Rapidinhas #16 - Dia do quadrinho nacional 2022

Estamos de volta com mais uma rodada de rapidinhas. E, novamente, uma edição especial só com gibis nacionais para dar nossa singela contribuição aos festejos do dia do quadrinho nacional. E para abrir esta edição começamos falando da sexta Bienal de Quadrinhos de Curitiba, que ocorreu no segundo semestre de 2021. Especificando, vamos iniciar com os projetos desenvolvidos na Residência Notas e Traços da Bienal. No dia 05 de Novembro de 2021 aconteceu a exposição dos trabalhos que foram elaborados nesta Residência, que deu continuidade online para uma proposta de trabalho conjunto que já foi desenvolvida presencialmente em outras edições. Desta vez, capitaneada pelos grandes Luiz Gê e Arrigo Barnabé. O tema da Bienal era exatamente a relação entre música e quadrinhos, inspirado nas históricas colaborações entre este monstro das artes gráficas que é o Gê e o Kaiju das experimentações musicais que é Barnabé. E os convidados para este desafio foram as duplas Gabriel Góes e Fernando Nicknich, Silvanny Sivuca e Marília Marz, e Grazi Fonseca e Rodrigo Stradiotto. O objetivo dessas linhas não é esgotar estas obras, mas sim convidar todos a experimentá-las. (LN)  

por Márcio Jr, Marcos Maciel de Almeida, Bruno Porto e Lima Neto

Outro Lugar - Gabriel Góes e Fernando Nicknich

Em Outro Lugar, Góes e Nicknich parecem transformar uma expressão de preocupação odontológica em um pesadelo moébico (refiro-me à faixa, não ao Jean Giraud). O delírio dentário de Góes (cujo personagem e parte da HQ já foram vistos no jornal Pimba) se desfralda em dois sentidos iguais mas díspares em seus narradores. E nesse sentido, valores opostos perambulam por destroços (que lembram um Otomo reduzido aos traços mínimos, aos mais nervosos gestos) sem perceberem um ao outro, como se colocados de costas para um espelho. Como exercício de integração, a trilha narrada de Nicknich não é essencial à leitura, mas oferece UMA leitura. Nicknich ancora o plurisemantismo dos traços toscos das imagens de Góes em uma versão quase confessional. Uma história que não se integra, mas que caminha junto com sua versão visual de forma semelhante aos seus protagonistas, alheios à existência uma da outra. Experiência interessante, mas o bichinho do impresso morde forte e a fantasia de uma edição de papel acaba chamando mais atenção do que o produto final. Confira aqui. (LN)

O Recomeço é Sempre Hoje - Silvanny Sivuca e Marília Marz

Assim como o quadrinho de Góes e Nicknich, O Recomeço é Sempre Hoje, de Sivuca e Marz, opta por sacrificar o tempo subjetivo do leitor de quadrinhos pelo tempo objetivo das batidas musicais. A diferença aqui está no templo desse sacrifício. Da página da Bienal, passa-se para o Youtube e, desta forma, vai-se o tempo e também se perdem os percursos dos olhares. O recorte da tela do vídeo guia o olhar através da grande imagem criada por Marília Marz, um mural multicolorido e variado, vivo. Mas o recorte é também generoso, remixa a imagem com desenvoltura criando outros olhares até seu momento final em que o todo se revela. Há uma sincronia entre vídeo e quadrinho. Mas uma sincronia que é ditada pelos caprichos do audiovisual e as estratégias padronizadas de seus programas de edição. Essa relação se torna mais aparente quando se sabe que houve impressões da imagem de Marz em cartaz, ou seja, há uma encarnação do projeto em que o olhar está livre do abraço apertado do vídeo, que pareceu sussurrar “confiem em mim” para a HQ durante a produção, tal qual Kaa no ouvido de Mowgli. Neste caso, a integração entre a música de Sivuca e a HQ de Marz acontece, mas de forma forçosa e inescapável. Entretanto, inescapável também foi (e é) a pandemia que se espalhou pelo mundo e mudou o curso de incontáveis intenções. E livre do vídeo, O Recomeço é Sempre Hoje poderia ter se tornado um exercício mais rico de adequação da espacialidade da página à linearidade da música. Mas, como está agora, ainda é um experimento louvável de visualidade sonora. Confira aqui. (LN)

 Intervalos - Grazi Fonseca e Rodrigo Stradiotto  

Antes de falar de Intervalos, mando uma real: ao comparar os projetos do Residência Notas e Traços eu não tenho a intenção de criar uma hierarquia qualitativa entre eles, mas sim de montar uma espécie de percurso do problema que foi proposto. Também quero deixar claro que não pesquiso “hqtrõnicas” há alguns anos e talvez por causa disso a experiência que tive com essa HQ de Grazi Fonseca e o músico Rodrigo Stradiotto tenha sido tão impactante pra mim. E foi. Ao propor articular música e quadrinhos, é possível identificar vários vetores de integração, mas nenhum destes vetores se entregam facilmente a uma colaboração. A HQ tem sua linearidade, mas é uma linearidade que se dispõe em um espaço que a predetermina. A linearidade musical é incontornável na maioria das vezes (sempre lembro da tira do Hugo, de Laerte, que toca todas as músicas do mundo de uma vez em um segundo e derrete a cabeça), e o espaço que reverbera é o real. A HQ tem uma forma específica de se entregar à manipulação de seu leitor, enquanto que a manipulação da música geralmente é território dos músicos (isso até a invenção de Guitar Hero né). Intervalos é uma experiência que integra estes vetores em mais alguns outros. O tom aqui é o do equilíbrio. À arte diagramática e rica de formas e abstrações de Fonseca se soma a qualidade de um menu de opções. Cada opção é acompanhada de sonoridades e ritmos distintos que vão gradativamente se somando no compasso da leitura. O ato de ler torna-se ato de compor, o tempo subjetivo de leitura se expressa musicalmente e as narrativas vão se desabrochando, hora engraçadas e hora enigmáticas. Sempre equilibrando (às vezes propenso a tropeções técnicos, é verdade) a obra, os autores e o leitor, levando a experiência de quadrinhos para a música e criando algo novo. Falei demais, vão lá ver.  Confira aqui. (LN)

Colocs du Temps - André Valente (Webtoon Factory, 2021) 

Essa HQ digital – tecnicamente, um Mobile Comic ou webtoon – já havia sido anunciada por aqui para julho de 2020, mas a pandemia desandou toda a programação do braço digital da editora belga Dupuis (de Spirou, Smurfs, Lucky Luke, Gaston Lagaffe, entre outros). Com roteiro e desenhos de André Valente e cores de Alice Prina, essa série de humor e ficção científica gira em torno de um cínico viajante do tempo que vem de um futuro distópico e passa a ser roomate de si mesmo no presente, quando ainda é inocente e puro. As composições espetaculares de Valente exploram de múltiplas maneiras o Canvas Infinito proposto por McCloud há três décadas e denotam o domínio do autor neste relativamente recente formato narrativo. Destaca-se ainda o cuidadoso e rico trabalho de lettering de cada episódio, e a variedade enciclopédica de linguagens adotada. Disponível gratuitamente em francês e inglês, a série de 12 episódios começou a ser publicada no app e no site da editora em dezembro de 2021. (BP

Popeye: Um homem ao mar - Ozanam & Lelis, com tradução de Márcio Rodrigues e Mônica Corrêa (Skript, 2021) 

Outra HQ que foi anunciada por aqui, só que desta vez no Lasercast #19 , quando conversamos com o desenhista Lelis e um dos tradutores desta edição brasileira, Márcio Rodrigues. Mesmo quem escutou o episódio vai se espantar ao saber que a belíssima arte de Lelis, nosso mais versátil aquarelista em atividade quadrinística, foi toda feita digitalmente. Esse é o principal encanto deste álbum, que desenvolve uma versão não-canônica do famoso personagem que já se encontra em domínio público na Europa — onde a HQ foi primeiramente publicada — há cerca de uma década. Enquanto personagem em si, o Popeye desta graphic novel nem se afasta muito daquele que ganhou o mundo infantil principalmente através dos desenhos animados: continua um tiparrão simples, de bom coração e pavio curto. O que é bastante diferente, entretanto, é o cenário onde a trama se desenrola — o castigado porto de Detroit em plena decadência sócio-econômica dos anos 1970 — e o elenco de coadjuvantes, livremente inspirados nos originais. Não é o fan service que se vê nas releituras cinematográficas de hoje em dia, mas quem conhece o personagem das tiras de E.C. Segar, Bud Sagendorf e Bobby London certamente vai ligar os pontos. A bem cuidada edição da Skript — que alcançou 1738% da meta incial em sua campanha de financiamento coletivo — possui ainda um prefácio com dados e curiosidades sobre o personagem (e, estranhamente, fichas técnicas em páginas diferentes para a edição nacional e para a francesa Michel Lafon). (BP)

Batata-Quente – Diego Gerlach (Vibe Tronxa Comix, 2019) 

Peter Parker, Olavo de Carvalho, Stan Lee e Steve Ditko estrelam a aventura mais estranha do Homem-Aranha, que desta vez luta não apenas pela sobrevivência, mas pelo direito de existir num mundo em que o altruísmo já perdeu qualquer sentido. Diego Gerlach certamente consumiu doses cavalares de gibis do amigão da vizinhança para criar esta fanfarrônica mistura de reverência e paródia, na qual a metalinguagem mostra sua face mais perversa. Aliás, o quadrinista natural de São Leopoldo-RS vem se especializando em criar versões atualizadas de personagens clássicos, como vimos em Noia – Uma História de Vingança (Escória Comix, 2017) e Ano do Bumerangue (Independente, 2010), protagonizadas por Cebolinha e Fantasma, respectivamente. Numa história em que o autor não tem medo de escolher lado na eterna querela Lee x Ditko, Gerlach mostra que grandes poderes resultam em grandes batatas-quentes, especialmente para os pobres incautos que resolvem assumir essa bronca. Pouco a pouco, Gerlach vem se tornando um dos grandes nomes do quadrinho underground brasileiro, com um trabalho consistente a partir de obras como Pinacoderal: Rudimentos da Linguagem (Pé de Cabra, 2019) (leia mais aqui) e a série Know-Haole (Vibe Tronxa Comix, 2013-2018). Batata-Quente conta ainda com uma página final (impagável) relacionando todo o elenco da HQ e uma capa vertiginosa do brasiliense Gabriel Góes. Imperdível. (MMA)

TIGER FIST ACTION Nº 1 - Gabriel Góes (Pé de Cabra, 2021) 

A revolução não será televisionada. O melhor cinema não é aquele feito por Hollywood. Música que presta não toca no rádio. Se você não concorda com tais generalizações grosseiras é porque sua capacidade de interpretação do mundo é ainda mais grosseira que elas. A regra é clara e vale pros quadrinhos também. Incluindo os brazucas. É no underground que a vida pulsa mais forte. Taí a Pé de Cabra – do enfant terrible Carlos Panhoca – que não me deixa mentir (sozinho).   

Tiger Fist Action nº 1 é uma belezura parida da prancheta de um dos autores mais sui generis do país, o brasiliense Gabriel Góes. Hot in the shade, Góes é dono de uma obra tão inusitada e diversa que beira a esquizofrenia. Sua variedade de estilos e abordagens possui poucos paralelos, dentro e fora da Bozolândia. Sem exceção, seus quadrinhos transbordam excelência gráfica e delírios imaginativos de altíssima octanagem – como comprova o gibi em questão. 

O maior saxofonista de free jazz alternativo do mundo sofre um acidente misterioso e tem seus punhos substituídos por duas cabeças de tigre. Se isso, por si só, não justificar seu interesse pela publicação, desista. Mas a coisa não para por aí. Tiger Fist Action é simultaneamente uma declaração de amor e uma total subversão dos quadrinhos de massa: formato americano, impressão colorida em papel vagabundo, seção de cartas e tudo que compõe o imaginário de quem cresceu à base de fast food cultural. E tal qual os gibis produzidos industrialmente, Góes levanta um time de parceiros de primeira linha, com nomes como Batista, Arnaldo Branco e Pedro D’Apremont. Que venham logo os próximos números. (MJR)

VELHO SACUDO Nº 0 - Chico Félix (Pé de Cabra, 2021) 

Também em formato americano, mas em preto e branco, Velho Sacudo é a mais nova e indecente empreitada de Chico Félix. O título já diz (quase) tudo: escatologia mil grau sobre um idoso superpoderoso cujas bolas estão sempre escapando pelas barras da bermuda.  

Chico Félix é um desenhista de altíssimo gabarito, digno da melhor estirpe dos underground comix norte-americanos – que parecem ser sua maior influência. Na verdade, sua maior influência é o punk rock, porém não custa lembrar que underground comix e rock estão umbilicalmente ligados. Ou seja, está tudo em casa.  

Com seu traço urgente e histriônico – mas longe de ser tosco – turbinado pela exímia arte-final – que prima pela perfeição da pincelada aliada ao precioso uso de retículas –, Chico Félix poderia estar em qualquer gibi doido da Fantagraphics. Ou mesmo numa Zap Comix. Ou ainda na criação de concepts para animações do calibre de Ren & Stimpy. Ou nas capas dos Ramones. Mas é um engano pensar que o cara se garante apenas pelo desenho. Chico Félix é um remanescente de uma tradição cada vez mais rara: a do humor engraçado – por mais retardado que seja. Talvez até por isso.  (MJR