MELHORES LEITURAS DE 2021 - MARCÃO MACIEL

por Marcão Maciel

2021 foi um ano trash. Depois da eclosão da pandemia no ano anterior, todos esperávamos um pouco de alívio. Não foi o que aconteceu. O bicho continuou pegando pra geral, o vírus continuou se espalhando e muitas pessoas queridas acabaram partindo. Apesar disso, fazendo um balanço geral da situação, acredito que a sensação é mais de vitória que de melancolia, dado o tamanho dos desafios que todos tivemos de superar. E felizmente existe uma coisa chamada gibi que – mais do que nunca – serviu para aliviar as pesadas cargas de stress e de trabalho, que só teimaram em aumentar. Dentre a enormidade de títulos que li, destaco, abaixo, sem ordem de preferência, meus melhores companheiros de aventura, responsáveis por manter minha sanidade no ano que passou. (MMA)

Portugal – Cyril Pedrosa (Bao Publishing, 2012): Para homens sem talento para o desenho, como eu, o uso da perspectiva é quase física quântica, dado seu grau de complexidade para não iniciados. Deve ter sido por isso que fiquei tão embasbacado ao ver a capa desse gibi, que mostra um sujeito pensando na vida em meio a roupas e varais de um prédio de periferia num bairro português. O cidadão em questão é ninguém menos que o alter-ego do autor, o francês de origem portuguesa Cyril Pedrosa, que parte para a terrinha em busca de inspiração. Numa narrativa guiada por cores e desenhos que oscilam entre efeitos visuais etílicos e motivos de contos de fada, Pedrosa conta a história de um quadrinista em busca não apenas de entusiasmo pela vida, mas à procura de si mesmo.

L’ombra venuta dal tempo vols 1 e 2 – Gou Tanabe (J-POP, 2020): O conto mais bizarro de HP Lovecraft ganhou adaptação à altura por cortesia do mangaká Gou Tanabe, que vem se especializando em verter para a nona arte a fina flor dos contos do mestre norte-americano do horror cósmico. Numa história que mistura antigas civilizações alienígenas, raptos trans-temporais e possessão demoníaca, Tanabe consegue, por meio de desenhos detalhistas, transportar os leitores para uma dimensão onde a loucura é a única garantia. Mais aqui.

Tempête sur Bangui, 4 volumes – Didier Kassaï (Les Humanoïdes Associés, 2018): 2021 foi o ano em que os quadrinhos africanos começaram a despontar com mais força no Brasil, graças ao trabalho do incansável divulgador Márcio Rodrigues. Foi graças a seu canal que tomei conhecimento do trabalho do quadrinista natural da República Centro-Africana Didier Kassaï, que pinta em “Tempestade sobre Bangui” um retrato de seu país, à beira da guerra civil. Usando personagens desenhados no estilo de Tintim, numa espécie de linha clara africana, Kassaï desvela a triste sina de seu povo e de outros do continente, frequentemente esquecidos pela comunidade internacional e vitimizados pelas maquinações de facções que visam somente a manutenção/obtenção de poderes e privilégios. A coleção completa está disponível no kindle da amazon por 60 pilas. Pechincha das boas.

Kitaro vols 1 e 2 (The birth of Kitaro e Kitaro meets the Nurarihyon) Shigeru Mizuki (Drawn and Quarterly, 2016) e Showa, vols 1 e 2 – Shigeru Mizuki (Drawn and Quarterly, 2013): O que mais falta falar sobre Shigeru Mizuki? Afinal, trata-se de um dos mais prolíficos e talentosos mangakás que já habitaram a face da Terra. Eis um cara que não estava para brincadeira. O sujeito era tão obsessivo pela sua arte que nem mesmo a perda de seu braço dominante durante a II Guerra Mundial impediu que ele criasse mangás inacreditáveis, que tratam de temas tão diversos quanto História Mundial, seres fantásticos e a experiência de vida como militar.

 

Kitaro: Kitaro é um yokai (criatura sobrenatural) nascido num cemitério após a morte de sua mãe. Seu pai, após reencarnar num olho (sim, um olho), atua como coadjuvante de suas aventuras. Como se pode perceber, o surrealismo é a tônica do gibi, que se utiliza de elementos tão humorísticos quanto bizarros. As situações absurdas em que Kitaro, o último dos yokais, se envolve, apesar de tragicamente hilárias, servem como metáfora para as precárias condições de vida no Japão no pós II GM. A exitosa trajetória de Kitaro nos mangás serviu de trampolim para que o personagem virasse estrela de diversas mídias, como animes, videogames e filmes de live-action. Nada mais justo.

 Showa: As motivações da entrada do Japão na II GM ao lado dos países do Eixo, bem como o sonho de conquista dos militares nipônicos, que se viam como líderes de uma área de prosperidade na Ásia, são o pano de fundo dessa narrativa dramática, não tão conhecida no Ocidente. Contada segundo três pontos de vista: o histórico-documental, o da própria vivência do autor, e aquele de um yokai fanfarrão (Rat Man), bastante presente na saga de Kitaro, Showa é a saga de um povo tragado para um conflito sangrento, justificado por uma  pretensa invencibilidade, baseada no mito de que o país asiático era protegido pelos deuses e na crença de que o imperador Hiroíto era uma divindade. Com uma arte de tirar o fôlego, que varia conforme a perspectiva individual/nacional de cada capítulo, Mizuki oferece ao leitor um bilhete de camarote para testemunhar a desgraça de uma nação e dos países por ela vitimados.  

Stuck Rubber Baby – Quando viemos ao mundo – Howard Cruse (Conrad, 2021): Combinando romance, luta por auto-aceitação e busca por igualdade de direitos civis, o premiado gibi de Howard Cruse mostra a batalha cotidiana de pessoas idealistas e corajosas, que não se curvam ante à opressão e ao preconceito. Embora achasse que SRB focasse apenas na questão LGBT, fiquei positivamente surpreso ao descobrir que o gibi também é um libelo contra o racismo. Por meio de uma arte incrivelmente rica – todos os personagens têm rosto e linguagem corporal próprios – Cruse coloca uma lupa nas arriscadas manifestações populares ocorridas no sul dos Estados Unidos na década de 1960. A narrativa - tensa e envolvente - não permite que o leitor largue o gibi, dado o carisma dos personagens e o medo de que algo possa acontecer com eles. Afinal de contas, nunca se sabe quem será a próxima vítima da intolerância. Golaço da Conrad. 

Y – O Último Homem vols 1 a 10 – Brian K. Vaughan e Pia Guerra (Panini, 2009-2012): Demorei um pouco para me debruçar sobre a famosa série autoral de Brian K. Vaughan, mas a espera valeu a pena. Depois das 50 edições da incrível série Ex-Machina, estava na hora de ler os também 50 números da saga de Yorick Brown, sujeito que, de um dia para o outro, se torna o último homem vivo no planeta. Como costuma acontecer nas histórias do competente argumentista norte-americano, o elenco de apoio é matador e as reviravoltas são a única certeza. Com trocentas tramas paralelas acontecendo – todas devidamente solucionadas até o fim da série – Vaughan não deixa a peteca cair, conduzindo com maestria a história até o apoteótico e surpreendente gran finale. Exagero meu? Só lendo para saber.

Slam Dunk vols 1 a 3 – Takehiko Inoue (JBC, 2016): Slam Dunk é um mangá simultaneamente estranho e divertido. Foge dos clichês de histórias esportivas adolescentes e apresenta personagens tridimensionais, altamente doidões. As situações apresentadas são tão absurdas quanto cômicas. O mangá fala sobre a montagem do time de basquete da escola Shohoku, num processo que será longo e atribulado. Vai envolver idas e vindas, chantagem, pancadaria, interesses amorosos e disputas por um lugar ao sol. Já imaginou assistir a um filme do John Hughes made in Japan? É mais ou menos por aí. A estrela da série, Hanamichi, é um capítulo à parte, por fugir dos estereótipos esperados para protagonistas. É esquisitão, troglodita e não muito afeito ao bom mocismo. Tipo aqueles valentões da escola que a gente amava odiar. Se bem que, com o passar do tempo, nossa tendência será torcer para ele e seu time de marmanjos desajustados. Ou não.

Heartburst – Rick Veitch (Marvel, 1984): Numa galáxia não muito distante, o amor inter-racial é um crime imperdoável, como o jovem Sunoco Firestone vai descobrir da pior maneira possível. Num futuro distópico em que a humanidade colonizou vários planetas, mas não deixou para trás conservadorismos tacanhos, o herói involuntário tenta fazer prevalecer seu sentimento por uma garota de raça considerada inferior, mesmo que isso signifique enfrentar um mundo inteiro. Eis um bom gibi para dar na cara dos detratores de Rick Veitch, considerado por muitos como um desenhista apenas regular. Em Heartburst a arte do quadrinista underground norte-americano alcança seu zênite e continua quebrando tabus, muito para o desespero dos chamados cidadãos de bem.

 

L’estate scorsa (O verão passado) – Paolo Cattaneo (Canicola, 2015): Numa aventura no melhor estilo Goonies e Conta Comigo, cinco amigos entram numa floresta para se vingar de um fato ocorrido alguns anos antes. E é claro que eles vão quebrar a cara e penar para sobreviver a esta experiência que os marcará para sempre. De quebra há também um mistério envolvendo o pai de um dos garotos, cujo quebra-cabeça só será completado pelos leitores mais atentos. Depois do sensacional Manuelone (leia mais aqui), Paolo Cattaneo continua sua jornada para se firmar como um dos grandes nomes do quadrinho alternativo italiano. Sem abrir mão de experimentalismos, lança uma HQ totalmente a lápis, gerando um efeito distorcido, numa espécie de rascunho refinado. Esqueça Stranger Things e outras bobagens moldadas por algoritmos para agradar adultos babões. L’estate scorsa mistura os sonhos e anseios da juventude dos anos de 1990 numa injeção de amizade, companheirismo e – sobretudo – realidade.

Matadero Cinco o La cruzada de los niños: Una danza por deber con la muerte – Ryan North e Albert Monteys (Astiberri, 2021): Nesta adaptação para as HQs do clássico maior de Kurt Vonnegut, Ryan North e Albert Monteys se esmeram para mostrar o conto do homem que foi abduzido por uma raça alienígena e passou a ver o tempo de forma integral, enxergando simultaneamente passado, presente e futuro. Dentista, marido infiel, prisioneiro de guerra norte-americano e sobrevivente do sangrento bombardeiro de Dresden são algumas das fases de vida de Billy Pilgrim, abençoado/amaldiçoado com a capacidade de ver todos os dias de sua vida, inclusive aquele de sua morte. Um dos grandes méritos do gibi é a capacidade dos autores em transmitir a sensação de estranhamento e não-pertencimento de Billy, por meio de inúmeros flashbacks e flashforwards, decupados de maneira precisa para lançar o leitor num desconfortável caleidoscópio de emoções.

Há referências a outros clássicos sci-fi, como o Aleph de Borges, aparições do próprio Vonnegut, e utilização de diversos recursos quadrinísticos/literários, como tiras, notas de rodapé, linhas temporais, entre outros, para exemplificar o esfacelamento da condição mental de Billy. Quer multiplicar sua experiência catártica? Leia o gibi de forma picada. O sentimento de estar perdido, como o protagonista, será ainda mais inebriante.

O único senão do gibi é a ausência de uma figura importante do livro: os homens centopeia, que nada mais são que pessoas observadas por meio da visão quadridimensional, que inclui o tempo. Teria sido interessante ver como Monteys desenharia essas estranhas imagens, que mostram as pessoas em todos os momentos do tempo. De qualquer forma, tá valendo. Matadero Cinco honra de forma magistral o material original e já entra, na minha modesta opinião, no rol dos grandes lançamentos da década de 2020.