Damasco: protesto por uma turba de silenciosos + Rapidinhas #19

Damasco: protesto por uma turba de silenciosos

­­Damasco - Alexandre S. Lourenço e Lielson Zeni (Brasa, 2023)

por Ciro I. Marcondes

Um dos meus filmes favoritos da vida é A Turba (The Crowd, 1928), de King Vidor, sobre um homem comum, no início do capitalismo moderno norte-americano, que vê seus sonhos serem esmigalhados pelas contingências do trabalho e do casamento, engolido na multidão do anonimato. Este filme mudo antecipa a desilusão do american dream e é realizado ao mesmo tempo com uma pegada de vanguarda histórica e outra do futuro neorrealismo. Um primor para os padrões da época, introduziu o famoso tropo que mostra um cidadão diminuto trabalhando em meio a uma infinidade de mesas de trabalho, numa corporação. Tropo este bastante utilizado pelo ilustrador Alexandre S. Lourenço e pelo roteirista e editor Lielson Zeni em Damasco, quadrinho de 2023 lançado pela editora Brasa que teve muito boa repercussão crítica.

A Turba: clássico filme americano anticapitalista

Já viu isso em algum lugar?

A visão sobre o trabalho em “damasco”

Trago A Turba não apenas pela temática semelhante à de Damasco, mas também porque o filme de Vidor evoca a mesma sensação de esmagamento que a vida moderna imprime sobre o invisível “cidadão comum”: vida moderna no início do século XX, no filme, e no início do século XXI, no quadrinho. Afinal, Damasco conta a história de Saulo, um homem chegando à meia idade que vive uma vida monótona e sem propósito, numa selva de pedra, e que certo dia decide simplesmente vender todas as suas coisas e desaparecer.

Esta sinopse, porém, pode ser enganosa. Poderíamos imaginar que Saulo computa algum tipo de redenção ao fazer isso: fugir da sociedade neoliberal do consumo. Damasco, no entanto, não é (apenas) sobre isso. Está mais centrado no processo da desaparição em si, através dos mais multifacetados recursos de linguagem em HQ esbanjados pelo talentoso Lourenço. São páginas inteiras para mostrar um objeto em destaque, além de todo tipo de contorcionismo com a ordem de leitura e forma dos quadros, tratamento semântico das cores, além da redução da velocidade de leitura, em algumas páginas, ao infinitesimal.

Em dado momento, tanta recursividade gráfica ecoa uma certa frieza presente dentro da própria história. Afinal, o mundo de Saulo, solitário e de alguma forma inútil, é gélido. Não que lhe falte sensibilidade: ele é um músico indie amador, afeito a delicadezas, que tem um gato como pet, e que tem como namorada Raquel, uma garota entusiasmada, mas que também se sente esmagada pelas pressões do capitalismo tardio.

A intrincada narrativa de lourenço

Nada disso, porém, impede que Saulo faça o que faz. De alguma forma obliterada e abrupta, ele age como Bartleby: simplesmente decide parar. Neste sentido, Damasco ecoa O Homem sem Talento, de Yoshiharo Tsuge, também sobre um tipo autoconsciente de desistência da vida, e Na Prisão, de Kazuichi Hanawa, também sobre rotinas que na verdade são estados de espírito em si. É claro que, dado o caráter infográfico do quadrinho, as referências mais óbvias são caras como Chris Ware e Chester Brown, mas não me parece absurdo dizer que as influências de Lourenço e Zeni se estendem até o mangá autoral.

Em Damasco, passamos por plantas de apartamentos, escritórios, cidades. Seu lado cerebral se sobressai mesmo acima dos arroubos de delicadeza sugeridos na relação entre Saulo e Raquel. Coisas como videogames, gatos e bandas de rock se tornam itens solitários da vida moderna. No final das contas, fica estabelecida a covardia de Saulo e a valentia de Raquel.

Porém, estará Saulo mesmo errado? Damasco tem esse nome porque, como subtexto, nas mídias que aparecem no quadrinho, vamos lendo e vendo, de rabo de olho, notícias terríveis sobre a guerra na Síria. Assim como, em A Turba, a destruição de um homem ocorre ainda sob as sombras da Primeira Guerra Mundial, aqui também coletividade e individualidade se amarram numa perspectiva que encontra dificuldade em achar saídas para a vida moderna.

Neste sentido, a narrativa labiríntica de Lourenço pelo íntimo de Saulo se justifica, como se cada ser humano do nosso bruto mundo tivesse um Minotauro dentro de si, pronto para triturar sonhos nem sempre tão mesquinhos assim. Às vezes são apenas sonhos honestos mesmo. E Damasco deve ser mesmo, afinal de contas, sobre honestidade, num mundo em tudo o mais desonesto.

Rapidinhas

Estamos Quase em Casa – Diogo Hayashi (Ugra Press, 2023): Este belo quadrinho consegue ser sincrético (no melhor sentido possível) a ponto de fazer dialogarem coisas como Yoshiharu Tsuge, Adrian Tomine e Junji Ito sem perder a grande originalidade de sua proposta e execução. Diogo Hayashi nos presenteia com espécie de contos em quadrinhos que realizam um belo trabalho de fabular mitos e histórias aterradoras que têm algo de ancestral em cenários urbanos modernos, que não deixam de revelar esse Brasil complexo da imigração japonesa. O que mais me impressionou aqui foi o uso de um devir animal (monstruoso como qualquer animal) para contar fábulas morais, que resvalam no absurdo, sem conclusão ou direcionamento, e que não revelam mais que a fatalidade da própria vida. Uma grata surpresa. (CIM)

Material Poético – Alves (Brasa, 2023): Os quadrinhos de Evandro Alves possuem uma propriedade que associo a uma “produção de presença” que vemos diluída em diversas HQs que eventualmente se aventuram em obstruir o senso narrativo para estacionar na contemplação. Não se produz, nesse caso, o sentido, mas sim a própria sensação corpórea da presença. A diferença é que Alves traduz para essa sensação cada quadro desenhado, cada momento ínfimo (e infinito) buscado. As associações são rarefeitas e a compreensão racional comprometida, mas, de fato, ao lermos seus quadrinhos simples com grade 2x2, estamos imersos no tempo imemorial do cerrado, com toda a beleza existencial que “apenas ser” nos proporciona. É esse o vocabulário da poesia gráfica, e esse autor arrebata ao reproduzir esse trabalho com o tempo centenas de vezes nesse material sensível e distinto. (CIM)

Chalabala – Emilly Bonna (Escória Comix, 2023): A despeito de ser uma das mais ultrajantes histórias em quadrinhos já feitas no Brasil (isso incluindo o catálogo da própria Escória Comix), Chalabala tem sim algo de humanizante. Vejamos: aqui encontramos uma família de desvalidos e degenerados capazes de fazer corar o povo de O Massacre da Serra Elétrica, e que acaba sendo protagonista de temas como suicídio, exumação de cadáveres, escravidão, felação num rato (!) e todo tipo de representação grotesca. Porém, tirando toda a escatologia e elementos de ficção cientifica em função desse horror todo, esta opera prima de Emilly Bonna é capaz de nos comover com seus personagens desgraçados como nas primeiras histórias de Muterelli, tais quais um deficiente mental escravizado em seu próprio quintal, um leproso que possui somente metade do corpo e uma velha que sobrevive à base de um limão eletrificado como num experimento científico de colégio.

Chalabala é um gibi diabólico, mas a intenção da autora em trabalhar esse grupo de morlocks como legítimos seres humanos (obviamente, sem qualquer traço de pieguice) produz uma dupla reação no valente leitor que se aventurar pelas suas páginas: de um lado, o horror a tudo que é abjeto revelado aqui; por outro, uma convalescente compaixão por esses miseráveis em busca também de amor, afeto, sexo e tudo que é humano (sendo apenas parte disso ironia). O gibi é um tanto confuso, e ligar todos os pontos da rocambolesca trama torna-se um desafio mais para o final, mas o panorama geral da coisa toda não deixa de ser uma brilhante aquisição para a já rica tradição do quadrinho “podre” brazuca. (CIM)