Sobrevoo na cena de HQs chilenas

por Marcão Maciel

Recentemente transferido para Santiago por motivos de trabalho, não demorei muito para começar a procurar por quadrinhos chilenos. A esse respeito, posso dizer que já me senti bem-vindo logo na chegada. Afinal, a casa que alugamos para passar os primeiros dias tinha uma pequena coleção de Condorito, personagem marcante para a nona arte local e que já arrebata leitores novos e adultos desde 1949. Antes de continuar, é importante dizer que o colaborador da Raio Laser Gustavo Trevisolli já havia feito, em 2012, um panorama da HQ do país sul-americano. Minha intenção, portanto, será a de complementar o texto anterior, tentando informar como está a situação hoje. Você poderá ler o primeiro artigo aqui. De quebra ainda vou inserir, no final, pequenas resenhas com alguns gibis chilenos que me chamaram a atenção.

A primeira parte de minha busca por quadrinhos levou-me às bancas da capital, mas o resultado mostrou-se desapontador. Em primeiro lugar, este tipo de negócio mostra-se bastante decadente e as revistas parecem artigos em extinção. Percebi que gêneros alimentícios de segunda e brinquedos mixurucas gradualmente empurram publicações impressas para escanteio. Houve, inclusive, uma banca que estava mais para quitanda de frutas que para vendedora de revistas e jornais. É, pelo visto não é só no Brasil que as bancas estão diversificando as mercadorias oferecidas, numa clara desvantagem para o público leitor, grande perdedor do embate entre os fornecedores de produtos para quiosques e bancas. Nas de Santiago, quando aparece alguma coisa, é basicamente material estrangeiro traduzido para o espanhol, como super-heróis Marvel e Star Wars. Além disso dá para encontrar o incontornável Condorito e algumas edições de Hagar, o Horrível. Em suma, muito pouco.

O segundo habitat que percorri foram as comic shops. Já adianto que também não obtive muito êxito neste tipo de comércio. Por alguma razão, não é fácil encontrar quadrinhos chilenos por ali. Essas lojas existem em quantidade considerável e estão aglomeradas – principalmente - em dois shoppings populares: um na Avenida Providencia 2198 (Portal Lyon) e outro na mesma rua na altura do número 2216 (Dos Caracoles). Esse último nome, caracol, é excelente para exemplificar como funcionam estas grandes galerias. O cliente fica dando voltas e voltas em espiral (subindo ou descendo) à procura da loja desejada. Há uma infinidade delas, que trabalham com discos, camisetas e tatuagem. Só de gibis, há pelo menos vinte.

Infelizmente diversidade e qualidade não se fazem acompanhar quando o assunto é expressiva quantidade de lojas presentes nestes estabelecimentos. Todas parecem ter escolhido trabalhar somente com Marvel, DC e mangás. Não os culpo. Já fui lojista e sei que para pagar as contas é necessário ter itens de cunho mais comercial. Mas uma caixinha com quadrinhos chilenos escondida lá no fundo não faria feio para atender as expectativas de turistas ávidos por conhecer um pouco da cena local.

Entrada da maior rede de lojas de Santiago. Mas sempre mais do mesmo

Não saí, entretanto, de mãos abanando do confuso e quase opressivo labirinto de lojinhas, digno de um pesadelo de Junji Ito. Na melhor delas, chamada Cine Adiccion, consegui escavar a pérola “Zombies en la Moneda”, quadrinho de sucesso no Chile, também comentado no supramencionado artigo do Gustavo. Talvez pudesse também ter encontrado mais coisas nessa loja, mas havia tanto gibi ali que era praticamente impossível mexer numa pilha sem derrubar o monte vizinho. Era uma coisa impraticável. Fiquei de voltar quando tivesse mais tempo e paciência, pois sei que ali há pepitas esperando para serem garimpadas. Fica a dica.

Sentimento diverso vivi quando fui na loja indicada pelo Gustavo, a Westcoast Motion Pictures. Acredito que há dez anos atrás ela estava vivendo seu êxtase do ouro, mas agora está mais para o ocaso de Serra Pelada. Localizada no Centro de Santiago, região da cidade que está amargando um período de declínio, a loja não parece estar esbanjando saúde. Embora ainda haja número considerável de produtos, a sensação é de fim de festa. A impressão é de que o estoque não é renovado há muito tempo e o que está disponível é apenas a raspa do tacho. Não encontrei o proprietário para conversar com ele, mas o muito atencioso vendedor foi prestativo durante as horas em que passei tentando vasculhar alguma coisa para não sair no zero a zero. Até achei itens interessantes, mas o estado de conservação e os preços me fizeram desistir. Havia algumas edições antigas do Condorito, mas as amarrotadas páginas não eram convidativas. Ao final da visita, agradeci ao funcionário que, com os olhos carentes, perguntou se eu não ia levar nada. Parecia incrédulo que, diante de tamanha “fartura”, eu não tivesse encontrado algo que me agradasse. Em suma, foi um triste final de tarde para nós dois.

A rota da seda para quem estiver querendo comprar quadrinhos e chilenos é ir nas livrarias. Tanto as de rua (Ulisses, Qué Leo, Feria Chilena del Libro), quanto as localizadas nos Shopping Centers (Antartica, El Gran Escape, Bros) são ótimas opções para encontrar e conhecer um pouco da produção local. E outra: em quase todas elas, é possível encontrar quadrinhos argentinos, especialmente da ótima editora Hotel de las Ideas. Falando em editoras, umas das melhores do Chile é a Planeta Cómic. Seu catálogo é grande e oferece obras muito instigantes.  Importante também mencionar que, assim como no Brasil, os preços das revistas não são muito amigáveis. Um gibi normal de 200 páginas e capa cartão (felizmente a febre das capas duras ainda não se alastrou por aqui) está na faixa de quinze mil pesos chilenos, cerca de 18 dólares. Em outras palavras, para colecionar por aqui também são necessários calma, parcimônia e o bom e velho dinheiro no bolso.

Libreria Ulises

Qué Leo

Os temas dos gibis, embora variados, costumam apontar a bússola para temas políticos. Biografias com Che Guevara e ficções envolvendo o falecido ditador Augusto Pinochet são bastante comuns. As obras costumam falar, em geral, de revoluções em países sul-americanos fictícios, tomadas de poder e conflitos com indígenas. Em outras palavras, o nerd que ainda acha que quadrinhos não têm nada a ver com política iria pensar que foi transportado para uma realidade alternativa. Títulos humorísticos e com pegada infantojuvenil também estão bastante disseminados no mercado local. Publicações do tipo alternativo/experimental também encontram espaço, mesmo nas grandes livrarias. Apesar disso, acredito que a produção local ainda esteja engatinhando. O número de títulos nacionais ainda é bastante tímido, quando comparado com a produção argentina (especialmente a do século passado) e com o pujante atual momento do quadrinho brasileiro.

Despeço-me deixando pequenas resenhas de HQs que, acredito, possam oferecer ao leitor da Raio Laser um aperitivo do que é possível encontrar por aqui.

Condorito Décadas. Los mejores chistes: 1950 (Editorial Origo)

Criado por René Ríos Boettiger, mais conhecido por Pepo, Condorito tornou-se um sucesso editorial no Chile e em vários países da América Latina, tendo, inclusive, virado desenho animado e protagonizado filme de animação 3D. A boa coleção de melhores piadas da década de 1950 mudou a ideia que tinha do personagem, que pensava ser dedicado principalmente ao público infantil. Ledo engano. As histórias de Condorito não tem lições de moral e ele nada tem de bom moço, muito pelo contrário. É quase mau caráter, está sempre de olho na mulherada e acaba, às vezes, indo preso ao final das tiras. As piadas de Condorito costumam apelar para o humor pastelão e têm reviravoltas em que o malandro pássaro acaba se dando mal. De forma geral, posso dizer que recomendo as coleções de Condorito, que servem como ótimo ponto de entrada para as aventuras do popular personagem. Fiquei curioso em ler as edições das décadas de 70 e 80, para saber se a ditadura de Pinochet foi abordada de alguma maneira.

Clandestino - Amancay Nahuelpan (Planeta Cómic, 2021)

Os trágicos eventos de 1973 ocorridos em Santiago, quando o presidente Salvador Allende foi deposto por uma sanguinária junta militar liderada pelo General Augusto Pinochet, ainda ecoam – e não poderia ser diferente – no imaginário dos quadrinistas chilenos. Na história em questão, o autor Amancay Nahuelpan recria a história, dando a ela novo enredo. Clandestino é o nome de um rebelde fortão e casca grossa (coincidentemente a cara do próprio quadrinista) que treinou táticas de guerrilha por vários anos e - claro - não medirá esforços para derrubar o governo do cruel General Kapala, o golpista de plantão. Trata-se de uma narrativa bem desenvolvida, desenhada de forma competente. Mais que uma aventura do tipo “Sessão da Tarde”, Clandestino é um belo exemplo de que as feridas do golpe de 1973 ainda estão abertas nos corações e mentes do povo chileno.

Zombies en la Moneda – vários autores (Editorial Mythica, 2009)

Organizada por Marco Rauch e Manuel Mella Vilches, a série narra os eventos subsequentes a um apocalipse zumbi ocorrido em plena capital chilena. Cheio de metáforas sobre o momento político do país e contando com as participações de figuras importantes da elite governamental, como os ex-presidentes Sebastian Piñera e Michelle Bachelet, o gibi mistura terror gore e humor em doses nada homeopáticas. Cheio de interlúdios e com cerca de 559 personagens, a HQ mostra como o cataclisma dos mortos-vivos afetou diferentes grupos da sociedade de Santiago, passando por políticos, bandas de rock, otakus e soldados de baixa patente. Como sói acontecer em publicações que possuem trocentos argumentistas e roteiristas, a publicação padece de altos e baixos, mas o resultado final não faz feio.

Ansiedad – Alberto Montt (Planeta Cómic, 2020)

Alberto Montt é um dos mais prolíficos autores de tiras chileno. Praticamente inédito no Brasil, salvo pela obra Laura e Dino (Sesi-SP, 2018), o quadrinista tem no humor e no traço ácido seus maiores trunfos. Ansiedad é uma coleção de tiras que fala de um dos grandes males que afeta dez entre dez pessoas normais. Transfigurada num simpático bichinho semelhante a um peixe espinho endiabrado, a ansiedade surge para sacanear todo tipo de pessoa, sem se importar com posição política/religiosa ou classe social. Incansável, o pequeno demônio teima em fazer observações nada animadoras para Jesus, artistas consagrados e quem mais aparecer. Montt usa e abusa da comédia depressiva para arrancar risos nervosos dos leitores. Quem quiser conhecer mais de seu trabalho pode acessar este link.

Juan Solo - Alejandro Jodorowsky e George Bess (Reservoir Books, 2018)

Eis o pacote completo com as aventuras do sicário Juan Solo, que tem uma origem insólita. Ainda bebê, foi abandonado num lixão de Huatulco City, em razão de ter nascido com cauda. Posteriormente, será encontrado por um anão travesti que o criará. Claro que uma história maluca como essa só poderia ter saído da mente desvairada do chileno Alejandro Jodorowsky. Seu parceiro de crime, desta vez, é George Bess, desenhista francês que ilustra com suave beleza o mundo de sordidez e perversão que será o habitat natural do protagonista. Com direito a um desconcertante plot twist no final, Juan Solo é um gibi sobre a distopia do crime organizado na América Latina, que clama para ser publicado no Brasil com a mais possível brevidade.