ZIP 100: meus 15 quadrinhos favoritos

ZIP 100: meus 15 quadrinhos favoritos

O que eu vejo nos quadrinhos que se difere das outras formas de expressão? É uma pergunta dura, cheia de armadilhas, mas seu aspecto capcioso está, na verdade, correto: o quadrinho é a forma de arte que nos permite abolir uma linha distintiva entre as subjetividades infantil, adolescente e adulta. Permite uma formação cíclica, nietzschiana, de uma ética humana sem fronteiras disciplinares, institucionais. Charlie Brown, Mônica, Calvin, Mafalda: são crianças que rompem estes muros que nos formatam como “cidadãos”. E Crumb, Alan Moore, Al Capp, etc., são crianças grandes que imaginam e escrevem para nos alertar disso. E assim falou Zaratustra.

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Q para QUADRINHOS

por Ciro I. Marcondes

Eu fui pego de calças curtas. Tendo adquirido Ovelha negra – A revista que o Brasil não leu encomendando-a pela Internet através do site da Pandemônio, fui lendo-a sem saber exatamente do que se tratava. Apenas tinha a referência de ser de autoria do Professor da UFMG e quadrinista retumbantemente aficcionado Daniel Werneck, em parceria com o desenhista Ricardo Tokumoto. Era o suficiente. Porém, ao começar a ler o gibi, envolvi-me num mundo mais intrigante do que poderia esperar: tratava-se de uma recuperação (“restauração”) devidamente comentada e contextualizada, de uma revista de HQs de contracultura que havia balançado a cena belorizontina, como zine ou revista, nas décadas de 50, 60 e 70. O material era incrível, e a evolução dos desenhos e quadrinistas, acompanhando a trajetória sociopolítica do Brasil, mais ainda. O trabalho de “pesquisa” parecia extremamente bem-feito, especialmente em contextualizar o desaparecimento, sem rastros, da revista nas décadas seguintes, devido à linha dura do governo militar. Até que, de repente, um estalo me bateu à cabeça: “Como é possível que uma revista desse calibre, com experimentações avançadas de linguagem e conteudo forte e contracultural, não seja absolutamente idolatrado pelos quadrinistas de hoje, na era da Internet, ou isso não seja recorrentemente citado por artistas do calibre de Angeli ou Adão. Como é possível que eu mesmo nunca tenha ouvido falar nisso”?? Não aguentando mais, chequei as últimas páginas e percebi que todo o gibi de tratava de um tipo de mockumentary, ou um “jornalismo falso em quadrinhos”.

F for fake.

Este parágrafo escrito acima é um parágrafo falso. O que ocorreu na verdade foi bem diferente. Werneck já anunciava a publicação desta HQ pelo twitter muito antes de ela efetivamente sair, no final de 2011, e eu tive a oportunidade de conhecê-lo (apenas virtualmente), via @raiolaserhq, já há algum tempo e, através de meses a fio, acompanhei o desenvolvimento desta HQ: a redação das notas de rodapé, importantíssimas para se entender o comentário ideológico e estético da obra; a construção dos documentos forjados; a conceituação estética de cada uma das tiras, diferentes entre si (assim como dos “autores”), referindo-se a culturas diversas de quadrinhos dos 50’s aos 70’s; e até mesmo a chegada das pinups desenhadas por ótimos quadrinistas da presente geração hipermoderna de HQs no Brasil. Quando recebi Ovelha negra, portanto, rasguei o papel da embalagem e li numa sentada só, conferindo o apuro detalhado com que aquiilo havia sido concebido e executado.

O segundo parágrafo, acima, também é uma mentira? Pode muito bem ser, e esse é o ponto (perdoem a introdução fora dos padrões) a que eu gostaria de chegar sobre esta HQ: citando uma frase de Eumyr (o “maior falsário do século 20”), personagem de F for fake de Orson Welles, “se você pindura uma pintura falsa por muito tempo numa parede, ela se torna real”. Por mais que Ovelha negra não seja um fake que não se admite, como o filme de Welles (está tudo devidamente explicadinho, nas páginas finais, incluindo as homenagens aos quadrinistas históricos que a HQ emula), esta brincadeira (avançada) com o jornalismo dos e em quadrinhos tem toda uma charmosa narrativa subjacente, cativante para mentes espertas, que percebem não apenas uma maneira classuda de se reler a história de BH e do Brasil, mas uma construção, de vários jeitos inédita, de se contar a história dos quadrinhos em si, underground (o foco mais óbvio) ou mainstream (de maneira paralela). É desse jeito que esse gibi nos aprisiona em várias frentes: além de toda a construção metalinguística, os autores tiveram a preocupação de criar bons quadrinhos em sua farsa, respeitando suas referências originais (questão de coerência com a História e com o próprio mockumentary) e ao mesmo tempo pingando gotas de originalidade e autoria em cada uma delas. Assim, os falsos autores de quadrinhos vão ganhando personalidades delineadas na própria evolução histórica das tiras, que vão se intensificando em conceitos diferentes, tudo a partir dos mesmos dois autores implícitos. Mestres da falsificação.

A "evolução" do Capitão Raio-Laser Fica, então, a lição mais bonita de Ovelha negra. Por mais que identifiquemos ali, naquelas tiras, a Revista MAD, Peanuts, Gato Félix, Flash Gordon, Agente X-9, Recruta Zero, Zap Comix, Angeli, Laerte e o escambau (basicamente duas páginas inteiras de citações), os quadrinhos em si são encantadores. Vale pensar na autonomia metalinguística do traço simplório de Sir Roderick, ou o comentário sobre a cultura do rock em Os meteoros, ou que bela e sagaz tira real daria Urubu rei e Cristiano; ou o apelo à HQ mais abstrata na nada ingênua Crás, boom e bang; ou, fazendo eu mesmo a minha própria ficção derivativa e alucinatória, o comentário político em Capitão Raio Laser, cujo nome teria sido inspirado neste mesmo site que vocês leem neste momento.

Ovelha negra chega justamente num momento em que o reconhecimento das HQs como arte segue a uma gigante exponenciação do potencial desta mesma arte, com artistas no mundo inteiro investindo nesta carreira e apontando para todas as direções possíveis. Verdadeira diáspora das HQs. Como o cinema (não se enganem: esta é uma arte hoje decadente) fez nos anos 60. Vale, pra finalizar, mandar outra frase de F for fake, citada (supostamente), do poeta Kipling: “Adão, nosso pai, ao chegar no paraíso, pegou um graveto no chão e começou a fazer lindos desenhos na lama, quando, sorrateiramente, o diabo se aproxima dele e sussurra, ao pé do ouvido, a danação: estes desenhos são muito bonitos, mas eles são arte”? Bem, quanto a isso, posso apenas sugerir que Ovelha negra seja lido em cada falso detalhe de cada falso editorial, em cada falsa sessão de cartas, em cada falsa nota de rodapé, em cada falso documento da ditadura. Nestas entrelinhas, sinais de arte verdadeira.

Sir Roderick é uma das piadas mais interessantes de "Ovelha Negra"

Um zumbi no carnaval






















por Pedro Brandt

Yuri escolheu o dia errado para morrer. De saco cheio do carnaval do Rio de Janeiro (“não sei sambar, nunca tive temperamento tropical”, ele diz), esse publicitário pulou de um prédio no domingo. Ressucitou na segunda, ainda com a festa tomando conta da cidade. “Você diria que eu ganhei um milagre. A chance de consertar meus erros. Mas eu não mudei. Porque sou o mesmo de antes. Burro, feio e chato. Sem missão divina, sem dinheiro e atrasado para o trabalho”. De volta ao mundo dos vivos, Yuri percebe que a única coisa em comum entre ele e o Rio é que ambos estão apodrecendo — Yuri saiu do túmulo como um zumbi.
Como azar pouco é bobagem, bastou apenas um dia para que ele perder o emprego para um estagiário e a mulher para um ricardão qualquer. Mas nem tudo está perdido para o protagonista da história em quadrinhos Yuri: quarta-feira de cinzas. Com a ajuda de Andrei, um ladrão de carros (gordo, gay, oportunista, inconsequente e, acima de tudo, carismático), ele decide ir à forra antes de morrer de vez. Até a última página, Yuri desafiará o rei momo, cabrochas, foliões, blocos de rua e uma turba descontrolada que acredita ser ele um santo milagroso.


Primeira HQ autoral do diretor de animação e ilustrador carioca Daniel Og, Yuri: quarta-feira de cinzas consegue uma façanha ainda pouco frequente entre os novos criadores de quadrinhos nacionais: seus personagens têm personalidade vívida, que salta das páginas. O protagonista é alguém que tem tudo, mas se deixa vencer pelo tédio. Andrei não tem nada a não ser seu próprio senso de sobrevivência. Juntos, mesmo brigando o tempo todo, a dupla parece se completar.

Sem forçar a barra, o autor também é bem-sucedido em fazer comentários sociais e levar brasilidade para a história. E tudo isso com muito humor. Og radiografa parte do Rio mostrando tanto a alegria contagiante do carioca, quanto o lado mundo cão da cidade, onde maladro é malandro, mané é mané e todos querem passar a perna uns nos outros. E ainda que o carnaval seja pano de fundo para a trama, o autor não se agarra aos clichês que geralmente estão presentes nos roteiros passados na cidade maravilhosa.

Ao conceito da história e à construção dos personagens, soma-se uma arte em preto e branco carregada de personalidade e estilo, ainda que simples, quase minimalista (como bem comenta Allan Siber no texto de introdução). Yuri: quarta-feira de cinzas foi lançada no final de dezembro. Por isso mesmo, merece figurar em qualquer lista de melhores HQ nacionais de 2012.

Yuri: quarta-feira de cinzas
De Daniel Og. 272 páginas. Conrad Editora. R$ 36.


Entrevista com Daniel Og:

Você considera o Yuri o seu alter ego de alguma forma? Você viveu alguma das histórias narradas na HQ?
Um pouco, mas não. O Yuri começa a história em um ponto que eu vivi. Tinha saído de um “bom emprego”, estava duro... Estava desesperançoso de chegar nas conquistas que quando menino tinha me imposto! Hahaha! Mas aí justamente por estar nessa situação (eu não pensei nisso na época, só me dei conta agora, na verdade) tive a liberdade de mudar e fazer meu quadrinho como eu queria, sem me importar com opinião de ninguém. Aproveitei essa chance de renascimento bem melhor que o Yuri. De uma certa forma, a vida que Yuri deixa pra trás é a minha. Mas a partir do momento que o Yuri encontra o Andrei, a história e o personagem já não têm mais nada a ver comigo. Mesmo assim, usei muitas referências da minha vida. Muitos amigos como base para criar os personagens... Enfim, tem muito de mim na história, mas não é nada autobiográfico! Nunca fui chifrado daquele jeito, por exemplo!

A HQ tem uma identidade local muito forte. Como você trabalha roteiro e personagens?
O que eu acho que falta nos quadrinhos brasileiros é uma perspectiva diferente. Culturalmente, o Brasil produz pouca coisa com identidade nacional e divertida. Geralmente, divertido é sinônimo de cinema de ação. Japonês, americano, coreano, que seja, mas o entretenimento brasileiro é muito realista! Chato, eu diria! Então, a referência fica ou fazer uma coisa com cara de Brasil e pesada — sofrida, doída — ou fazer uma coisa com cara de europeu ou americano e sem identidade, sem referências realmente próprias. Acaba que a falta de trabalhos lúdicos com identidade própria — e divertidos — faz com que surjam menos trabalhos que sigam nessa linha também. Foi uma intenção que fosse um quadrinho divertido antes de tudo! Ainda que fosse um quadrinho burro, ainda que fosse um quadrinho tosco, tinha que ser divertido.

Yuri é uma HQ de fôlego, com 272 páginas. Quanto tempo você demorou para realizá-la?
Na prática, eu levei cinco anos. Mas a história apareceu na minha cabeça há uns oito. Levei algum tempo até ter coragem de sentar e escrever. Considero que realmente comecei o projeto depois do primeiro roteiro escrito. Que depois eu acabei jogando fora quase inteiro!

Qual o maior desafio da produção deste trabalho?
Tempo. Nada além disso. Paciência. Na verdade, o maior desafio talvez tenha sido juntar coragem e me forçar a levar o projeto do início ao fim. Porque, técnica e criativamente, foi fácil de fazer. Era um quadrinho que eu queria muito fazer. E por não ter uma carreira conhecida, não havia nenhuma expectativa. Eu podia ir melhorando a técnica à medida que fazia... podia errar. O duro mesmo foi me convencer de que havia chegado a hora de começar e, levando o tempo que levasse, que eu ia chegar até o fim uma hora, que ia valer a pena. Mas mais uma vez, meus resquícios de punk rock me ajudaram. Eu não me importava muito se ia ficar bom ou não. Só queria ver meu bichinho pronto.

Quem você considera as suas principais referências nos quadrinhos? Quais os seus autores favoritos?
Conheço até pouco de quadrinho pra falar a verdade! Hahaha! Não achava isso até conhecer alguns outros autores e apreciadores de quadrinhos. Por que o povo conhece tudo! Então sou humilde com meus conhecimentos. Mas adoro quadrinho! Meu pai sempre teve muita Mad e Peanuts em inglês em casa, aqueles livrinhos de bolso... eu e minha irmã destruíamos a coleção dele literalmente. Minhas referências são os clássicos (Charlie Brown, Winsor McCay, Hugo Pratt, Manara, Asterix…), quadrinhos de humor (Quino, Laerte, Allan Sieber, Angeli, Fernando Gonzales), mangá, que eu gosto muito (Dr. Slump, Preto & Branco, Naruto, Vagabond, Battle Royale…), alguma coisa de quadrinho de herói também, que eu lia muito quando moleque. O Mike Mignola, inclusive, foi muito plagiado em vários sentidos… o timing dele é um negócio misterioso. Estudo muito ele.

Já está preparando sua próxima HQ?
Estou! Já vinha preparando a história há um tempo, enquanto desenhava o Yuri. Mas não tem muito a ver com o Yuri. Não repito muito as coisas. Gosto de experimentar com tudo que eu faço. Mesmo com animação e cinema, eu raramente fiquei muito tempo em uma mesma área. Apesar de meu ganha pão ser animação, é uma animação experimental... são projetos variados sempre no jeito de executar e nos roteiros. E eu quero dar um tempo. Um ano talvez. Nesse meio tempo quero fazer umas histórias curtas para revistas independentes que quiserem um colaborador e lançar um livro fechado com essas historias. Já tenho algumas feitas até.

HQ em uma tira: o tédio de Charlie Brown, por Charles Schulz



Charlie Brown é o homem moderno (Charlez Schulz, 1950): Esta tira publicada por Schulz ainda em 1950 (primeira série dos Peanuts) tem o mérito de, com quatro requadros iguais e uma única fala, nos premiar com três avanços louváveis em histórias em quadrinhos: 

1 - Estabelecer, de maneira 100% consciente, um nível difuso de temporalidade em quadrinhos. Os quadros são iguais, o tempo impreciso, mas a ideia do tempo está toda lá: é o tempo do tédio, do momento de autorreflexão, um tempo sem duração cronológica que necessariamente precisa se remeter ao universo íntimo e psíquico dos personagens. Um tempo de um mundo relativo, que aproveita um mecanismo absurdamente simples e exclusivo dos quadrinhos. Fosse no cinema, esse tempo poderia ser marcado, cronometrado. Nos quadrinhos, ele transmite a ideia de eternidade íntima.

2 - Em consequência dessa primeira observação, vem a segunda: Schulz, modesto que fosse, despretensioso que fosse, dominava um nível poético de linguagem, abandonando qualquer traço narrativo (não tem história aí, não tem ação, não tem passagem do tempo) para subir em direção a um estado contemplativo, emulsor de melancolia, sem deixar de lado sua observação bem-humorada (mas não cínica) do cotidiano. Um dos primeiros poetas dos quadrinhos, e ainda precisamos de outros.

3 - Mais importante ainda, essa tira, sem a presença de um gancho narrativo, do Snoopy, de uma história ou sequer de dois desenhos diferentes entre si, é capaz de ser uma metonímia de todo o conceito que Schulz criou para os Peanuts, e especialmente de Charlie Brown. Olhando bem para esses quatro quadrinhos, é possível dar alguma verificabilidade ao insight de que Charlie Brown (espécie de alterego do autor) representa um arquétipo próprio do nosso tempo, de um sujeito inseguro, pessimista, melancólico, perdido no caos do mundo moderno, mas ao mesmo tempo imbuído de uma estranha graça, de um loserismo encantador, pelo qual demonstramos não só pena, mas também afeto e admiração. Essa impotência diante dos desafios do mundo, da consciência da complexidade do mundo, foge a qualquer arquétipo que tenhamos utilizado nas eras anteriores da nossa história ocidental, baseada em heróis gregos, cartas de tarot ou outras reminiscências antigas. Charlie Brown é a nossa consciência contemporânea e Charles Schulz um gênio? Respira fundo e diz "sim". É assim que as coisas são. (CIM)