museum and Research Center selecionou significativas cartas de leitores de todas as idades, como a do psicanalista Timothy Leary solicitando autorização para reproduzir tiras dos Peanuts em seu livro The Interpersonal Diagnosis of Personality, ou do próprio Schulz ao editor do Oxford English Dictionary declarando-se muito honrado pela expressão “cobertor de segurança” ser incorporada à publicação. É através destas trocas de cartas que entendemos como, na sequência do assassinato de Martin Luther King em 1968, Schulz acaba inserindo um menino negro, Franklin, na tira. O quadrinista responde à carta de uma professora de Los Angeles que temia errar a mão e acabar adotando um tom preconceituosamente paternalista - “o que sei eu sobre ser negro?”, se perguntava. Após receber uma outra carta de um pai de dois meninos negros — com argumentos de como isso faria seus filhos se verem positivamente representados no cenário ficcional norte-americano, o que era raro acontecer na televisão, cinema, revistas ou outras tiras sindicalizadas — Schulz se convence, e o personagem é apresentado em uma tira arrebatadora. Como era verão nos Estados Unidos, Charlie Brown já estava na praia há alguns dias, e na tira publicada em primeiro de agosto, é mostrado construindo um castelo de areia com o novo personagem. “Toda sua família está aqui na praia, Franklin?”, ele pergunta. “Não”, o menino responde enquanto caminham ao mar com seus baldinhos, “meu pai está no Vietnã”. Charlie Brown replica que “Meu pai é barbeiro… Ele esteve numa guerra também, mas eu não sei qual”, antes do assunto mudar para baseball.

É a primeira referência que Schulz faz à Guerra do Vietnã, e o faz ressaltando como o confronto afetava desproporcionalmente famílias negras — soldados negros tinham maior probabilidade de morrer do que soldados brancos — enquanto o pai de Charlie Brown continuava a atuar como barbeiro. Preocupado em estereotipar o personagem, Schulz constrói Franklin como o mais “normal’ e equilibrado da turma e, após sua publicação, resiste à pressão do sindicato que distribuía suas tiras para os jornais para que tirasse o personagem, por causa de cartas ameaçando cancelar a assinatura caso o menino negro fosse incorporado definitivamente.

Ao destacar com exemplos fartos e contextualizados os temas explorados por Schulz, a leitura da cultura material apresentada na exposição estabelece a significância do trabalho - supostamente de entretenimento pueril - do quadrinista ao realizar investidas sobre temas tão caros à nossa atribulada atualidade. O pioneirismo observado na quebra do questão racial se repetiu ainda ao instituir personagens femininas cujos discursos e ações desafiavam a heteronormatividade, como Lucy e Patty Pimentinha, e ao atribuir dúvidas e contradições à fé religiosa, através da devoção e questionamentos de Linus - o personagem mais inteligente da turma - para com A Grande Abóbora.

Esta ponte construída entre temporalidades ofusca a seleção de obras de arte inspiradas nos Peanuts, que não vão além do que já foi explorado plasticamente pela Pop Art sessentista de Andy Warhol e Roy Lichtenstein. Visto que a grande maioria das peças não foi produzida especificamente para a exposição, sua única contribuição parece ser representar a óbvia constatação da amplitude da influência dos Peanuts na cultura do século XX. De uma forma geral, são reproduções dos personagens, quadros ou detalhes das tiras em suportes diversos - de telas e estandartes passando por tubos de neon e um sino, além de duas intervenções digitais sobre animações diversas dos personagens - que não se aventuram por maiores desconstruções formais ou criam elos particularmente representativos com a obra do quadrinista. Entre as bem-vindas exceções, há a pequena escultura em resina Animal (1998), do britânico David Musgrave, que expõe a estrutura anatômica interna do Snoopy, e a instalação Charlie Brown Job (2000), do francês François Curlet, em que uma rudimentar banquinha de venda de amendoins, feita com papelão e um pedaço de madeira, sustentaria o personagem após a morte de seu criador.

Uma outra abordagem interessante é parcialmente prejudicada por causa de sua localização na montagem: um dos poucos trabalhos produzidos para a mostra, a instalação Who Knows! (2018) do londrino Marcus Coates, reproduz a banquinha psiquiátrica de Lucy, na qual o visitante pode sentar-se e conversar com um psicanalista (ou outro consultor, de uma lista de vários que o museu coloca à disposição em horários pré-determinados - como um juiz, um rabino, um xamã, um neurocientista, um alcóolatra em recuperação, entre outros). A peça, no entanto, está situada imediatamente anexa ao bem cuidado espaço educativo - onde pode-se decalcar personagens de Schulz para criar suas próprias HQs ou escrever um conto, como Snoopy fazia na sua máquina de datilografia — sempre começando com o inevitável “It was a dark, stormy night…” — e termina virando apenas um ponto para selfies.

Diante da fragilidade das obras, fica um gosto amargo gerado pela possibilidade de que só a companhia de artes mais “sérias”, estabelecidas e dignas de estarem em museus e galerias, respaldasse a presença dos quadrinhos em um espaço tão distinto. Ironicamente, os trabalhos que mais capturam a essência de inadequação e desconforto dos Peanuts, mas criam um discurso próprio, são justamente duas HQs. Good Ol’ Gregor Brown, de Robert Sikoryak, foi publicada em 1990 na revista RAW (a versão exposta foi colorizada em 2009) como uma reinterpretação d’A Metamorfose de Franz Kafka, com o protagonista Gregor Samsa no papel de Charlie Brown. Abstract Thought is a Warm Puppy, de Art Spiegelman, foi publicada em 2000 na revista The New Yorker como uma análise da obra de Schulz, incorporando o alter ego do autor de Maus como personagem das tiras. Os rascunhos e versão final das três páginas — que encerram a mostra — referem-se a conversações entre os dois autores, críticas às tentativas de emulação por outros cartunistas do estilo aparentemente simples de Schulz, e uma reflexão ao adoçamento filosófico da tragédia devido ao vasto merchandising dos personagens.

Como que em um brilhante esquete do Monty Python, exemplo icástico da ironia britânica, o tal merchandising mencionado por Spiegelman pode ser conferido in loco segundos depois, na lojinha repleta de objetos de desejo — de irresistíveis camisetas com estampas dos personagens em seu nostálgico design sessentista a volumes e mais volumes de antologias das tiras, passando por bottons, caixas de lápis de cor e cartazes. Assim como a vida de Charlie Brown, a felicidade é agridoce.

REFERÊNCIAS:

SADOUL, Numa. Tintin et moi: entretiens avec Hergé. Paris: Casterman, 1975, p.66.

KIDD, Chip. Peanuts: The Art of Charles Schulz. Nova York: Pantheon, 2001, p. 51-53. Somerset House.

Good grief, Charlie Brown! Celebrating Snoopy and The Enduring Power of Peanuts. Catálogo. Londres, 2018, p. 46.