Radar Raio Laser: quadrinistas para se ficar de olho

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Esta nova seção “Radar Raio Laser” tem a utilidade de apresentar autores, quadrinhos, sites, perfis - enfim, coisas relacionadas ao mundo das HQs - que estão na nossa mira, em que botamos fé! De forma alguma temos a pretensão de “descobrir a roda” ou sermos exaustivos a respeito. Alguns artistas que estamos apresentando aqui já têm estrada, mas, mesmo assim, achamos que precisam ser ainda mais divulgados. Também miramos, como público para esses textos, fãs de quadrinhos de diferentes gradações (por assim dizer). A ideia é trazer um pouco de novidade sobre estes artistas, para todo mundo. (CIM)

por Marcos Maciel de Almeida, Bruno Porto, Ciro I. Marcondes e Márcio Jr.

Wet Nightmare – Weird Comix # 1 (2015)

Wet Nightmare – Weird Comix # 1 (2015)

Fábio Vermelho – Agonia, luxúria e êxtase

Paraense radicado em Curitiba, Fábio Vermelho incorporou desde cedo o espírito do “do it yourself”. Ao invés de esperar ser descoberto pelo mercado gringo, optou por produzir seu próprio gibi – Weird Comix – e vender para o exterior. Com tiragens variando entre 50 e 100 edições, a magazine, lançada em 2015, já está no número 10 e tem conteúdo integralmente criado pelo quadrinista. Grande fã do formato revista, Vermelho segue a fórmula clássica que caracteriza esse tipo de publicação: histórias curtas e longas, ilustrações e reportagens.  O nome de guerra do autor deve-se a um apelido de infância e tem uma história tão simples quanto curiosa. Certo dia, havia dois Fábios no mesmo local e, para diferenciá-los, os amigos decidiram chamá-los pela cor da camiseta que usavam. Eis aí a origem secreta de Vermelho, quadrinista que tem a música como fonte de inspiração. Desenhista compulsivo que começou influenciado pelo mangá, migrou posteriormente para o quadrinho underground, rezando no catecismo do guru maior Robert Crumb.

A música se faz presente na vida do autor de várias maneiras, a começar pelo visual psychobilly de Fábio. A agressividade rítmica e as letras de bandas como The Cramps reverberam forte na mente do artista, sugerindo histórias bizarras que não o deixarão descansar enquanto não forem transpostas para o papel. É a partir daí que nasce o mundo particular de Vermelho, marcado por violência gore, lascívia e depravação. Ler seus quadrinhos é mergulhar num oceano de referências que vão do Hellraiser de Clive Barker à escatologia escrachada de Marcatti.  E felizes são os artistas que, como Fábio, conseguem absorvê-las e transformá-las em algo original e com pedigree próprio.

O traço de Fábio é altamente detalhista. Como é de praxe acontecer com quadrinistas que são primordialmente desenhistas, quase não há espaços deixados em branco. O vazio – quando não engolido pelo preto chapado – é preenchido por hachuras rústicas e afiadas, que cortam ao mínimo contato. E que (des)prazer é conhecer os monstros e alienígenas que habitam esse universo de insanidade, materializações inequívocas do que há de mais abjeto e perverso nos recônditos da mente humana.

Outro ingrediente marcante nos quadrinhos de Fábio, além da música e do terror, é o sexo, ou, mais propriamente, a busca pela satisfação sexual. Essa procura incessante não conhece limites e não se refreia quando descobre sua razão de ser. Vermelho convida o leitor a se tornar uma espécie de voyeur privilegiado desta ilha de luxúria.  Ali estão espiãs alienígenas entregues ao sexo solitário, garotas excitadas com pesadelos disformes e todos os tipos de fetiches que se possa imaginar. É como explica o próprio autor: “acho que gosto de pensar nas taras e perversões das pessoas e ao mesmo tempo mostrar que tipo de loucura pode revolver tudo isso”. A ambientação das tramas, em sua grande maioria, é o cenário rockabilly norte americano dos anos 50. A motivação para isso é tão insólita quanto lógica: “Gosto de distorcer a ideia de que nos anos 50 tudo era puro, inocente e colorido, como se as pessoas não fossem pervertidas e sujas desde o início dos tempos”.

Alien girls just want have fun

Alien girls just want have fun

Talvez o maior mérito do autor seja lançar o leitor numa montanha-russa de emoções, fazendo com que ele tenha que enfrentar situações nauseantes, deparar-se com cenas grotescas ou mesmo se surpreender com eventual cumplicidade diante das perversões ali mostradas. Vermelho chacoalha as bases daqueles que decidem conhecer seu mundo, deixando-os cara a cara com suas taras, medos e limites. Em suma, adentrar a mente de Vermelho é uma experiência que nunca suscitará indiferença. E esse, acredito, é o maior elogio que um artista pode receber. 

Fábio Vermelho pode ser encontrado no instagram (@fabiovermelho), Facebook e na loja virtual de Weird Comix. Suas mais recentes publicações “O Deplorável Caso do Dr. Milton” e “Assassinato na Casa” estão disponíveis na Escória Comix e na Ugra, respectivamente. (MMA)

Rebeldes sem causa, mas com tesão

Rebeldes sem causa, mas com tesão

André Valente – Lápis para toda obra

O quadrinista André Valente, 38 completos neste domingo último, vive em Angoulême, a Meca francesa da Bande Dessinée, para onde se mudou há quatro anos para cursar o Mestrado em Quadrinhos na prestigiosa ÉESI - Ecole Européenne Supérieure de l'Image. Aprovado com nota máxima e recomendação para publicar sua pesquisa sobre as relações entre estrutura musical e quadrinhos - orientada por Thierry Smolderen (coautor dos premiados álbuns Souvenirs de l’empire de l’Atome e Été diabolik, entre outras) e pelo pesquisador e editor Lambert Barthélemy - emendou no doutorado. Na cidade que abriga o maior e mais tradicional evento de quadrinhos da França, esse viés acadêmico se mistura com a produção de e sobre quadrinhos. Paralela à sua atuação como quadrinista, desde 2018 Valente ministra disciplinas de práticas editoriais, webcomics e fanzines no Mestrado da ÉESI, além de eventuais workshops em lugares singulares, como a Armênia. Durante a edição do ano passado do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, ele assinou a curadoria de uma exposição sobre o trabalho que o veterano cartunista Yvan Guillo - vencedor da premiação anual que a ÉESI concede a ex-alunos - produz sob a alcunha de Samplerman.

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Valente já exercitara esse olhar sobre o trabalho de outros - natural no pesquisador acadêmico - em outras oportunidades, como quando co-editou, com Bebel Abreu, a coleção de livros “Com a Palavra, os Ilustradores” (Mandacaru, 2014), sobre as obras de Roberto Negreiros, Ale Kalko e Orlando Pedroso. Depois de figurar em algumas publicações independentes francesas e estadunidenses (e, claro, em uma extensa lista de brasileiras), Valente passou a colaborar, desde o ano passado, com a revista de humor Fluide Glacial. Na conversa que tivemos no início do ano , admitiu que como nem sempre seus roteiros emplacam devido ao peculiar humor francês, vem intercalando HQs em que assina roteiro e arte com parcerias com outros roteiristas, como Jorge Bernstein.

A produção autoral de André Valente não surgiu da noite para o dia. Nascido em Florianópolis, estudou parte do ensino médio em São Paulo - onde fez cursos na finada Fábrica de Quadrinhos - e formou-se em Artes Plásticas pela Universidade de Brasília, onde atuaria posteriormente como professor substituto de Desenho. Em duas décadas de atuação profissional, mostrou-se lápis para toda obra. Por mais de dez anos, foi sócio de Eduardo Belga e Santiago Mourão na agência brasiliense de ilustração Ilustrativa, atendendo de clientes corporativos (Banco do Brasil, Caixa Econômica) a diversos veículos de notícias como Correio Braziliense, BBC de Londres e as revistas Superinteressante e Mundo Estranho da Editora Abril (onde também trabalhou). Como seria de se esperar, muitos desses projetos não eram necessariamente de cunho autoral, mas permitiram a ele exercitar diferentes aspectos do desenho e da comunicação visual. Assim como quando emulava o traço de outros desenhistas para quem fazia assistência de arte, no início de sua carreira, seu trabalho muitas vezes é invisível. Ele imitou à perfeição os estilos de letreiramento de Fábio Zimbres e Liniers, respectivamente, na versão em inglês de Yukio Miura (publicada pela Bebel Books em 2017 como Soccer no Hanashi) e na tradução visual dos balões e legendas de 500 tiras do argentino que itineraram pelo Brasil entre 2012-2015 na mostra Macanudismo. Esta última epopéia ganhou inclusive um registro em quadrinhos, Mi propio Macanudismo (também publicado em 2017 pela Bebel Books), desenvolvido durante uma oficina que Valente fez com Paul Karasik.

O leitor brasileiro poderá conferir o mais novo trabalho autoral de André Valente a partir de julho deste ano, quando será lançada a série semanal Colocs du Temps pela Webtoon Factory, braço digital da editora belga Dupuis (de Spirou, Smurfs, Lucky Luke, Gaston Lagaffe, entre outros). Com roteiro e desenhos de Valente e cores de Alice Prina, a série de humor e ficção científica gira em torno de um cínico viajante do tempo que vem de 20 anos no futuro e passa a ser roomate de si mesmo no presente, quando ainda é inocente e puro. Disponível em francês e inglês, a série de 12 episódios foi desenvolvida no formato Mobile Comics para celulares, e poderá ser lida no app ou no site da editora . Os três primeiros episódios são gratuitos. (BP)

Longa tripa de Colocs du Temps

Longa tripa de Colocs du Temps

Rodrigo Okuyama - Mestre do estêncil em crise existencial

Na real, estou querendo falar do trabalho de Rodrigo Okuyama há tanto tempo que até perdi o timing. Explico: faz alguns anos que o Pedro D’Apremont (que ilustrou esse “líndio” header da Raio Laser) me apresentou  esses zines-objeto dobráveis, como se fossem espécie de origami impressos em estêncil, uma coisa fina e especial, trabalho que o ilustrador e designer paulista desenvolveu em diversas peças ao longo dos anos. Porém, em junho de 2019, descontente com os rumos que o chamado BANANÃO (vulgo Brasil) estava tomando com governo de Bozonaro, Rodrigo vazou para o Japão e está lá até hoje (podemos dizer que deu sorte?).

Ele vive na pequena cidade de Higashiomi, na província de Shiga (perto de Osaka e Kyoto), e está trabalhando na linha de montagem de uma fábrica de automóveis. Periodicamente, envia umas newsletters em forma de excepcionalmente bem detalhados infográficos sobre sua bem-menos-fácil-do-que-parece vida no Japão. Descontente com o trabalho de ilustrador, ele chegou a declarar “aposentadoria”, porém resolveu continuar a disparar os eximiamente bem elaborados e-mails para ajudar outros quadrinistas, no Brasil, que estejam passando dificuldade na quarentena.

“Big in Japan"

“Big in Japan"

A despeito do atual hiato (todos estamos em crise, não é mesmo?), a carreira pregressa de Okuyama, que ilustrou para Revista Época Negócios, Podcast Melhores do Mundo, etc., está centrada na produção independente, meticulosamente artesanal, de baixas tiragens e uma mistura de linguagens que aborda os quadrinhos, impressões, pôsteres,  design e produtos gráficos feitos para serem desdobrados, manuseados e apreciados com olhos e tato. Não que ele não se aventure em formatos mais “tradicionais” de quadrinhos também. O zine Massa Véio, por exemplo, é um quadrinho de pegada “violência urbana” inspirada em Taiyo Matsumoto, e consegue enfiar no mesmo delirante balaio um Japão ancestral, umas coisas cyberpunk-fuleirage e o próprio Cabo Daciolo.

Os desdobramentos do (hoje tãaaaao longínquo) processo eleitoral brasileiro em 2018 são tema também de Brasil.exe, que Okuyama desenvolveu para o projeto UGrito (necessariamente 16 páginas de quadrinho), sendo este um dos mais experimentais e criativos exemplares da série. Neste curto espaço de expressão, ele consegue criar um discurso de analogia contrastante entre os mundos virtuais e reais, ao retratar um “shooting” protagonizado por uns brasileiros “patriotas” embrutecidos, juntamente com os momentos que antecedem a tragédia, numa realidade paralela de redes sociais, Whatsapp, Instagram, câmeras de vigilância, telas diversas. Parece querer dizer que nosso doloroso mundo real está filtrado por uma lente de colorir e suavizar as relações sociais, e está absolutamente certo. Somos hoje pouco mais do que a fantasia que criamos de nós mesmos nessas telas, enquanto a realidade em si implode sem que percebamos (ou percebemos tarde demais).

Brasil.exe

Brasil.exe

Aos poucos Okuyama foi também dominando a arte do estêncil, e, seja em impressões diretas na técnica ou em outros tipos de prints, o resultado é sempre atraente sem deixar de ser incômodo, surpreendente, buscando um “olho da mente”. Em trabalhos pequenos, mas detalhados, como 18 Painéis (inspirado nas famosas lições de Wally Wood), Dobradura #3, E Aí Anãozinho!? e Space Kelni, ele refaz a linguagem dos quadrinhos a partir de uma revolução em sua manuseabilidade. Não há ordem certa para acompanhar esses quadros (que se aproximam por afecções), mas sim uma, digamos, leitura feita pela segunda camada de nossa percepção, que faz as associações (menos “livres” do que parecem) de maneira semiautomática. Resulta-se aí uma explosão cognitiva, provocada por um zinezinho que parece à toa, mas que requer muito planejamento e visão artística. É triste que um trabalho como esse – intermediário entre várias formas de expressão e que se situa também entre a arte popular, os quadrinhos e até um certo “design de autor” – não se encaixe em nenhuma categoria específica, ficando difícil para o artista estacionar num local seguro de onde dizer. Mas a vanguarda está sempre neste pêndulo.

E Aí Anãozinho!?

E Aí Anãozinho!?

A arte de Okuyama, hoje working class hero de Higashiomi, sobrevive em suas excepcionais newsletters, não sabemos até quando. Aproveite enquanto você ainda pode recebê-las, escrevendo para o autor em okuyamarodrigo@hotmail.com. Siga-o também no Instagram (@okuyama_rod) e visite sua página no Behance. (CIM)

Lalo, Jéssica Groke e Amanda Miranda - Quebrando tabus

A presença feminina tem constituído um dos mais importantes e intensos debates no campo dos quadrinhos brasileiros contemporâneos. Não é para menos. Num meio dominado pela misoginia, a questão é urgente – e tem sido enfrentada com bravura por leitoras, autoras, editoras e pesquisadoras/críticas. Para além da discussão, o crescimento de publicações criadas por mulheres é mais que alvissareiro. É no contato direto com os leitores que essa produção ganha potência – e que o lamentável panorama se torna passível de mudanças estruturais.

Piracema, de Jéssica Groke

Piracema, de Jéssica Groke

A Coleção Tabu (Mino, 2019), editada por Janaína de Luna – figura de proa do mercado nacional de quadrinhos –, integra com muitos méritos esse esforço de lançar luz sobre a atual produção feminina. A premissa de Tabu é clara: novas autoras lidando com temas espinhosos – para homens e mulheres. A escolha de quadrinistas que ainda não possuem uma longa trajetória nas costas é corajosa e necessária. É produzindo que se domina o ofício. Portanto, não espere encontrar na coleção as obras definitivas das autoras, mas amostras de um potencial que deve explodir, logo mais, em todo o seu fulgor.

Cina, de Lalo, trata com sensibilidade a questão do suicídio. Ou melhor dizendo, da escolha deliberada pelo fim da própria vida. Se o traço da autora ainda não se encontra plenamente desenvolvido, impressiona a construção das personagens e a cuidadosa decupagem da HQ.

Jéssica Groke confirma, com Piracema, a justa atenção que tem despertado em sua recente carreira de quadrinista. A quase total dispensa de requadros, em páginas de layout arrojado, poderia ser um obstáculo à clareza da narrativa. Não é o que acontece. Jéssica conduz o leitor com notável fluidez através de seu onírico conto acerca da sexualidade infantil.

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Juízo, de Amanda Miranda, é a obra mais pretensiosa da Coleção Tabu – e isso é um elogio. Amanda se arrisca em uma densa e cacofônica HQ onde o tema do aborto dispara um conjunto de outras questões, entre elas segredos, mentiras, concessões e a própria natureza do que é ser mulher em uma sociedade eminentemente machista. O desenho da autora é duro, escuro e fotográfico, com fortes qualidades expressionistas. Mas a principal marca de Juízo é seu caráter arredio: um quadrinho que não se entrega totalmente a um primeiro e desatento olhar, exigindo novas leituras para ser devidamente fruído.

Lalo, Groke e Amanda prometem. Muito.  (MJR)